Seleção, tradução, comentários e notas biográficas de Francis Kurkievicz
PRÓLOGO: UMA APRESENTAÇÃO SEM PRETENSÕES
A evolução da poesia moderna como forma de ser lida em silêncio deve implicar que é uma forma fortemente capaz de engendrar epifanias subjetivas. As poetisas modernas escrevem poesia imbuída da capacidade de produzir tremores internos. Esses tremores podem ser interpretados de várias maneiras. Para mentes que buscam a liberação, eles podem conotar a alegria da liberdade. Mentes sofrendo com a opressão poderiam percebê-los como fantasias sobre o espaço que ansiavam por percorrer, mas não podiam até agora.
Kutti Revathi
Os poemas selecionados e traduzidos aqui tem a sóbria missão de apresentar o que anda acontecendo na atual Índia em termos de poesia escrita por mulheres. Um estímulo para uma visão ampla da poesia contemporânea. O que é peculiar nesta pequena seleta poética de poetas indianas é o seu posicionamento diante do patriarcado, diante do sistema de casta, diante da violência contra o feminino. Cada poetisa a sua maneira, reivindica a liberdade da mulher e o respeito de sua existência, levanta a bandeira (não só ou exatamente) de um feminismo, mas de uma presença feminina na construção da sociedade, confrontando o mesmo status quo que as segregam em casa, na família, na escola, no trabalho, na sociedade e, sobretudo na vida literária. Cada qual a sua maneira levanta a sua voz, quer seja em inglês, tâmil, marathi, bengali, hindi, e a dispõe num harmonioso hino polifônico de inegável beleza e força. Ainda que cada autora eleja sua própria lista de temas e estabeleça um regime singular de vivência, um expediente diverso de atividade, e isso já são suficientes para conferir personalidade e distinção entre elas, a poesia de cada delas tem o mesmo fio de ouro que as une: a força e a posição da mulher na vida e na literatura como uma primavera renovadora, um contraste na condição do instante
Os poemas apresentados aqui nem sempre são os mais representativos e notáveis de cada poeta, não foi este o critério que norteou nossa escolha. O critério foi sumamente subjetivo, isto é, selecionei aqueles poemas que me impactaram, me deslumbraram, me fizeram rir, me provocaram reflexão, que de algum modo me atingiram como leitor, me iluminaram como poeta. Desejo que este modesto artigo seja uma janela aberta para os leitores espiarem o que há de belo e poderoso acontecendo na Índia neste momento. Deixei os poetas, os homens para um segundo momento, para um outro lugar. Quis garantir às mulheres o seu lugar de destaque nesta edição.
POIÉSIS: CINCO POETAS INDIANAS CONTEMPORÔNEAS
Kutti Revathi
KUTTI REVATHI
(1974, Tiruchirappalli/Tamil Nadu-Índia)
A trajetória poética de Kutti Revathi pode ser afirmada com segurança, que é uma dissonância estética e ideológica tanto do corpo feminino, quanto da literatura e do patriarcado na Índia. A poesia de Kutti é um ato consciente e inadiável de rebelião feminina e de também de amor próprio, um confronto honesto à poesia moderna em Tamil – Pudhukkavidhai, realizada quase exclusivamente por homens desde a sua constituição, em 1930, mas também um complemento e ampliação desta mesma modernidade literária. Para Kutti a poesia modela a linguagem com a emoção aprimorando essa mesma emoção por meio da linguagem. Simbiose estética e existencial. Ela afirma: “Um homem forja seu primeiro trabalho criativo a partir da vastidão de sua imaginação e do mundo de abstrações percorrido por sua mente. Em contraste, uma mulher, assim creio, vasculha o espaço fechado que é o seu corpo em busca de palavras e as oferece ao mundo. Como uma forma de protestar contra o silêncio ao qual foi coagida, o corpo feminino continua gravando em si todas as mudanças sazonais que a Natureza realiza continuamente”. Portanto, o feminino busca exprimir, através da poesia, o que é sua natureza e como experimenta o estar no mundo, cinzelando nas palavras, a forma do existir como mulher numa sociedade opressora.
