PROSA VOLUME 5 NÚMERO 2
Heraldo deu uma última baforada e jogou a bituca de cigarro sobre o resto da comida velha espalhada no chão. Observou suas mãos ossudas e vazias, os dedos com pontos de sujeira sob as unhas. Uniu as mãos e estalou as juntas. Agora, já podia trabalhar. Levantou o braço inerte do filho, que repousava sobre seu próprio ventre de menino, e o colocou de lado. O caminho estava livre. Pegou um estilete enferrujado e o enfiou na barriga magra de Tonho, na qual se contavam os ossos. Cuspiu sobre o amontoado de garrafas de cerveja e cacos de vidro no chão imundo, murmurando:
— Ele tem que sentir na pele como dói ser destruído. Antes que a destruição de fato ocorra.
Algumas moscam zuniam em volta deles. Rita, a mãe do menino de sete anos, se afastou do fogareiro onde o companheiro costumava aquecer o crack e tomou mais um pouco da cerveja morna, bebendo do gargalo. Uns goles desceram pelo canto da boca. Ela limpou com o braço e perguntou, olhando para o menino:
— Você não tá exagerando? Acho que ele desmaiou.
— Melhor. Assim ele não se mexe e estraga o desenho.
Ela riu sem saber de quê e se jogou no sofá puído, as espumas saltando, enquanto observava os cortes enviesados que o homem fazia no barriga do filho:
— Não sabia que você era tatuador.
— Nem eu. Mas a pedra faz a gente descobrir talentos.
— Foi crack que você usou?
— Não. Hoje consegui coisa fina. Coisa de bacana.
E ele interrompeu os cortes para mostrar a ela umas bolinhas coloridas:
— Te daria algumas. Se não tivesse tão pouco.
Ele voltou a se entreter com a tatuagem. Rita se remexeu no sofá, esticou o pé e empurrou o menino com suavidade. O homem reclamou:
— Para com isso, mulher. Vai estragar o desenho.
Ela se recolheu novamente. Se o filho não reagia com os cortes do estilete, iria reagir com os toques do seu pé? Perguntou ao homem:
— Ele tá muito tempo parado. Será que morreu?
— Não seja boba. Claro que não. O moleque é forte. Eu apanhava do meu pai muito mais do que ele apanha de mim. Nunca morri. Por que ele iria morrer?
Ela desceu do sofá e se jogou ao chão ao lado do menino, o corpo todo na horizontal, a cabeça apoiada no braço. O companheiro devia ter razão. Observou os cortes irregulares, o sangue de um vermelho intenso. Ainda não conseguia entender o que era aquilo:
— Que desenho é esse?
— O que você imagina?
— Não sei.
— É uma borboleta. Não parece?
— Talvez.
— Um dia, quero desenhar algo que possa ser qualquer coisa que a gente sonhar.
A mulher coçou a cabeça:
— Qualquer coisa?
— Diz aí um sonho teu.
— Não tenho sonhos.
Depois apalpou o menino:
— Tá frio!
O homem não ouviu e continuou:
— Nenhum sonho? Nem quando era criança?
Ela arqueou as sobrancelhas, como se lembrasse de algo antigo demais e falou numa voz insegura:
— O menino era meu sonho. Ser mãe pra alguém me respeitar.
— Meu sonho era voar. Nunca quis ser gente, mas algo com asas.
Um movimento atraiu a atenção dela:
— A barriga do menino tá tremendo, percebeu?
— Não. O moleque continua imóvel. Duro que nem estátua de praça.
— Será que ele tá sonhando?
— Tá colaborando. Feliz porque vai ter uma obra de arte desenhada bem na barriga.
Continuou manipulando o estilete, ora cortando a pele, ora cortando o vazio. De repente, foi como se o ar lhe faltasse e, no susto, Heraldo atirou o estilete longe:
— Percebi, Rita!
— Percebeu o quê?
— A barriga do moleque! Se mexeu como se fosse um bicho. Algo grande vai acontecer. Você não sente?
Ela fechou os olhos e esperou. Não sentia nada. Abriu as pálpebras depois do que lhe apareceu muito tempo, sobressaltada com os gritos do companheiro:
— Aconteceu, Rita! Olha! Olha!
A princípio, ela não viu nada. Depois também gritou:
— Eu vejo!
Olhos arregalados, correu para sentar ao lado do homem. Muito juntos, mãos entrelaçadas, assistiram a tudo hipnotizados e felizes. Uma borboleta sangrenta se destacou da carne magra do menino, bateu asas e alçou voo pela janela do casebre, desaparecendo na escuridão da noite.
Lindevania Martins é graduada em Direito com Mestrado em Cultura e Sociedade. Ex-delegada de polícia, é defensora pública atuando no Núcleo Especializado de Defesa da Mulher e População LGBT da Defensoria maranhense. Contista e poeta, é autora dos livros de contos “Anônimos” (Prefeitura de São Luís, 2003), “Zona de Desconforto” (Editora Benfazeja, 2018) e “Longe de Mim” (Sangre Editorial, 2019). Autora do livro de poemas “Fora dos Trilhos” (Ed. Venas Abiertas, 2019).
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