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Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

A VERDADEIRA POESIA FAZ-SE CONTRA A POESIA, de Henri Michaux, por Rui Caieiro


Henri Michaux

Sem título , 1981

Acuarela sobre papel

367 x 270 mm

Coleção particular

© Henri Michaux, VEGAP, Bilbao, 2018



Desde o início deste Congresso numerosas recomendações foram dirigidas ao escritor: debruçar-se sobre os problemas sociais, meditar nas repercussões da sua palavra, pesar as suas responsabilidades, sem falar de outras exortações que as mais das vezes podemos encontrar nos sermões.


Esta forma de conceber o homem e o artista dentro do homem como perfeitamente conscientes um do outro e associados, ou o segundo comandado pelo primeiro, se é muito natural tratando-se de jornalistas ou ensaístas, já o é menos tratando-se de criadores e só com muita dificuldade é aplicável aos poetas.


O poeta não é uma excelente pessoa que prepara a seu grado cozinhados perfeitos para o género humano.


O poeta não é uma pessoa que medita nessa preparação, que a segue com atenção e rigor para em seguida entregar ao consumo o produto acabado, com vista ao maior bem-estar de todos.


O poeta não se entrega a essa operação e, mesmo que o quisesse, seriam magros os resultados. A boa poesia é rara em regime de patronato, tal como nas salas de reuniões políticas. Se alguém se torna fogosamente comunista, não resulta daí que o poeta que em si há, que as suas profundidades poéticas, sejam atingidas. Exemplo: Paul Éluard; marxista encarniçado, mas cujos poemas são aquilo que sabeis, de sonho, e do gênero mais delicado. Temos um exemplo análogo num poeta fascista de verbo extremamente violento, que se manifesta apaixonadamente e quase exclusivamente animado pela grandeza de seu país, cujos poemas, no entanto, ficaram intactos, belos e iguais, de acordo com um clima interior eminentemente sereno e clássico e sempre fora do domínio da política. Terceiro exemplo, um homem que em tempos foi um burguês descontente, e grande poeta. Depois de Louis Aragon se tornar militante comunista, devotado como ninguém à causa, mas medíocre poeta, os seus poemas de combate perderam toda a qualidade poética. Pouco importam, aliás, estes exemplos a que outros se poderiam opor, onde o talento poético seria sem dúvida discutível. Há muito que o fenómeno de que falo surpreendeu toda a gente e, em primeiro lugar, os poetas.


Não, o poeta não faz passar para a poesia aquilo que quer. Não é uma questão de vontade, nem de boa vontade. O poeta não é senhor de si próprio.


Identicamente, não está de forma alguma dentro das nossas possibilidades fazer entrar a realidade no sonho, nem o dia na noite.


Não basta observar cavalos durante o dia para infalivelmente sonhar com eles à noite, não basta propormo-nos muito obstinadamente contemplá-los em sonho para aí os ver aparecer. Não há processo seguro de provocar a aparição de seres em sonho. Para isso não basta a vontade, nem a inteligência.


Assim acontece, em menor grau, com a Poesia de inspiração.


Misteriosamente, determinado problema social, político, que emociona e interessa o homem na prosa da existência, se assim posso dizer, perde, uma vez chegado à zona das ideias poéticas, todo o dom de perturbação, toda a vida, toda a emoção, todo o valor humano. O problema aí não circula, já não vive, ou não chegou a descer até essas profundidades.


Em poesia, vale mais sentir um estremecimento a propósito de uma gota d’água que cai em terra e comunicar esse estremecimento, do que expor o melhor programa de entreajuda social.


Essa gota d’água provocará no leitor mais espiritualidade do que os maiores estímulos à elevação de sentimentos e mais humanidade do que todas as estrofes humanitárias.


É isso a transfiguração poética.


O poeta mostra a sua humanidade por vias próprias, que frequentemente são inumanidade (aparente e momentânea, esta). Mesmo anti-social ou a-social, ele pode ser social.


Para evitar a contradição relativamente a nomes atuais, prefiro escolher o exemplo de um artista criador, de um género muito menos puro que a Poesia, mas em relação ao qual há unanimidade de simpatia: Charles Chaplin. Criou um tipo de vagabundo, chamado Charlot, nitidamente imoral. Pontapés, rasteiras aos polícias sempre que os encontra; escarnece de todas as autoridades, não trabalha. Se trabalha, parte tudo, engana o patrão, não respeita a mulher de outrem, é rapinante quando a ocasião se apresenta, é um não-valor social e, contudo, ele teve uma tal influência, de tal modo reconciliou pessoas com a vida que o podíamos considerar um dos benfeitores da nossa época.


Não tenhamos pontos de vista professorais sobre arte. Porque é que Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, personagens muito pouco recomendáveis do seu tempo, representam não obstante tantas coisas para nós e são de alguma maneira benfeitores?


Não seguramente pela sua moral, mas por terem conferido um novo impulso vital, uma nova consciência.


