top of page

Victor Sosa: a arte de alucinar cristais por Claudio Daniel

ENSAIO VOLUME 5 NÚMERO 2



Víctor Sosa (1956-2020) foi um poeta capaz de construir estranhas arquiteturas verbais, alucinando o idioma. Seu meticuloso trabalho com a metáfora parece aproximá-lo do surrealismo e do neobarroco, numa primeira leitura de sua escrita transtornada. Porém, o tráfico de estilemas e códigos do imaginário, em sua poesia (que navega entre símbolos e paisagens orientais, mas também nas tradições místicas e poéticas do Ocidente, na alquimia das vogais de Rimbaud e no mergulho em cenários devastados de nossa triste época) não se resume a poucos pontos luminosos. A experiência vital, a pulsação do agora, dos movimentos contínuos do ser no tempo, está gravada (ou grafada) em suas linhas e estrofes, numa consciente mescla de sensação, onirismo e escritura: arte mandálica, que combina e transfigura cores e elementos geométricos em camadas de som e sentido. Um poeta raro, que não se satisfaz com o olhar fotográfico, imediato e conciso da aparência dos fenômenos. Seu jorro verbal, caudaloso e multifacetado, sem economia do obscuro e do paradoxal, indica uma visão da realidade como algo que não se reduz à simples montagem de um quebra-cabeças de poucas peças. Nada é tão linear, tão lógico e previsível como a crônica de jornal. A Natureza, que criou o lagarto e a vulva, os cristais e o caramujo, a lepra e a madrepérola, é uma deusa bizarra e caprichosa; e o poeta, seu sacerdote, por dever de ofício e devoção à deidade, não pode fazer por menos. Limitar-se à contemplação rotineira das coisas, longe de ser uma postura realista, conduz a um afastamento do "real", esse ente metafísico que não se distingue, em seu significado mais profundo, da mente e do universo.


A concepção do poeta como um pequeno deus ou taumaturgo, expressa pelo chileno Vicente Huidobro, sem dúvida está presente nas insólitas partituras de Víctor Sosa desde o seu livro de estréia, Sujeto Omitido (1983), até o mais recente, Mansão Mabuse (2003), perfazendo vinte anos de jornada criadora. Cada um de seus livros, porém, tem o sabor de ser o primeiro, de mostrar um novo enfoque ou experiência, de tramar um outro jogo com os vocábulos. Sunyata (1992) traz poemas breves que recordam pinturas chinesas ou bordados em seda (sem omitir, na aparente delicadeza, a brutalidade semântica e referencial que faz contraponto com a busca do maravilhoso). No poema (modus vivendi) o poeta nos diz, com a síntese abrupta de um haicai: "empinado no galho; retráteis / as garras. / pulsão de sangue / ante sua presa o tigre / salto e sobressalto: uma / única chispa; imóvel / anoitece", que parece dialogar com o nosso Sousândrade ("num relâmpago o tigre atrás da corça"). Nesse mesmo volume, no entanto, surge, imprevisto, um poema de outro fôlego, beirando a prosa e o excêntrico discurso visionário: "mitologia do Ocidente: mitologia da paixão / um homem / clama a Deus por sua alma que arde: Santo Agostinho e as / trapaças da dúvida / Nosferatu senta-se com sua futura / vítima lamentando-se por séculos de solidão". Esta peça (bem como outras composições do final do volume) anuncia a experiência de títulos posteriores, e em particular Dizer é Abissínia (1991), onde o poema longo se impõe (não raro como seqüência de breves imagens, mas também como tecido contínuo, uníssono). Os versos (ou antiversos?) deste livro, tramados como jogos de metamorfoses, brincam com a aproximação e distanciamento entre palavra e coisa, conceito e representação, num fascinante esconde-esconde que revela, além da veia taumatúrgica, a crescente ausência de significados de nossa época: "diga-o assim, sem baixar muito a voz - e veja / - veja com os olhos da voz - como o céu / a desenha, a fixa em uma nuvem fugaz e a dissolve / nessa alegre tempestade que estala".


A sensação de esvaziamento do discurso (sunyata, em sânscrito, significa Vazio), que corresponde à perda de sentido das utopias passadas, trazendo inevitável solidão espiritual, atinge seu ponto máximo em Os Animais Furiosos (2003). Neste poema perturbador, dividido em seções (como os movimentos de uma peça para concerto), o poeta erige um longo bestiário, que tem como prelúdio certa enumeração caótica de animais possíveis ou imaginários, numa prosa permeada de poesia que recorda os inventos de Gertrude Stein: "os animais furiosos; os animais mansos; os animais anômalos; os animais carnívoros; os animais anfíbios; os animais articulados; os animais inarticulados; os animais microscópicos; os animais letais". Logo, porém, o poeta muda de tom, intercalando uma longa seqüência de versos para depois alcançar uma deliberada sinfonia de ruídos: letras e sílabas dispostos de maneira geométrica no espaço em branco do papel, sinalizando a abstração e a lacuna, e logo a abolição da linguagem (com ressonâncias não do Lance de Dados de Mallarmé, mas dos cantos finais de Altazor, de Huidobro).


Destruição do signo e do significado, mergulho no Absoluto, que é também Ausência. Tornar a escrita fluida e transparente como a Água dos Tempos. Esse deslizar no grau zero da grafia, voz que é silêncio, tem como contraparte dialética a tarefa de reordenação da escritura, ou refundução do real pela palavra (Heidegger). Tal é a direção (paralela) seguida em Ver uma Luz, onde o abstrato se concretiza na formulação de uma realidade autônoma, "com sua própria fauna e flora", no dizer do chileno. Víctor: "Ver-te assim há que ver: / halógena de halo e vertebrada / entre os sóis da tarde um dia. / Côncava a tarde como côncavo / o germe do desejo no desejo do germe; / um inconcluso conclave de luz nos inocula / e lambe, lindo, o lombal alazão e lindamente / ondula no dominó de teu olhar" (aqui, em tradução de Luiz Roberto Guedes). Curiosamente, esta composição bizarra, que resiste a qualquer tentativa de hermenêutica, foi incluída no mesmo volume que Os Animais Furiosos, fazendo um tríptico com a jornada alucinógena intitulada Wirikuta. Três movimentos distintos, opostos, contraditórios, que se completam numa unidade multipolar ou balé prismático que nos convida a ver o mundo de maneira não rotineira e viciada. Neste sentido, o que temos aqui não é uma elegia grave e melancólica, mas um convite à dança, ao encantamento, à redescoberta das palavras e do mundo. Ler e traduzir Víctor Sosa é um fascinante desafio, que só vem explicitar ainda mais a urgência do diálogo com a literatura experimental de língua espanhola, possuidora de nomes fundamentais como Eduardo Milán, Roberto Echavarren, Sílvia Guerra, Marosa di Giorgio e Eduardo Espina (para citarmos apenas autores do Uruguai, esse território tão próximo e tão distante de nós brasileiros). Este livro é menos um convite que uma incitação à descoberta - para ver uma luz.




Artigo publicado em 2004 na revista eletrônica Zunái em sua “primeira dentição”, revistazunai.com/ensaios/claudio_daniel_victor_sosa.htm

14 visualizações0 comentário
bottom of page