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Confluências estéticas e conceptuais em TAO-TE KING, de Lao Tzu, e AFORISMOS, de Bruce Lee

João Valdivino Lima Ferreira



Bruce Lee em sua biblioteca particular composta por mais de 2000 livros.




RESUMO:


Artigo sobre certas confluências estéticas e conceptuais das obras Tao-te King, de Lao Tzu (1898; 1995), e Aforismos, de Bruce Lee (apud LITTLE, 2000; 2007), em destaque, determinadas convergências quanto à visão de mundo dos criadores, transposta nos escritos, e ao pendor didático e filosófico encontrado nos textos. A pesquisa evidencia algumas características composicionais de fragmentos de ambos os textos, como as feições alegóricas, metafóricas e paradoxais, e o intuito condensador das estâncias e dos aforismos, e aponta certas intersecções entre mitologia, literatura e filosofia. Nesse percurso, destaca-se o movimento de absorção e transformação realizado no procedimento composicional e reflexivo dos textos de Lee. Para realização do estudo, são apresentados alguns tópicos recorrentes das obras e são estudadas as subdivisões “Vazio”, “Wu-wei”, “Filosofia”, “Arte” e “Wu-hsin” de Lee e as estâncias I, II, V, IX, XVI, XXIX e XLVIII, de Lao-Tzu.


Palavras-chave: Aforismos. Cosmogonia. Filosofia. Interdisciplinaridade. Literatura Comparada.




1. INTRODUÇÃO


A expressão de várias atividades artísticas e filosóficas se articula, muitas vezes, por intermédio da intersecção entre elementos de origens, procedimentos e finalidades diversas, especialmente, se a manifestação busca se constituir de características versáteis e amplas. Nesse sentido, o diálogo interdisciplinar entre a filosofia e variadas formas de expressão artística resulta num processo bastante enriquecedor na consecução do alargamento de horizontes, da praxe da interlocução, do acréscimo de técnicas e da reordenação de paradigmas. Conforme disserta Benedito Nunes (2010), dentro da tradição filosófica e literária são inúmeros os casos de ação recíproca entre ambos os universos, desde a presença de formas de escrita muito próximas à literatura, como a adoção de versos e de figuras retóricas em textos filosóficos, até o exercício da indagação especulativa dos limites do ser e do mundo em obras literárias. Por esse caminho, apontamos a prática de uma parcela da tradição chinesa em realizar esse diálogo, tal qual ocorre em certas feições literárias encontradas em textos de escritores-pensadores como Lao-Tzu (1995) e Chuang Tzu (1998), vistas por intermédio da utilização de formas de expressão alegóricas, metafóricas e paradoxais, nas quais se destacam os desígnios cosmológicos e didáticos de transmissão escrita. Por outro lado, salientamos que tal ênfase para o estudo das culturas orientais encontra eco em diversos estudos literários e linguísticos sobre o assunto, como demonstra Haroldo de Campos na organização da obra Ideograma (2000).


Conforme Richard Wilhelm (1995), as poucas e principais informações acerca da controversa possibilidade de existência de Lao Tzu se devem ao historiador chinês Si-ma Tsién (séc. II e I a. C). Lao-Tzu teria nascido no final do século VII a.C., provavelmente, haveria sido arquivista na corte imperial e, na sua ancianidade, deslocou-se das fronteiras chinesas, quando teria escrito a obra Tao-te king (1995, 1898). O livro é dividido em duas partes principais – sentido (Tao) e vida (te) –, é segmentado em 81 estâncias, e se insere no rol das modalidades de criação denominadas cosmogonias. Além disso, a obra transita pela chamada poesia didática e sua feição se aproxima do aspecto vivaz do aforismo. Segundo Bryan Van Norden (2018), destacam-se os tópicos das adversidades sociais e sua solução, da mitologia, da não-ação, do ensinamento que é sem palavras, e do caminho. O caminho (Tao) é apregoado na valorização do “vazio” ou do “nada”, enquanto exclusão de pré-determinações e apreciação da intuição, como pode ser vislumbrado nos versos (LAO-TZU, 1995, p. 87): “Quem pratica o estudo aprende mais a cada dia / Quem pratica o Tao diminui a cada dia.”. Nesse fragmento se conjectura a possibilidade de se entrever etapas de um processo dinâmico e contraditório de aquisição de conhecimento e de expressão do saber.