SEIOS
Seios são bolhas, erguendo-se
Em zonas úmidas
Eu assisti admirada - e vigiei -
Sua intumescência e florescimento graduais
No limite da minha temporada juvenil
Nada dizendo a mais ninguém,
Eles cantam junto
Comigo sozinha, sempre:
O amor,
O êxtase,
O desconsolo
Para os berçários das minhas temporadas,
Eles nunca esqueceram ou falharam
Em trazer excitação
Durante a penitência, dilatam-se, como se estivessem buscando
Liberdade; e no forte impulso da luxúria,
Voam, recordando o êxtase da música
E do abraço arrebatado, destilam
A essência do amor; e no choque
Do parto, leite de sangue fluindo
Como duas lágrimas de um amor irrealizado
Isso jamais será enxugado,
Brotam, como se estivessem em luto, e transbordam.
BREASTS
Breasts are bubbles, rising
In wet marshlands
I watched in awe — and guarded —
Their gradual swell and blooming
At the edges of my youth’s season
Saying nothing to anyone else,
They sing along
With me alone, always:
Of Love,
Rapture,
Heartbreak
To the nurseries of my turning seasons,
They never once forgot or failed
To bring arousal
During penance, they swell, as if straining
To break free; and in the fierce tug of lust,
They soar, recalling the ecstasy of music
From the crush of embrace, they distill
The essence of love; and in the shock
Of childbirth, milk from coursing blood
Like two teardrops from an unfulfilled love
That cannot ever be wiped away,
They well up, as if in grief, and spill over.
SÓ PARA VOCÊ EU TROUXE ESTE VERÃO
A campina do seu peito secou
Hoje em dia já não se escrevem cartas
Há um tumulto de lágrimas
Em suas cartas comedidas
Seu corpo é tão brando; me faz
Desejar lhe cobrir com muitos braços
Nesta rua de verão não há mais ninguém, exceto
O carteiro carregando sua bolsa de cartas estranguladas,
E a garota que perdeu seus segredos de infância
Quando o enigmático pássaro do verão
Que bebe todos os riachos em um gole rápido
Chega silenciosamente, despertam as pedras também
Crianças se negam a brincar
Sob o sol que diariamente satura de sangue e se eleva
Dentro de uma casa vazia,
O telefone está tocando há muito tempo
Os olhos das meninas estão levitando na névoa
Num verão anterior, demasiado quente
Para as árvores resistirem em pé,
Você chamou meu corpo de vastidão viva
Descobri, quando acordei do sono,
Que a bolsa onde
Escondi seus beijos
E nossas duras disputas com o sal das lágrimas,
Tinha sido aberta
Este verão que me traz à mente
O cheiro acre de uma lamparina apagada,
Eu trouxe somente para você
Escreva-me cartas. Escreva.
I’VE BROUGHT THIS SUMMER JUST FOR YOU
Your chest’s meadow has dried up
You don’t write letters these days
There’s a tumult of tears
In your tempered letters
Your body’s so tender; it makes me
Want to cover you with many arms
There is no one else on this summer street, except
The postman carrying his bag of strangled letters,
And the girl who’s lost her childhood secrets
When the strange bird of summer
That drinks up all the streams in one swift gulp
Arrives quietly, the rocks too come awake
Children refuse to play
Beneath the sun that daily soaks in blood and rises
Inside an empty house,
The telephone’s been ringing for a long time now
Girls’ eyes are afloat in the haze
In an earlier summer, too hot
For trees to stand their ground,
You had called my body a live expanse
I found, when I awoke from sleep,
That the handbag where
I had stashed away your kisses
And our quarrels stiff with the salt of tears,
Had been opened
This summer that brings to mind
A doused lamp’s acrid smell,
I’ve brought along just for you
Do write me letters. Do.
