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ÀS AVESSAS por Telma Scherer





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Podem me chamar de ultrapassada, mal casada, qualquer coisa. Eu era, mesmo. Mas, agora, posso desejar. Posso esperar de novo o momento mais feliz da minha vida, naquela varanda, como Clarissa Dalloway, quando ainda nem conhecia o Richard, que me deu esse sobrenome, e ainda era, portanto, Clarissa Parry. Clara não sabe de nada, porque não leu o meu romance da Virginia.

Eu queria ser Clarissa Setton, mas isso era impensável. Já era apaixonada por Sally, Sally Setton, a deusa que, quando jovem, era a mulher mais linda que existira nesse mundo de vocês e no nosso mundo das personagens, até então. Ainda bem que a Luísa incluiu essas frases, porque vocês vão ficar se perguntando como eu, Clarissa, pude ser tão apaixonada por uma mulher e ter reprimido isso em tantos livros. E alguns vão até conferir no meu livro da Virginia. Ainda bem. Se repararem, mesmo na minha vidinha jovem, na pensão, eu tinha uma deusa proibida, a Dudu, que eu convenci o Erico a inserir, nem que fosse como a amiga desfrutável que tia Zina não me deixava ver.


Vocês vão argumentar que na minha vida londrina eu também me apaixonei por Peter, aquele maluco, aventureiro, intenso demais para mim. E preferi Richard, um homem high society, meio tanso, mas tranquilo, porque eu queria um casamento sem brigas. Não sou boba, já que não poderia haver nada a mais com Sally, que eu tivesse festas, flores, vestidos lindos, comodidades.


Mas eu sempre amei aquela mulher. Quando Sally me beijou, em Bourton, eu esqueci completamente que existira um Lovelace. Eu estava de branco, o tempo era bom, anoitecia, e ela era a pessoa mais interessante que eu conhecera. Nós andávamos todos juntos, mas quanta diferença entre ela e os rapazes. Quando Richard surgiu, com seu jeito apaziguador, o Peter logo entendeu que eu me casaria com aquele almofadinha, porque o tratava de um modo muito maternal.

Sally era morena, olhos grandes, ousada, uma mulher meio desgarrada e que sempre dizia o que pensava. Sabia se expressar como ninguém. Como é que eu não iria me apaixonar?


Desde nova, entendi que um homem é um estorvo na vida de uma mulher. Há que saber escolher o menos pior, o que nos incomode menos. Para possuir algum atrativo, tem que saber desenhar, tocar piano, cavalgar loucamente pelas florestas, ir para as Índias, alguma coisa, enfim. Algo que compense esse probleminha natural que é ser homem.

Aprendi observando as mais velhas, e amando Sally, claro. E é por isso que não casarei e terei sempre menos de trinta anos. O que eu gostava no Vasco eram as suas leituras em francês, o seu talento para as ilustrações, a rebeldia. A gente tem que saber valorizar as qualidades de um homem, e não ver só os defeitos, como essas novas feministas, tão radicais. Pois bem: Vasco era um ótimo imitador, e me imitou nisso de desobedecer, desde quando éramos crianças. É claro que eu era melhor, nisso, como em quase tudo. Desobedecia sem ser reconhecida. Mas os homens querem é cantar de galo. Por isso, ele levou a pecha de ousado.

Mas a ousadia de Vasco veio de Sally. E do que eu aprendi com as prostitutas. Com as prostitutas lá, no século dezoito. Ele era mais inteligente do que papai, é certo, que depois de ter perdido todos os bens, ainda foi se meter em confusão e acabou baleado. Papai não tinha esperteza. Vou dizer uma coisa que nunca tive a oportunidade de manifestar, assim: sou chateada com políticas e políticos, apesar de tudo. Detesto-os! O Brasil é o país da paz comprada à força e a pais baleados, ou sumidos, e a homens inteligentes, como o Vasco, sem trabalho, e à custa de Inglaterras e seus ídolos, seus mártires, suas literaturas. Essa geração mais nova sabe é nada.


