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UMA SEMANA PARA A MODERNIDADE: O CASO OSWALD, por André Dick




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Foi Oswald de Andrade quem liderou, por meio de jornais e na procura de companheiros para defender seus ideais poéticos, a propagação do Modernismo, baseado nas correntes de vanguarda europeia. Ele teria como ponto de difusão a Semana de Arte Moderna, que aconteceu entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Sem a poesia e a teoria de Oswald, possivelmente o modernismo não teria sido o que foi. Como ele afirma: “Os elementos que utilizamos contra os velhos recursos da poesia sabida e metrificada são a pela liberdade da criação, a valorização do inconsciente, do cotidiano e do mecânico. Do cotidiano que vai até o vulgar estão o popular e o revolucionário. No inconsciente escondem-se o primitivo, o nativo, o geográfico e o telúrico. Nesses caminhos se cria a poesia nova no Brasil”.[1]

O país estava, como a literatura, em fase de mudança, dividido entre o rural e o urbano. Os senhores rurais estavam no poder, fortalecidos pela economia do café, cuja centralização se dava no eixo São Paulo-Minas Gerais; a sociedade era organizada em oligarquias, com famílias e grupos políticos se perpetuando no poder e os presidentes eram eleitos por São Paulo ou Minas Gerais, gerando a política café-com-leite, cuja duração se estendeu até 1930. As cidades, principalmente São Paulo, conheciam uma rápida industrialização, causada pela Primeira Guerra Mundial, que proporcionava lucros somente à burguesia industrial, embora marginalizada pelo governo federal, voltado para a produção e a exportação do café. Nesse panorama, também aumentava, consideravelmente, o número de imigrantes europeus, sobretudo italianos, que se dirigiam tanto para a zona urbana quanto para a zona rural. A sociedade era, então, claramente dividida. Havia os barões do café e a alta burguesia lucrando e a pequena burguesia, formada por funcionários públicos e comerciantes, entre outros, deixada de lado. São Paulo era o palco de uma gama considerável de trabalhadores, muitos deles anarquistas, responsáveis por uma série de greves históricas.


A Semana de Arte Moderna se apresentou como um ataque à aristocracia e à burguesia, dominante e impopular – no entanto, partia, em parte, de dentro dela, como quase todos os movimentos de vanguarda, a começar pela emblemática figura de Oswald, que escreveu em “O divisor das águas modernistas”:


A noite heroica da Semana consistiu na apresentação da literatura nova. Alinharam-se no palco, debaixo de tremendas vaias do teatro repleto, os srs. Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Agenor Barbosa e quem escreve estas linhas. O poeta francês Henri Mugnier de passagem por aqui nos acompanhava.[2]


Oswald viajava constantemente à França, onde vislumbrou, em 1923, o que mais tarde constituiria a poesia Pau-Brasil, a poesia brasileira de exportação, voltada, para uma linguagem adequada aos novos conceitos poéticos, despertados pelo Dadaísmo, pelo Cubismo e pelo Futurismo, além de avessa aos sonetos de Olavo Bilac.


Como observa Paulo Prado – principal patrocinador da Semana de Arte Moderna –, no prefácio do livro de poemas Pau-Brasil, lançado em 1925, um ano depois do manifesto, com o mesmo nome, “Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra”.[3] Prado afirma mais, em seu prefácio, que, para Oswald, “a volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia ‘pau-brasil’”.[4]


Para ele, “a poesia ‘pau-brasil’ é, entre nós, o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro”.[5] Esse esforço, obviamente, vinha acompanhado de uma nova visão artística europeia, alimentada pela entrada de Oswald pelo mundo das vanguardas. Como assinala Leyla Perrone-Moisés, “Todo exílio permite essa distância cognitiva; mas, no caso dos latino-americanos, propiciava tanto uma volta à origem de suas culturas quanto a descoberta das diferenças, devolvendo-os depois aos seus países mais atentos a eles do que antes da viagem”.[6]


A visão empregada pelo livro de poemas Pau-Brasil – a melhor obra do modernismo, ao lado dos manifestos, das pinturas de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e de Di Cavalcanti, dos poemas de Raul Bopp, Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho e Luís Aranha, do Macunaíma e de Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade, da música de Villa-Lobos, dos ensaios de Paulo Prado, das esculturas de Victor Brecheret e da literatura de Pagu, e obviamente os nomes se estendem –, no entanto, só pode ser devidamente explorada se tivermos um conhecimento do manifesto que o precedeu, assim como da Semana de Arte Moderna, e, no fundo, acabou por acompanha, originado, obviamente, desse novo olhar de Oswald sobre Paris, sobre o Brasil e sobre o mundo.