Kutti Revathi nasceu em 1974, no vilarejo Tiruchirappalli, no estado de Tamil Nadu, Índia. Ela uma médica e cirurgiã Siddha, um antigo sistema de saúde do sul da Índia, possui um doutorado em antropologia médica pelo Instituto de Estudos de Desenvolvimento de Madras, em Chennai. Kutti Revathi é poeta e ativista pelos direitos das mulheres e editora da Revista Panikkudam, publicação trimestral de literatura feminina e feminista de Tamil Nadu, revista que tem revelado muitas escritoras e divulgado suas obras que nunca foram contempladas pelas grandes mídias. Ela publicou oito livros de poesia, sendo Mulaigal (Breasts/Seios), publicado em 2002, seu livro mais importante e também o mais polêmico, gerou muitos protestos e controvérsias entre os eruditos e a elite literária conservadora de Tamil Nadu, sendo acusada de obscenidade e degeneração. Nos últimos anos ela tem escrito letras de canções para filmes indianos obtendo grande sucesso de público e crítica.
Pradnya Daya Pawar
PRADNYA DAYA PAWAR
[1966, Maharashtra-Índia]
Algumas poucas palavras-chave definem a poética de Pradnya Daya Pawar: feminismo-Dalit. Este é o ponto fundamental de toda a sua poesia, crítica social e posicionamento político. Pradnya Pawar vai desenvolver uma poética da crueza, onde o tema principal será a vitimização das mulheres intocáveis (Dalit). Sua poesia será, portanto, uma poderosa arma de combate, de denúncia, de confronto, de questionamento, uma furiosa voz de protesto vomitando toda a angústia inflamada e ira sincera das mulheres Dalits, alvo vulnerável das atrocidades, da opressão e da violência no coração da sociedade indiana muito mais perversas do que as perpetradas às mulheres muçulmanas e hindus. Pradnya Pawar: “A poesia que escrevo ou outros da minha espécie escrevem é, na verdade, uma tentativa de montar uma colagem dessas complexidades”.
AMANTE
E então todos os dias
Eu vi
O desempenho soberano
do relacionamento sempre desconectado;
Oh, quantas vezes eu me joguei
antes de você
espalhando camada por camada
da minha pele encharcada!
Quantas vezes já não abri
as trevas
do meu útero quente!
De repente você confundiu
por amor,
Você continuou me amassando até
Eu não poder saber o verso e o anverso de minhas costas
Você continuou me marcando com
Sua sífilis disfarçada
Seus olhos duros e implacáveis bem versados
Me perfurou completamente.
O que você está procurando
Dentro e fora da minha nudez?
É aquele ponto primitivo que
você não consegue encontrar?
Eu posso entender sua tristeza.
CLOSE TO THE HEART
And then on every single day
I saw
The sovereign performance
of the ever disconnected relationship
O, how many times did I throw myself
before you
spreading layer by layer
of my drenched skin!
O how many times did I throw open the
darkness
of my warm womb!
All of a sudden you mistook
it for love,
You kept on crumpling me till
I couldn't tell my front from my back
You kept on branding me with
Your latent syphilis
Your tough ruthless eyes well-versed
Stung me through and through
What are you looking for?
Inside the nakedness and
outside the nakedness
There's only a blank spcae
and you are not
getting it at all
I can understand
You are very sad.
ESTE MUNDO EU NÃO ESCOLHI
Eu não escolhi nem este mundo nem este corpo nem mesmo meu rosto aniquilado num genocídio
Quando foi que escolhi minha linguagem cruelmente destruída? Uma frase completa com expressões furiosas dissimuladas atrás dos meus lábios?
Quando foi que escolhi estuprar meu corpo e a dor eterna do lodaçal do aborto? Quando foi que escolhi esta estrada eterna maculada de sangue?