O ator, atleta, filósofo e cineasta Bruce Lee (Lee Jun-fan) praticou diversas artes marciais (sobretudo as práticas chinesas como Kung Fu e Tai Chi Chuan), atuou em vários filmes, dirigiu obras cinematográficas e compôs diferentes livros. Lee realizou em alguns de seus livros várias articulações com a filosofia, com as artes e com o pensamento tradicional chinês, em especial, como as esferas do taoismo e do chan-budismo. Tal propósito articulador muitas vezes ocorreu também na literatura chinesa, como por exemplo, nas obras dos poetas Li Bai, Du Fu e Wang Wei (FRÓES, 2012). Além de apontar várias instruções sobre aquecimentos, treinos e artes marciais, a obra Tao do Jeet Kune Do (LEE, 1975; 2003) apresenta na abertura do livro um poema de autor desconhecido, denominado “Um monge taoista”, do qual selecionamos o trecho a seguir:


[...] A mesma brisa passa

Pelos pinheiros da montanha

E pelos carvalhos do vale;

Então, porque produzem notas diferentes?


Nenhum pensamento, nenhuma reflexão,

Vazio perfeito,

porém, algo se move ali,

Seguindo seu próprio curso [...]

(autor desconhecido apud LEE, 2003, p. 4)


A indicação do poema à guisa de epígrafe para o livro sugere um diálogo com alguns tópicos do taoismo, como as noções de vazio e caminho. Adiante na obra são apresentados aforismos em que se expõem assuntos relacionados a esse mesmo universo, tal qual surge neste fragmento (LEE, 2003, p.21): “[...] O vazio inclui tudo e não possui um oposto, ou seja, não há nada que ele exclua ou a que se oponha. É um vazio vivo [...]”. De acordo com Massaud Moisés (2004), a feição da modalidade textual do aforismo percorreu variados terrenos filosóficos (como aqueles das obras de Pascal, Erasmo, Montesquieu, Schopenhauer e Nietzsche) e transita entre diversos caminhos argumentativos e intuitivos de formas de elocução. Esse pendor da articulação com a filosofia e com as artes é desenvolvido no livro Aforismos (apud LITTLE, 2000; 2007). A obra é dividida em 8 partes temáticas, que totalizam o número final de 71 subdivisões, cada qual com vários aforismos. No livro Lee estabelece uma estética que oscila entre faces diversas, como a percepção intuitiva, a diretriz explicativa, a linguagem figurada, a aproximação do cotidiano e o apreço à filosofia e às artes.


Com base nas peculiaridades das modalidades textuais do aforismo e da cosmogonia e da interação das figuras do pensador e do poeta, propomos o estudo das confluências estéticas e conceptuais nos livros Tao-te king, de Lao-Tzu (1995), e Aforismos, de Bruce Lee (apud LITTLE, 2000; 2007). Tomando como uma das várias balizas os princípios advindos da impossibilidade e da necessidade de narrar proposta por Adorno (1983), da descaracterização da figura do narrador tradicional sugerida por Walter Benjamin (1994), e da interação entre texto e vida social indicada por Antonio Candido (2000) – pois, diferentemente de Lao-Tzu que se dispunha na figura de porta-voz da sociedade, Lee viveu em tempos diferentes, nos quais essa configuração se alterou –, posicionamos o estudo num círculo de instigação e motivação contrastiva, pois, encontramos uma oscilação e um conjunto de condições que alternam as possibilidades de identidade e de inquietação diante desse objeto de estudo. Com o desígnio de concretizar uma descrição e uma problematização sobre os princípios cosmológicos e existenciais do taoismo (WILHELM apud LAO-TZU, 1995) e de adentrar o contorno comparatista dos trabalhos (CARVALHAL, 2001; PERRONE-MOISÉS, 1990) repercutidos nos versos e nos aforismos, propomos a reflexão e a crítica sobre a ação desses tópicos no feitio literário e na abrangência filosófica. Ou seja, em nível literário, a partir da constatação dessa recorrência efetivar proposições sobre como se dá o aprofundamento do caráter paradoxalmente enigmático e impactante dos enunciados, especialmente, os processos metafóricos de composição (MOISÉS, 2004); e, em nível filosófico, as maneiras de ocorrer o desdobramento da compreensão de vida e de mundo pela apresentação dos obstáculos e dos empecilhos como afirmação das feições contraditórias da existência, em que escritores e filósofos pensam problemas universais (NUNES, 2010; NOVAES, 2005).