Enquanto Mário tinha o sonho de fazer uma gramática com as palavras grafadas da maneira que o povo as falava, Oswald realiza, em seu programa de Poesia Pau-Brasil, nela própria, e ainda no Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade, o que pode se chamar de “poética da infância”. Seu objetivo era oferecer a noção de que o novo vinha do vocabulário do povo, mas não em seu elemento digerido, antropófago – se não levarmos em conta aqui, é claro, a influência de Blaise Cendrars –, e sim em seu primeiro olhar, de criança, primitivo de outra maneira, não a mesma, portanto, de Mário. O primitivo de Mário era mais de raiz popular, o de Oswald, embora baseado num suposto olhar de criança, mais crítico, igual ao índio antropófago. Oswald define no poema “3 de maio”: “Aprendi com meu filho de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que nunca vi”.[7]


O poeta lidava com o mesmo homem primitivo, do companheiro de geração, Mário, mas possuía talvez um olhar mais crítico, recebendo com muito interesse o diálogo que alguns poetas queriam travar, com o jornal, de forma mais destacada. O escritor, assim, incorporou bem as ideias de Mallarmé e dos dadaístas na correspondência entre a poesia e o jornal, não só quando passou a pedir uma poética baseada nos fatos no cotidiano, como também, sobretudo, por meio do tratamento dado à tipografia ao trabalho gráfico dos poemas, valorizando os cortes, a sintaxe menos linear, a dispersão de palavras. No “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, do mesmo ano em que publicou o livro de poemas referente a ele, Oswald fazia o programa de sua trajetória existencial, programa este, nas palavras de Haroldo de Campos, de “dessacralização da poesia, através do despojamento da ‘aura’ de objeto único que circundava a concepção poética tradicional”.[8] Tal aura, para Haroldo, inicia, a partir da visão de Walter Benjamin, com o desenvolvimento de meios da civilização contemporânea, a industrial, em seu auge, através da fotografia, do cinema, das técnicas de impressão. O dadaísmo também estava por trás, com sua miscelânea de palavras, refazendo todos os passos que uma obra deveria seguir para ser considerada “de vanguarda”.[9] Com ele, o cinema possuía, mais do que o teatro ou a pintura, a realização mais próxima do que o indivíduo moderno queria da obra de arte, que, ao invés de propor a “ilusão da realidade”, buscava o real mais intenso, através da montagem de um grande número de “imagens parciais, sujeitas a leis próprias”.[10]



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Utilizando-se de Sigmund Freud, Oswald também tentava proporcionar aos seus estudos uma dimensão psicológica, a fim de estruturar o conceito de antropofagia, mas nunca ligando-o à ingenuidade que muitos críticos procuraram suscitar, apenas e simplesmente, na poesia Pau-Brasil. Oswald saudava a vida do selvagem, associando às revelações freudianas do comportamento humano próprias do início do século XX: no “Manifesto Antropófago”[11]: “O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido”. Com tal postura, Oswald parecia se colocar claramente, como ele mesmo observa, “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucuras, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama”. Em cápsulas telegráficas, Oswald imagina um Brasil irreal: “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais”; “Nunca fomos catequizados”; “Fizemos foi carnaval”; “Expulsamos a dinastia”. Utilizando o vocabulário do “pai” da psicanálise ele deseja a “transfiguração do Tabu em totem”, inaugurando a antropofagia. Sim, a “alegria é a prova dos nove”, no entanto Oswald parecia não alcançá-la, embora possivelmente a Antropofagia seja, como considera Augusto de Campos, a “única filosofia original brasileira”.[12]



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Há uma visão europeia sobre nossos primórdios (como a de Sérgio Buarque de Holanda), como se Walter Benjamin ou os formandos da escola de Frankfurt tentassem interpretar as origens do Brasil. Ou seja, a própria visão que muitos têm do Brasil passa pelo crivo europeu. Com a chegada dos europeus, os índios, habituados a uma “uma visão do paraíso”, se aproximaram, de certo modo, pela “força de lei” – para utilizar a expressão do filósofo Jacques Derrida, segundo o qual não há Estado que não tenha sido fundado pela violência[13] –, ao sentimento da melancolia. No entanto, Oswald de Andrade observava em seu “Manifesto Antropófago”: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”.[14] Mas de que felicidade Oswald trata? Evitando Freud em seu manifesto, não seria o próprio Oswald um autor melancólico, desde as suas seções “História do Brasil” e “Poemas da colonização” do livro Pau-Brasil?