Este corpo que sofreu inúmeros traumatismos é suturado com milhares de peças que dilacera o presente cardando o algodão batido dos sonhos
Eu não escolhi este mundo nem este corpo No entanto, desejo tornar a vida bela e com toda a humildade vou exibi-los em vez do mangalsutra * sobre meu peito.
* Mangalsutra: Um fio auspicioso que o noivo hindu amarra no pescoço da noiva no dia de seu casamento.
I HAVE NOT CHOSEN THIS WORLD
I have chosen
neither this world
nor this body
I have not even chosen
my face
smashed in a genocide
When did I choose
my mercilessly destroyed language?
A complete sentence with
intense utterances
hidden behind my lips?
When did I choose
the raping of my body
and the eternal pain
of the morass of abortion?
When did I choose
this eternal
blood-splattered road?
This body
which has suffered innumerable strokes
is stitched of thousands of pieces
which tear apart the present
carding the beaten cotton
of dreams
I have neither chosen
this world
nor this body
Yet, I wish to make life beautiful
and in all humility
I will flaunt them instead of mangalsutra1
on my breast.
Pradnya Daya Pawar também conhecida como Pradnya Lokhande, nasceu em 1966, no estado de Maharashtra, Índia. É uma poetisa e escritora de ficção feminista-dalit. Colabora regularmente em diversas revistas com artigos desde literatura, direitos das mulheres, e a segregação dos dalits. Ela escreve também contos e peças teatrais. Pradnya Pawar é filha do escritor dalit Daya Pawar, importante voz literária e militante da casta dos intocáveis que lutou e denunciou as atrocidades contra estes, Pradnya segue o mesmo caminho do pai com uma escrita política de denúncia própria. Ela é membro do Conselho Literário e Cultural do Estado de Maharashtra. Já ganhou oito prêmios literários e publicou mais de doze livros, seus livros de poesia, como Antastha, Utkat Jivghenya Dhagiwar, Aarpaar Layit Pranantik e Drushyancha Dhobal Samudra, entre os mais importantes. Ela foi homenageada com o prêmio Birsa Munda Sanman Puraskar em 2009 e o Bodhivardhan Puraskar em 2010. Ela escreveu um importante estudo sobre a obra de Namdeo Dhasal, o primeiro e mais ousado autor dalit. Atualmente leciona no departamento de Marathi do Dnyansadhana College, Thane.
Sridala Swami
SRIDALA SWAMI
[1971, Mettur Dam/Tamil Nadu-Índia]
Os versos de Sridala Swami são marcados pela sua forma sutil, cautelosa, de moderação emocional. Como polaroides capturando instantes, ela direciona seu foco para pequenos conflitos, pequenas distrações, erros de cálculo, discursos pré-fabricados, preconceitos escusados, vulnerabilidades percebidas, recorrências inconscientes, etc. que podem inflamar o seu temperamento ou motivar um poema mais sublimado, mas com alto teor explosivo. Apesar das metáforas e do design delicado de seus poemas, há uma emergência em tanger os fios invisíveis das relações, de contemplar o segredo dos corações, de perscrutar a palavra sob controle, mesmo correndo perigos de não dizer exatamente o que deveria ser dito, mas que era necessário dizer no momento do acontecido, de alguma maneira ou outra.
TESTAMENTO
Para Eunice de Souza
Com você eu aprendi
peneirar palavras
dê-lhes espaço para respirar
silêncio para crescer
grama selvagem.
Uma única flor
em um final de verão difícil
vai florescer ferozmente
e por muito tempo.
TESTAMENT
for Eunice de Souza
From you I learnt
to winnow words
give them room to breathe
silence in which to grow
grass-wild.
A single flower
at a difficult summer’s end
will bloom fiercely
and for a long time.
REVISÕES
Antes do poeta ser poeta,
Nada era reorganizado:
Nem a mancha de tinta em doze conjuntos de roupas,
Nem o assustador leito superior do trem,
Nem uma sala cheia de caixas e janelas opacas,
Nem a gata que deixou seus gatinhos e a placenta em um par de jeans,
Sem dúvida.