2. ÂMBITO COMPARATIVO


As estâncias I, II, V, IX, XVI, XXIX e XLVIII da obra Tao-te King, de Lao-Tzu (1898; 1995), e as subdivisões “Vazio”, “Wu-wei”, “Filosofia”, “Arte”, “Wu-hsin”, “Tao” do livro Aforismos, de Bruce Lee (2000; 2007), permitem uma ilustração prévia de uma pesquisa em alguns ângulos de estudo (composicional, reflexivo e comparativo) acerca de determinadas aproximações entre ambos criadores. Essas aproximações se efetuam no campo da chamada interdisciplinaridade, uma forma de relação apontada por Tânia Franco Carvalhal acerca dos estudos entre diferentes ramos dos saberes (CARVALHAL, 2001, p. 74): “Esses trabalhos expressam a tendência comum de ultrapassar fronteiras, sejam elas nacionais, artísticas ou intelectuais, mas igualmente de explorar o imbricamento com outras formas de expressão artística e outras formas de conhecimento.”. Assim, os estudos que se situam nessa intersecção buscam ampliar o leque de apreciações sobre determinados tópicos. De outra parte, internamente nas obras de ambos os escritores dá-se também uma justaposição de elementos advindos de diversas procedências, conforme destaca Julia Kristeva sobre a intertextualidade (KRISTEVA, 1974, p.64): “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.”. Nesse sentido, os livros de Lee (2007) e de Lao-Tzu (1995) compõem-se de presenças implícitas e explícitas de vários autores e vários universos, próprios à construção de cada um dos textos. Em Lee, para ilustrar, há menções de figuras mitológicas (como Kwan-yin), e citações de fragmentos de filósofos (como Alan Watts). De outra parte, Lee executa um processo de seleção de textos dos seus antecessores e de renovação de si mesmo, movimento esse muito próximo ao que designa Leyla Perrone-Moisés a respeito de antropofagia (PERRONE-MOISÉS, 1990, p.95): “[...] é antes de tudo o desejo do Outro, a abertura e a receptividade para o alheio, desembocando na devoração e na absorção da alteridade”.


Na obra Tao do Jeet Kune Do, Bruce Lee (2003) sinaliza um modo de fazer inerente a ele que no início do livro é estendido como forma de convite também aos leitores (LEE, 2003, p.5): “Este livro é dedicado ao artista marcial livre e criativo. Aproveite o que lhe for útil e se desenvolva a partir disso.” (LEE, 2003, p. 5). Pois, Lee dimensiona e se dispõe numa realidade em que se dificulta ou se impossibilita a comunhão da universalidade das experiências e da descaracterização da figura do narrador tradicional (ADORNO, 1983; BENJAMIN, 1994). Tal impasse é expresso no livro Aforismos (LEE apud LITTLE, 2007, p. 111), por exemplo, no seguinte trecho: “A arte é um meio de adquirir liberdade pessoal – A arte, no final das contas, é um meio de adquirir liberdade ‘pessoal’. O seu caminho não é o meu caminho, nem o meu é o seu”. Assim, diferentemente de Lao-Tzu que se coloca como um porta-voz da sociedade chinesa ancestral, Lee necessita lidar com o aprofundamento das contradições sociais e econômicas.


As estâncias de Lao-Tzu (1995) selecionadas para este trabalho (I, II, V, IX, XVI, XXIX e XLVIII) repercutem uma gama temática de itens bastante ampla, dentre os quais, destacamos: a eleição do propósito didático e pedagógico; o realce da especulação existencial e filosófica; o desígnio de explicação da origem e atividade do universo; a eleição de determinados modos de percepção da vida e dos costumes; a indicação de formas de interpretação dos fenômenos; a sugestão de determinadas maneiras de conduta da figura do sábio; a designação da possibilidade da unidade das contradições da vida; a caracterização das amplitudes semânticas e filosóficas da palavra Tao; a predileção pela vida simples e desafetada; a propensão pela preconização da importância do “nada” e do “vazio” na unidade e na circularidade do todo; a inclinação pela busca do estado de serenidade; a preferência pela poética do “menos”, e a predileção da adoção da conduta social mediana a fim de evitar os desequilíbrios. Para isso, Lao-Tzu adota em suas composições certas elaborações criativas de caráter comparativo, metafórico, alegórico, paradoxal, antitético, antinômico e contraditório, como no fragmento a seguir, em que estabelece um parâmetro de criação (LAO-TZU, 1995, p. 117): “As palavras verdadeiras parecem paradoxais”. As estâncias as quais apresentem um arranjo de predomínio paradoxal, antitético, antinômico e contraditório buscam expor a possibilidade de se evidenciar compositivamente que as contradições são apenas temporariamente provisórias, como, por exemplo, no seguinte trecho:


[...]