Por isso, em vez de os comparar a pregadores espalhando a boa ou a má nova, há que compará-los ao primeiro homem que inventou o fogo. Foi um bem, foi um mal? Não sei. Foi um novo começo para a humanidade. Uma sucessão de novos começos faz uma civilização. É isso também o que o poeta mais deseja, um novo começo, uma vitória sobre a inércia, sobre a sua, sobre a da época, sobre o entorpecimento sem fim dos reacionários.


Vemos assim que a poesia, mais do que um ensinamento, mais até do que um encantamento, uma sedução, é uma das formas exorcizantes do pensamento. Pelo seu mecanismo de compensação, liberta o homem da atmosfera viciada, deixa respirar aquele que asfixiava. Transforma um estado de alma intolerável noutro satisfatório. É, pois, o social, mas de uma forma mais complexa e indireta do que se diz.


Sem o parecer, respondo desta maneira à pergunta: “Qual a finalidade da poesia?” – A de nos tornar habitável o inabitável, respirável o irrespirável.


Para falar mais especialmente da poesia nova, esta tende a procurar obter o segredo do estado poético, da substância poética.


Abandonando o verso, o versículo, a rima, a rima interior e até o ritmo, despojando-se cada vez mais, ela busca a região poética do ser interior, região que outrora era talvez a das lendas, e uma parte do domínio religioso. (Uma parte apenas. O poeta e meu amigo Jules Supervielle acaba de exprimir uma ideia análoga.)


Uma confiança acrescida proveniente da confiança dada, uma confiança particular devida ao progresso da psicopatologia, da psicanálise, da etnografia, talvez da metafísica, e dum neo-ocultismo, um conhecimento cada vez mais circunstanciado das relações cérebro-inteligência, cérebro-glândulas, cérebro-sangue, espírito-nervos, o estudo dia a dia mais desenvolvido e experimental das perturbações da linguagem, da sinestesia, das imagens, do subconsciente e da inteligência, tende a dar ao poeta a curiosidade de tocar tudo isso do interior, e o gosto de incursões mais audaciosas nos estados secundários, nos estados perigosos do eu.


Por outro lado, as modificações na vida privada e social dos homens, cada vez mais rápidas graças ao maquinismo e à intrusão da ciência nos elementos mais humanos, obrigarão o poeta a criar paralelamente uma nova óptica. Tal é, segundo creio, o maior futuro imediato da Poesia.

Mas um poeta (nasceu um hoje, talvez) subverterá sem dúvida esta nova poesia. Tanto melhor.

Porque a verdadeira Poesia faz-se contra a Poesia da época precedente, não certamente por ódio, embora por vezes ingenuamente dê essa aparência, mas porque é chamada a mostrar a sua dupla tendência, que é em primeiro lugar trazer o fogo, o impulso novo, a nova tomada da consciência da época, e em segundo lugar libertar o homem de uma atmosfera envelhecida, gasta, viciada.


O papel do poeta consiste em ser o primeiro a senti-la, a descobrir uma janela para abrir ou, mais exatamente, em abrir um abcesso do subconsciente.


Foi talvez neste sentido que se disse: “O poeta é um grande médico”, como aliás o cômico. Assim ele manifesta a sua segunda tendência, que chamei exorcizante. Faz desaparecer a sedução da época precedente, da sua literatura e, em parte, também da época presente. Essas duas tendências conjugam-se, de resto, numa só força em direção ao futuro.


Vemos que no início o poeta está sozinho, parte sozinho à descoberta. A sua verdadeira ação social vem mais tarde, quando a humanidade quase sem ele querer o incorpora.


Esta incorporação faz-se de forma tão natural que muitas vezes imaginamos retrospectivamente, com algum simplismo, que o poeta deu o tom à época precedente.


Assim se torna eternamente atual o poeta que teve a coragem de não o ser demasiado cedo.


Tradução: Rui Caieiro



Henri Michaux nasceu em 24 de maio de 1899, em Namur, Bélgica, e morreu em 1984, com 85 anos, em Paris. Poeta, pintor e viajante, trabalhou também durante a época do Surrealismo, embora esta informação sirva somente para situar sua produção. Michaux evitou ser rotulado de surrealista ou de qualquer outra coisa. Com uma obra extensa, tanto na poesia quanto nas artes plásticas, seu relato de maior sucesso como viajante foi “Um bárbaro na Ásia” (*), uma espécie de diário de andanças pelo continente. Também fez experiências com a alteração da consciência, como desenhos e poemas sob e sobre a influência de drogas alucinógenas, em especial a mescalina. Este não foi seu principal mote, mas é um dos dados mais divulgados sobre a vida do poeta. “Escrita livre”, “temperamento particular”, consciente da solidão intrínseca da condição humana e por vezes irônico e sarcástico; apesar destes índices, a melhor maneira de entrar em contato com Michaux, claro, é lendo-o, mas não só: viver o instante da leitura, o momento, que nunca é preso por palavras. Afinal, segundo ele, as palavras chegam “mais tarde, sempre mais tarde”.

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