Antes do poeta ser poeta,
Tudo tinha o seu lugar:
Seis anos eram seis anos as linhas paralelas cumpriam regras
Como as crianças dóceis
[o sistema decimal de Dewey]
As casas se mantiveram onde
Deixadas foram.
Antes do poeta ser poeta,
Muitas coisas seguiam despercebidas:
Às vezes nuvens vazavam um raio do sol | pais mantinham fotos sob seus
Travesseiros | cartas nunca disseram tudo o que desejavam | palestras foram interrompidas pela agitação de folhas | | cada passo se deslocava num ponto cego.
REVISIONS
Before the poet was a poet
nothing was reworked:
not the smudge of ink on twelve sets of clothes
not the fearsome top berth on the train
not a room full of boxes and dull windows
not the cat that left its kittens and afterbirth in a pair of jeans
not doubt.
Before the poet was a poet
everything had a place:
six years were six years parallel lines followed rules
like obedient children
[the Dewey Decimal System]
homes remained where they’d
been left.
Before the poet was a poet
many things went unseen:
clouds sometimes wheedled a ray out of the sun| parents kept photographs under their
pillows| letters never said everything they wanted to| lectures were interrupted by a
commotion of leaves | | every step was upon a blind spot.
Sridala Swami nasceu em Mettur Dam, Tamil Nadu, Índia em 1971 e mora atualmente em Hyderabad. É poetisa, ensaísta, fotógrafa e escritora de ficção e literatura infantil, também professora e editora de cinema, realiza curadoria para o programa de rádio "The Poetry Mohalla". Além de ter seus poemas inseridos em diversas antologias nacionais e internacionais, possui dois livros de poemas aclamados pela crítica: A Reluctant Survivor, Sahitya Akademi, New Delhi, 2007 - Escape Artist, Aleph Book Co., New Delhi 2014, e um livro de entrevistas com escritores indianos contemporâneos. Sridala Swami foi membro do júri no Prêmio Internacional de Poesia de Montreal em 2020.
Anjun Hasan
ANJUN HASAN
[1972 - Shillong/Meghalaya-Índia]
A poesia de Anjun Hasan é impregnada da paisagem e dos personagens de sua cidade natal, uma poesia feita da observação do comportamento, desejos, angústias, perplexidades, mesquinharias, compromissos, opressões sofridas pelo humano, demasiado humano, e também da monotonia cotidiana que engolfam essa população em seu imaginário local. Poesia escrita como uma polaroide multicolorida, crônica humana extraída da realidade com temperos apimentados de ironia perspectiva, no cenário delimitado pelo anonimato da paisagem montanhosa e verdejante de Meghalaya.
PARA O RESTAURANTE CHINÊS
para Daisy
Chegamos aqui depois de uma longa tarde
esticada sobre os telhados inclinados da cidade,
suas garagens e sorveterias engorduradas,
suas melancólicas livrarias de segunda mão
com muitas páginas faltando.
A vida não está se movendo.
Sentamo-nos a uma mesa vermelha, entre os dragões,
perto das janelas com cortinas que dão para a rua
com suas laranjadas mofadas.
Nas ruas há colegiais com
as gravatas tortas e os vendedores de frutas gritantes.
Comemos mais do que precisamos. Comemos
para que nosso tédio não seja mais perigoso,
para que, do conforto da sopa,
com os pequenos prazeres do chopsuey,
possamos afastar a memória de cidades não visitadas,
assuntos desconhecidos e incognoscíveis,
pessoas com batom que nunca se desvanece e
gestos confiantes que nunca Teremos.
Um dia em breve estaremos correndo,
nossas vidas serão como o borrão visto de um ônibus,
e não leremos as cartas um do outro três vezes.
Mas aí mesmo somos jovens, contamos
nosso dinheiro com cuidado, rimos tanto
e deixamos cair nossos garfos.