Acho que a palavra “política”, como “ditadura”, também desperta as dores da Clara, oh meu Deus. Jogou-se no chão, agorinha, a testa contorcida. Pobre Clara, oh, pobrezinha!


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Eu estava semimorta no mundo das personagens quando o Erico Verissimo, numa manhã de setembro, parou na varanda do seu apartamento, tomando café. Era 1932. Morava num daqueles prédios que circundam a Praça da Matriz, em Porto Alegre. Os credores viviam batendo à porta. Trabalhava dia e noite, e não vencia as despesas.

Os jacarandás já tingiam o chão de roxo, fazendo contraste com as flores amarelas daquelas árvores altas, os guapuruvus. Ele viu uma rapariguita vestidinha em seu uniforme de normalista, e pensou que ela era a própria primavera. Era eu, que surgia depois de ele ter trabalhado no livro de Virginia. A mocinha não saía da sua cabeça. Ficou dias e dias me recompondo, juntando meus cacos de mulher estuprada. Para a Virginia, eu aparecera em um trem: era uma senhora pobre que ela vira conversando com um sujeito mau, sobre dívidas. Depois, finalmente, me pôs numa casa rica e com um marido membro do parlamento inglês.

Não lembro de ter sentido dores, nem as crises que a Clarinha tem. Mesmo agora, voltando no romance da Luísa, jamais senti isso. Um dia, a dor dela começou quando ela estava almoçando com o padre, e confesso que rezei, aqui, algumas avemarias.



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O senhor esteja convosco. Eu já tinha decorado os detalhes do altar, com seu rosto de Deus, todo pintado em cinza e branco. Ele ficava lá em cima, de olhos bravos, repressores, sobre uma nuvem, sobre a cabeça sangrenta do Cristo, e o peito nu e machucado, e aquela tanga, que quase caía.

Ele está no meio de nós. Só estaria no meio de nós se caísse, ainda bem que Ele está lá em cima. Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo, segundo São Marcos. Todo aquele sangue, e fumaça, e os olhos de Deus, e a cruz pesada de Cristo, tudo sobre a cabeça do padre, coitado, mais branco do que a tanga.

Naquele tempo, Jesus se manifestou aos discípulos, dizendo... E Juca e Ernesto, que nunca iam à missa? Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho. Eu não conhecia nem a cidade vizinha e não sabia bem como anunciar nada, mas iria pelo mundo todo se Deus mandasse. E tomara que fosse logo!

Quem crer e for batizado será salvo. Batizadíssima! Ainda mais com as pregações do pai. Quem não crer será condenado. Mas quem matar bois para comer, não. Expulsarão demônios em meu nome. Oh! Teriam que expulsá-los de mim. Depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu. Palavra da salvação. Glória a vós, Senhor, e às carnes dos bichos sacrificados. E ao leite condensado. A senhora pode cortar mais um pedaço? Glória a vós, Senhor. Oh! Como eu sou pecadora!


E Juca e Ernesto? Bem feito, porque Deus não iria mandá-los pelo mundo todo. O padre começou a homilia. Meus filhos. Tenho pai em casa, no céu e na igreja, também. Tanto pai. E mãe, só uma. Ah! Mas tem Nossa Senhora. Cadê ela? Lá embaixo. Cristo e Deus, que são homens, ficam no altar, e Nossa Senhora fica lá na capelinha. Juca e Ernesto ficam na sala, eu no quarto. Nossa Senhora também deve preferir a solidão?

O padre falava devagar, como um professor.

− Esses jovens, que falta carinho em casa, que falta atenção da mãe, que falta atenção do pai e da família, que ficam perdidos, abandonados.


Achei que tinha algo estranho na frase, repetitivo. Os padres estudavam em duas faculdades, deviam saber o porquê de tanto “que”.