Desde que começou a ser interpretada, a melancolia é um traço encontrado desde a Antiguidade. Como lembra Susana Kampff Lages, no seu estudo Walter Benjamin: tradução e melancolia, para Jean Starobinski, até o século XIX, a melancolia se dividiria em fases: “a da Antiguidade Clássica, a que se estende da Idade Média até o século XVIII e, finalmente, a ‘época moderna’, que abrange os séculos XVIII e XIX, em que se origina a moderna psiquiatria, e da qual mais tarde derivará a psicanálise freudiana”.[15] Na Antiguidade, “acreditava-se que a melancolia era o efeito da alteração na produção de bile negra [...], cuja sede era o baço, um dos quatro humores que, juntamente com o sangue, a bile amarela e a pituita, determinaria certas enfermidades, além de temperamentos e tipos psicológicos específicos”.[16] A partir do Renascimento, a melancolia passou a ser cultivada como a enfermidade dos artistas, dos literatos. Na medicina moderna e na psicanálise, a melancolia começa a ser vista mais como algo que provém da mente do que de caráter orgânico-corporal. Um dos primeiros a dar uma visão moderna sobre a melancolia foi Sigmund Freud, que escreveria em seu texto “Luto e melancolia”:


Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e autoenvilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição.[17]


Para Freud, o luto se dá como reação à perda de alguém querido ou de algum objeto (um livro esquecido na infância, um lugar não mais visitado), ou de alguma abstração (como o “país”, a “liberdade” ou o “ideal de alguém”), e a melancolia age às vezes em razão dos mesmos fatores, com a diferença de que se torna sintomática, da qual o sujeito tem dificuldades de se livrar, vivendo-a continuamente.[18]


No caso de Oswald, esse olhar melancólico está ligado à colonização e ao diálogo com o continente europeu. Freud se pergunta por que às vezes o sujeito consegue superar a perda de alguém que lhe é estimado, mas nunca consegue se livrar de um sentimento de melancolia. É que, para Freud, o objeto perdido é como um sentimento recalcado, dando-se no inconsciente no sujeito e recaindo sobre o ego,[19] pois a “apresentação (da coisa) inconsciente do objeto foi abandonada pela libido”[20] e, se a libido é abalada, a perda do objeto se transforma na perda do próprio ego, lembrando-se, aqui, que, nas categorias de Lacan, o Imaginário tem muitos elementos daquele. O objeto perdido de Oswald é, sem dúvida, o próprio Brasil. Como ele escreve em “Bucólica”:


Agora vamos correr o pomar antigo

Bicos aéreos de patos selvagens

Tetas verdes entre folhas

E uma passarinhada nos vaia

No tamarindo

Que decola para o anil

Árvores sentadas

Quitandas vivas de laranjas maduras

Vespas[21]


A poesia – para ficarmos no gênero em questão deste esboço de ensaio – até o modernismo de 22, com exceção de alguns nomes (como Sousândrade, Gregório de Matos, Augusto dos Anjos, Pedro Kilkerry), indicava mais um romantismo, que trazia os “eternos adãos”. Com Oswald de Andrade (1890-1954) querendo trazer o futurismo italiano às ruas de São Paulo, uma poesia cotidiana, como ele descreveu em seu “Manifesto Antropófago”, o traço não mudou. E foi ele o autor que, por meio das vanguardas, da antropofagia, pretendia destacar a origem dos índios. Ele estava apegado a um universo que já estava desaparecido.


Nesse sentido, Oswald é muito conhecido por seus versos que brincam com a linguagem do povo, com a pretensa alegria de suas teorias, no entanto é o traço melancólico que o caracteriza, aquele que percebe o Brasil como um país deteriorado pela transformação, e ciente de que suas lembranças recordam uma terra que não existe mais, sob as “estrelas de Gonçalves Dias”, como escreve em “Versos de dona Carrie”,[22] poeta que Oswald homenageia também em “Canto do regresso à pátria”, uma releitura de “Canção do exílio”.


Vejamos o poema “Menina e moça”, tematizando certa perda e o distanciamento da cidade grande, do urbanismo futurista: “Gostei de todas as festas / Porque esse negócio de missa / E procissão / É só para os olhares / Vou agora triste no trem / Com aquela paixão / No coração / Vou emagrecer / Junto às palmeiras / Malditas / Da fazenda”.[23] Ou “Que distância! / Não choro / Porque meus olhos ficam feios”.[24] Há o sentimento de que o passado não volta, em “São José del Rei”: “Bananeiras / O sol / O cansaço da ilusão / Igrejas / O ouro na serra de pedra / A decadência”.[25] A melancolia é esta aceitação da impossibilidade de existir a alegria que se imagina, de que a consciência da negatividade nessa volta constante ao passado, a “força de lei”, predomina e acaba encobrindo o próprio autor, em “Contrabando”: “[...] eu trazia no coração / Uma saudade feliz / de Paris”;[26] em “Semana Santa”: “O Brasil é onde o sangue corre / E o ouro se encaixa / No coração da muralha negra”;[27] em “Casa de Tiradentes”: “A Inconfidência / No Brasil do ouro / A história morta / Sem sentido / Vazia como a casa imensa / Maravilhas coloniais nos tetos / A igreja abandonada / E o sol sobre muros de laranja / Na paz do capim”;[28] em “Cielo e mare”: “No bar / Famílias tristes / Alguns gigolô sem efeito / Eu jogo / Ele joga / O navio joga”;[29] e em “Ouro Preto”: “Mas a dramatização finalizou / Ladeiras do passado”.[30] Para Oswald, se tudo no Brasil em seus manifestos resultava em carnaval e alegria, na leitura de sua poesia o que vemos, em meio a um sentimento agridoce, são “Famílias tristes”, embora sempre encobertas por um sol e por passarinhos nas árvores.