Somos arrancados da tristeza ali
naquele cantinho de plástico com as luzes apagadas,
os garçons chapados de tanto não fazer nada,
os cheiros de ketchup e cebolas fritando eternamente.
TO THE CHINESE RESTAURANT
for Daisy
We come in here from the long afternoon
stretched over the town’s sloping roofs,
its greasy garages and ice-cream parlours,
its melancholic second-hand bookshops
with their many missing pages.
Life’s not moving.
We sit at a red table, among the dragons,
near the curtained-off street-facing windows
with their months’ old orangeade.
Out in the streets there are schoolboys with
their ties askew and the garish fruit-sellers.
We eat more than we need to. We eat
so that our boredom’s no longer dangerous,
so that from the comfort of soup,
with the minor pleasures of chopsuey,
we can fend off the memory of cities unvisited,
unknown and unknowable affairs,
people with never-fading lipstick and
confident gestures who we will never be.
One day soon we’ll be running,
our lives will be like the blur seen from a bus,
and we won’t read each other’s letters thrice.
But right there we’re young, we count
our money carefully, we laugh so hard
and drop our forks.
We are plucked from sadness there
in that little plastic place with the lights
turned low, the waiters stoned from doing nothing,
the smells of ketchup and eternally frying onions.
CIDADE DE INTERIOR
O homem que dirige a loja de artigos esportivos
que também vende livros velhos ainda no plástico e
jogos de tabuleiro em caixas descoradas, está sentado ao sol
com seus braços tatuados cruzados.
Bebe ele muita cerveja, não faz perguntas
fúteis. Seus amigos vagabundeiam
por pequenas lojas de música a manhã inteira,
de chinelos, com a barra da camisa para fora da calça.
O ar distante ilumina as bordas vincadas
das colinas. Às vezes, ele quer exibir
o cheiro de carvalhos que envelhecem ao sol
e de padarias onde meninos de aventais sujos
acenderam fornos no início da manhã de verão.
Mas o homem tatuado cochila quando
seus amigos tagarelam e o sol descora as lombadas
de romances policiais macilentos e livros cheios de
garotas de corpo bronzeados e esquemas de ponto cruz.
Quando um homem é morto à tarde,
esfaqueado e deixado para morrer com o rosto
sobre o bueiro, o tatuado tem uma opinião.
Mas ele fecha a porta e dorme em uma
tábua atrás do balcão que cheira a cigarro
e chá azedo, até que a chuva esfrie as ruas. Todos os
ruídos mais distantes da cidade o amanhecem lentamente,
até que ele percebe a chuva em sua própria janela
e então imagina a água imunda escorrendo sob
o rosto do morto.
À noite, quando a chuva ameniza,
seus amigos podem voltar e fazer piadas sobre isso.
Ele acende as luzes às cinco. Eles entram
Com as barras das calças úmidas e notam os dragões
chineses em seus braços. Conversam e novamente
o ar frio rascunha cada carro dissonante e cada árvore desanimada.
É sábado. Ele crava os cotovelos nos trincados do
balcão de vidro e assiste uma garota do outro lado da rua,
lustrando alguns degraus de pedra até que
brilhem na noite azul clara.
SMALL TOWN
The man who runs the sports goods store
that also sells old unopened books and
board games in faded boxes, sits with his
tattooed arms folded in the sun.
He drinks a lot of beer and doesn’t ask
stupid questions. His friends loiter
around small music shops all morning,
in slippers, with their shirt-tails out.
The distant air lights up the furrowed edges
of the hills. Sometimes he wants to describe
the smell of brown oaks ageing in the sun
and bakeries where boys in dirty aprons
lit their ovens in the early summer morning.
But the tattooed man dozes on when
his friends talk and the sun whitens the spines
of pale detective novels and books full of
blond-bodied girls and cross-stitch designs.
When a man is killed in the afternoon,
knifed and left to die with his face down
in a drain, the tattooed fellow has an opinion.