Assim também o Sábio:

permanece na ação sem agir,

ensina sem nada dizer.

A todos os seres que o procuram

ele não nega.

Ele cria, e ainda assim nada tem.

Age e não guarda coisa alguma.

Realiza a obra,

não se apega a ela.

E, justamente por não se apegar,

não é abandonado.

(LAO-TZU, 1995, p.38)


Já as estâncias que exponham uma disposição de preponderância comparativa, metafórica e alegórica visam estabelecer na referência concreta – em detrimento da explicação abstrata – uma forma mais precisa e mais abundante de “verdade”. A título de exemplo, dispomos a estância V:


Céu e Terra não são bondosos.

Para eles, os homens são como cães de palha,

destinados ao sacrifício.

O Sábio não é bondoso.

Para ele os homens são como cães de palha, destinados ao sacrifício.

O espaço entre o Céu e a Terra

é como uma flauta:

vazia, ainda assim, inexaurível;

soprada, mais e mais sons produz.

Porém palavras em demasia se esgotam ao serem proferidas.

O melhor é guardar o que está no coração.

(LAO-TZU, 1995, p.41)


As subdivisões do livro Aforismos, de Bruce Lee (2000; 2007), propostas para este estudo (“Vazio”, “Wu-wei”, “Filosofia”, “Arte”, “Wu-hsin”, “Tao”), expressam algumas proximidades quanto ao teor dos textos. Nesses 70 aforismos que compõem esses seis segmentos, Lee oscila entre a expressão de tópicos taoistas acerca do “vazio” e uma leitura própria acerca do “vazio”; situa certas potencialidades sobre o Wu-wei (Ação natural) e enfatiza algumas orientações sobre respostas fundamentais ao ambiente externo às pessoas; destaca a importância da filosofia quanto às habilidades que possibilita, ressalta a necessidade de relacioná-la à vivência e aponta algumas contradições em certas correntes filosóficas; aponta a sua visão a respeito das peculiaridades e finalidades da arte e indica as suas propostas de diretrizes artísticas; estabelece certos parâmetros para o Wu-hsin (Não-intelecto), como a naturalidade dos pensamentos e a desobstrução dos sentimentos, nos quais preconiza a aspiração a um tipo de visão sem sujeito e objeto, desprendida do ego; por fim, Lee sinaliza diferentes concepções acerca do Tao, em que delimita os escritos de Confúcio como definidores mais específicos do taoismo, além disso, Lee exprime a rotatividade e a relatividade dos princípios Yin e Yang e o valor da delicadeza, encerrando esse tópico ao expressar a falta de uma palavra equivalente para traduzir o Tao, encontrando apenas a palavra “verdade”, a qual é ainda de mais problemática definição.


Esses segmentos revelam também certas similaridades composicionais com as estâncias escolhidas de Lao-Tzu neste trabalho, no sentido de reverberarem um modus operandi muito próximo da maneira de realizar composições. Assim como Lao-Tzu, Lee também expressa nas criações de predominância paradoxal, antitético, antinômico e contraditório a exposição de uma relatividade ou de uma contingência das contradições, como podemos observar no seguinte fragmento (LEE, 2007, p. 109): “A arte é a expressão da natureza e da vida expressa pelo artista que, por ter total controle da técnica, está livre dela.”. Dessa operação chegamos a um dos preceitos de Lee para a composição artística, também pela via da contradição aparente (LEE, 2007, p. 109): “A arte que não parece arte é a arte perfeita – A perfeição da arte está em ocultar a arte”.