− Esses jovens estão distantes da Palavra do Senhor. E as mães se queixam e perguntam, como é que o meu filho faz isso, que cai em drogas, que não quer estudar, que não quer ajudar em casa, que não quer vir na missa!

O “que” não diz nada, não tem significado. “Casa” tem, “olho” tem, “blusa” tem, até “porque” é cheio de significados, separado ou junto. Mas o “que”.

− E eu pergunto: quanto tempo essa mãe e esse pai realmente fica com essa filha, com esse filho?


Juca e Ernesto eram filhos e não filhas. Clarinha! Vem aqui, muda o canal, me traz uma água. Olha, como ela é pequenininha!

− São ovelhas desgarradas.


O padre estava inspirado.

− Quando estamos confiantes como evangelizadores do nosso lar!


Não entendi como ele conseguia colocar essa palavra comprida. Mas tudo bem, eu estava confiante agora, mais do que nunca. Tinha finalmente encontrado a chave do meu quarto. Anos revirando as latas da despensa. Quando a mãe não estava em casa, trinc. Tinha tardes em que eu morria de vontade de ir ao banheiro. Mãe, a Clara ficou trancada no quarto o dia inteiro. Deixa ela, deixa ela. Eu saía com o livro na mão e o estômago roncando. Fazia a alegria da mãe, ajudava a botar a mesa do café.


− Eu pergunto: que valores esses jovens vão levar pra suas famílias, amanhã? Que valores?


Isso de “valores” era tema da Vilma. O padre tinha saído da aula de português direto para a de matemática.

A senhora do banco ao lado deu um pigarro, mexeu nos óculos de aros pesados. Começaram a cantar e fazer filas.

Um dia, o Ernesto perguntara se eu já tinha visto homem pelado. Respondi que sim, e ele ficou rindo da minha cara. Todo sábado, das dezoito às dezenove, ou domingo, das oito às nove, era o mesmo: aquele corpo aberto sobre todas as cabeças.

Entrei na fila. Estava lá em cima, o T do Todo-poderoso, descendo sobre os fiéis, branco, branco, de braços abertos, e também ali embaixo, deitado, do lado direito, fiscalizado por Deus. Eu o conhecia de cor, era obrigada a beijá-lo durante a cerimônia da vela, eu beijava as feridas, o fiozinho prateado girava na mão do padre, balançava a fumaça que saía do turíbulo. Um cheiro enjoativo, cheiro de churrasco, as feridas de Jesus, o sangue, a carne, o corpo de Cristo, o padre pecando, o pai, por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, toda honra e toda glória.


Na hora, fiquei envergonhada, o padre tão perto, a voz fraca: Amém. A hóstia grudou no céu da boca e eu voltei para o banco olhando para baixo, de repente me senti culpada por colocar na boca o corpo de Cristo.


A senhora dos óculos já tinha ido embora.



Excertos do romance As avessas, de Telma Scherer, publicado por Anderson Bernardes através da editora Ipêamarelo.




Telma Scherer é artista e professora do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC, na área de literatura brasileira. Publicou seis livros de poesia, dentre os quais Não alimente a escritora (editora Hecatombe/Urutau), Depois da água (editora Nave), O sono de Cronos (editora Terra Redonda) e Squirt (Terra Redonda), este último semifinalista do prêmio Oceanos 2020. É autora, ainda, dos romances As avessas (Ipêamarelo) e Lugares ogros (Caiaponte) e do híbrido Entre o vento e o peso da página (Medusa). É formada em Filosofia e em Artes Visuais, com mestrado e doutorado em Literatura. Tem pesquisa na área da poesia expandida e da performance, bem como do contágio entre modos de escrita em literatura e artes visuais. Atuou como poeta e performer em eventos culturais do SESC e de prefeituras do sul do Brasil, com ênfase na participação comunitária, em projetos como Descentralização da Cultura.

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