But he shuts the door and sleeps on a wooden
plank behind the counter that smells of cigarettes
and stale tea, till rain cools the streets. All the
farthest sounds of the city wake him up slowly,
till he hears the rain on his own window
and thinks of the dirty water running below
the dead man’s face.
In the evening when the rain lets up for a bit
his friends might return and joke about it.
He switches on the lights at five. People drift in
With damp trouser-cuffs and notice the Chinese
dragons on his arms. They talk and again the cool
air outlines each noisy car and softened tree.
It’s Saturday. He rests his elbows on the cracked
glass counter and watches a girl across the street,
scrubbing a couple of neat stone steps till they
gleam in the clear blue evening.
Anjun Hasan nasceu em Shillong, no estado de Meghalaya. Ela escreve poesia, ficção e crítica em língua inglesa. “Street on the Hill”, seu primeiro livro de poesia foi publicado em 2006. Muito de seus poemas têm sido publicados em revistas e antologias, incluindo Reasons for Belonging, Confronting Love, Give the Sea Change e também em It shall Change. Anjun Hasan escreve como freelance para outras publicações, tais como Outlook Traveller, Tehelka e o Suplemento Literário Hindu. Atualmente ela mora em Bangalore, onde trabalha para a Fundação Indiana de Artes.
Tishani Doshi
TISHANI DOSHI
[1975, Chennai/Tamil Nadu -Índia]
Para Tishani Doshi o ato de escrever é uma atitude contra a violência e o desespero. Se tudo que envolve o humano parece ser inexplicável, oferecer a joia de um poema ou uma canção, não constitui uma queixa, mas uma forma de sanidade. A poesia de Tishani é uma forma de não esquecer, uma afirmação fundamental do humano e de tudo aquilo que já se experimentou neste mundo, seja a alegria, desejo, traição, redenção ou qualquer outra afecção. A poesia de Tishani Doshi é uma espécie escrita decodificadora da vida humana, uma forma de conservar e interpretar as memórias e histórias humanas, por mais falsas e enganosas que possam ser.
QUANDO EU AINDA ERA POETA
Quando eu era um poeta
eu costumava sonhar com rios.
As flores tinham nomes
e propósitos. Pequenos pássaros
em forma de cicatrizes
fizeram ninhos em braseiros
no céu. Agora
que desistiram,
a tarde seca
como cascas de passas
friccionadas.
Ladrões se aproximam.
Cães latem.
O amor brota da terra como cenouras.
WHEN I WAS STILL A POET
When I was still a poet
I used to dream of rivers.
Flowers had names and
purpose. Small birds
the shape of scars
made nests of braziers
of sky. Now that I
have given up,
afternoons dry
as raisin skins scrub
by. Thieves approach.
Dogs bark. Love springs
from dirt like carrots.
A CANÇÃO DO IMIGRANTE
Não falemos daqueles dias
quando os grãos de café encheram a manhã
com esperança, quando as bandanas de nossas mães
pendurados em varais como bandeiras brancas.
Não falemos dos longos braços do céu
que costumavam nos embalar ao anoitecer.
E os baobás - não rastreemos
a figura de suas folhas em nossos sonhos,
ou afligir-se pelo murmúrio daqueles pássaros inominados
que cantaram e morreram no beiral da igreja.
Não falemos de homens,
sequestrados de suas camas à noite.
Não exclamemos a palavra
desaparecido.
Não nos lembremos do primeiro aroma de chuva.
Ao contrário, falemos de nossas vidas agora -
dos portões e pontes e lojas.
E quando partirmos o pão
no café e nas mesas de cozinha
com nossos novos irmãos,
não vamos oprimi-los com histórias
de guerra ou abandono.
Não nomeemos nossos velhos amigos
que se manifestam como contos de fadas
nas florestas dos mortos.
Nomeá-los não lhes dará retorno.
Fiquemos aqui aguardando o futuro
Nos alcançar, para que os netos falem
Em línguas mistas sobre o país
de onde viemos.
Conte-nos sobre isso - eles podem perguntar.