De maneira semelhante, Lee cultiva nos aforismos de primazia comparativa, metafórica e alegórica o estabelecimento da preferência pela indicação o mais concreta possível, por exemplo, neste trecho (LEE, 2007, p. 127): “[...] Não-intelecto é utilizar a mente toda como usamos os olhos quando os dirigimos a vários objetos sem nenhum esforço, sem nos fixarmos em nenhum deles.”. Tal predileção leva a apontar nas propostas de Lee a sugestão de uma perda de energia proveniente da superestima da racionalização no ser humano (Lee, 2007, p. 110): “O aspecto imediato na arte – Se pudéssemos pintar diretamente com os olhos! No longo do caminho que sai do olho, passa pelo braço e vai até o lápis, quanta coisa se perde!”. Assim, em Lee, essas duas operações composicionais se associam (ou derivam dos) aos tópicos taoistas da Ação natural (Wu-wei) e do Não-intelecto (Wu-hsin).


A combinação dessas duas operações composicionais nas criações de Lao-Tzu e de Bruce Lee podem ser vistas na Estância I e no aforismo “Unir-se ao Tao – uma experiência pessoal”, respectivamente, nos quais a tese de unidade de opostos busca apresentar a uma possibilidade de efetivação. Começamos pela estância de Lao-Tzu:


O Tao que pode ser pronunciado

não é o Tao eterno.

O nome que pode ser proferido

não é o nome eterno.

Ao princípio do Céu e da Terra chamo “Não-ser”.

À mãe dos seres individuais chamo “Ser”.

Dirigir-se para o “Não-ser”, leva

à contemplação das limitações espaciais.

Pela origem, ambos são uma coisa só,

diferindo apenas no nome.

Em sua Unidade, esse Um é mistério.

O mistério dos mistérios

é o portal por onde entram as maravilhas.

(LAO-TZU, 1995, p.37).


Nessa estância Lao-Tzu levanta a perspectiva da busca da unidade dos contrários (“Não-ser” e “Ser”) e sinaliza no adiamento da determinação das oposições a emergência da compreensão e da incorporação. Inicialmente, de maneira alegórica, e, depois, de forma abstrata, Lee realiza essa operação de combinação de aspectos metafóricos e antitéticos no aforismo a seguir:


Unir-se ao Tao – uma experiência pessoal – Deitei no bote e senti que havia me unificado com o Tao: havia me tornado uno com a natureza. Simplesmente fiquei deitado e deixei o bote deslizar livremente de acordo com sua vontade. Naquele momento havia atingido um sentimento interno no qual a oposição tinha se tornado mutuamente cooperativa, em vez de mutuamente exclusiva, um estado no qual não mais existia conflito algum em minha mente. O mundo todo para mim era unitário. (LEE, 2007, p. 163).


No aforismo Lee realiza dois movimentos: um de índole figurada e outro de caráter abstrato. No andamento figurado expõe-se na construção comparativa um reforço e um contraste, por meio do ato de entrega junto ao percurso do bote em ação junto às correntezas imprevisíveis da água. Já no andamento abstrato, Lee sintetiza conceitualmente o que supostamente seria contraditório, e, estabelece um éthos filosófico, funcional e vivencial.




3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


A abrangência deste artigo se dimensionou pela atuação em distintas frentes de trabalho acadêmico. Com o intuito de ampliação dos debates teóricos e críticos, inicialmente, esta pesquisa almejou uma apresentação dos universos da cosmogonia dos versos de Lao-Tzu e da coletânea de aforismos de Bruce Lee, mostrando-os pela dupla face de pensadores e escritores. Adiante, este estudo situou o trabalho na zona de intersecção dos saberes, por meio de associações com as atividades realizadas pela literatura comparada e pela interdisciplinaridade. Por último, este artigo efetuou uma comparação entre trechos dos escritos de Lao-Tzu e de Lee, evidenciando aspectos relacionados ao teor das obras e a algumas operações composicionais.

O estudo possibilitou a apresentação de certa sobreposição das diretrizes dos textos (cosmológica, existencial, didática), e buscou uma discussão sobre o caráter interdisciplinar das atividades de ensino e de pesquisa, tentando levar a uma perspectiva integradora e de viés independente voltada ao encontro entre os ramos dos saberes, pois esses textos discorrem sobre intersecções amplas como, por exemplo, a interação entre instâncias de poder e efetivação da linguagem. Nesse caminho, o trabalho pretendeu discutir em quais prismas se deu uma ampliação das possibilidades de incidência artístico-filosófica.




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