E você pode ponderar dizendo-lhes
do céu e dos grãos de café,
das pequenas casas brancas, das ruas empoeiradas.
Você pode deixar sua memória navegando
como um barquinho de papel rio abaixo.
Você pode rogar ao papel
Que sussurra para a água o seu drama,
que a água cante para as árvores,
que as árvores ululem e ululem
para as folhas. Se você ficar sereno
e mudo, poderá ouvir
toda a sua vida ocupar o mundo
até que o vento seja a única palavra.
THE IMMIGRANT SONG
Let us not speak of those days
when coffee beans filled the morning
with hope, when our mothers' headscarves
hung like white flags on washing lines.
Let us not speak of the long arms of sky
that used to cradle us at dusk.
And the baobabs—let us not trace
the shape of their leaves in our dreams,
or yearn for the noise of those nameless birds
that sang and died in the church's eaves.
Let us not speak of men,
stolen from their beds at night.
Let us not say the word
disappeared.
Let us not remember the first smell of rain.
Instead, let us speak of our lives now—
the gates and bridges and stores.
And when we break bread
in cafés and at kitchen tables
with our new brothers,
let us not burden them with stories
of war or abandonment.
Let us not name our old friends
who are unravelling like fairy tales
in the forests of the dead.
Naming them will not bring them back.
Let us stay here, and wait for the future
to arrive, for grandchildren to speak
in forked tongues about the country
we once came from.
Tell us about it, they might ask.
And you might consider telling them
of the sky and the coffee beans,
the small white houses and dusty streets.
You might set your memory afloat
like a paper boat down a river.
You might pray that the paper
whispers your story to the water,
that the water sings it to the trees,
that the trees howl and howl
it to the leaves. If you keep still
and do not speak, you might hear
your whole life fill the world
until the wind is the only word.
Tishani Doshi nasceu em Chennai, em 1975. Ela é poeta, jornalista, dançarina e coreógrafa ao estilo Chandralekha. Possui no seu currículo dez obras entre livros de poemas, contos e romances. Seu livro de poesia, Girls Are Coming Out of the Woods, publicado pela Harper Collins India em 2017, e no Reino Unido, pela Bloodaxe Books em 2018, tem sido recomendado pela Poetry Book Society e foi indicada para ao Prêmio Ted Hughes. Seu último livro de poemas Small Days and Nights, publicado pela Bloomsbury, de 2019, foi indicado para o Prêmio Ondaatje de 2020.
EPÍLOGO: A LUZ DO ORIENTE
Como sou apenas um poeta que vive do outro lado do mundo com uma experiência de vida, cultura, língua, muito diferente do que se vive na Índia, não me é possível escrutinar toda a poesia destas maravilhosas poetisas aqui apresentadas, como se fazem nos “laboratórios” de todas as universidades. Por isso os meus comentários e impressões terminam aqui. Eu acredito que a poesia não se explica. Que a poesia não se desmembra e nem se separam os seus átomos, nêutrons, elétrons em busca de símbolos e significados ocultos no íntimo dos quantas. Não devemos desejar explicar as motivações e origem de cada poema. Os poetas sabem o que escreveram e isso basta. O poema é o que é, diz o que diz. Não se deve desvelar a poesia em benefício da curiosidade intelectual, pois a poesia não é para a satisfação do intelecto, nem para os caprichos da racionalidade. O poema é a claridade que ativa o coração, o âmago, o Atman de cada pessoa que jaz esperando a oportunidade benfazeja de despertar do substrato luminoso que é Sri Tripura Sundari. E quando Atman desperta para a sua própria sabedoria, a mais pura e bela poesia, isto é, o significado último e único da poesia: a consciência que reconhece a si mesma; tudo se revela. E ponto final.
______________________
Francis Kurkievicz é poeta. Lançou pela Editora Patuá, em dezembro de 2020, seu primeiro livro de poemas B869.1 K96. Atualmente reside em Vitória/ES.
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