O próprio Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, com referências diretas à infância, além dos desenhos, para não falar de seus projetos de prosa poética (Serafim Ponte Grande e Memórias sentimentais de João Miramar), mostra um tempo que não existe mais, ou melhor, existe, porém em algum lugar recluso da experiência de Oswald como sujeito.


Há uma pretensão na ingenuidade dos versos de Oswald, em suas quase canções descompromissadas: é a pretensão de uma voz que, sabendo da sua melancolia, estagnação, permanência num passado remoto, quer a todo custo movimentar o discurso de vanguarda. Não há nada simplista nessa tentativa oswaldiana; pelo contrário, pode-se localizar em sua voz todo o princípio ativo da psicologia freudiana. Na sua negação a Freud, encontra-se a sua própria definição. Ao negar Freud, Oswald está dando acesso ao que ele de fato apresenta em sua obra. Não por acaso, ele nomeia um texto sobre Retrato do Brasil, de Paulo Prado, como “Um livro pré-freudiano”, talvez um dos seus escritos com trechos que deixam mais clara sua melancolia insuspeita:


O livro é um panfleto admirável que a gente lê inteirinho com alegria. [...] Os quadros de vida de luxo de senhoras e escravos, negros e índios, os séquitos, as procissões, os corpos nus sobre a cambraia caseira, tudo isso bem documentado, bem pintado, bem vivido, é um hino que forra qualquer invólucro de falso pessimismo.[31]


Do mesmo modo, o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”[32] proposto por Oswald era um conjunto de referências ao universo cotidiano, e, sobretudo, melancólico. O poeta está falando de um universo que nos caracteriza, mas, que, reitera-se, ao mesmo tempo, não existe. Sua primeira proposição é clássica: “A poesia existe nos fatos”. É seguida de um olhar sobre a realidade circundante, com citação de Wagner (Oswald, aqui com saudade da Europa, visualiza um músico de lá num cenário que lhe é estranho):


Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.


A “Antropofagia” de Oswald, por meio da produção do manifesto e dos poemas, para Haroldo de Campos, é “o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’ [...], mas sob o ponto de vista desabusado do ‘mau selvagem’, devorador de brancos, antropófago”.[33] Assim, o que Oswald realiza em sua obra representa os resíduos da poesia de Cendrars apenas em sua forma. Ele oferece ao leitor uma visão crítica da história, não encontrada no exotismo sublimado por Cendrars nas paisagens do Brasil que o encantaram, mas diz mais: o poeta sabe que não existe o Brasil que imagina – ou seja, o Brasil sem a “força de lei” –, daí melancólico. Ao mesmo tempo, o elemento antropofágico coloca Oswald entre os poetas de referência para a teoria da poesia concreta, por este movimento de antropofagia e (re)criação sobre elementos que isolam o Brasil do estrangeiro, e o coloca em contato com meios de produção eurocêntricos.



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Se Oswald descobriu o Brasil em cima da Torre Eiffel, é porque descobriu que somos tão melancólicos quanto os europeus. Como escreve em “Meus oito anos”: “Oh que saudades que eu tenho / Da aurora da minha vida / Das horas / De minha infância / Que os anos não trazem mais”.[34] Resta a visão dos cafezais devastados pela quebra na bolsa, a consciência de que os donos das fazendas habitam “terras imaginárias” perdidas no tempo: “A escola e a fazenda de duzentas anos” (em “Barreiro”[35]) e “Este córrego há trezentas anos / Que atrai os faiscadores” (em “Sabará”[36]) – e esse é também o retrato da Semana, de uma cultura ao mesmo tempo dominada pela “força de lei” e pela busca de uma liberdade para a linguagem. O “imaginário” de Oswald poderia, em outro momento, passar a ser um espaço para o discurso lacaniano. Ele é o “fazendeiro na rede” que avista, talvez de sua imensa varanda, a “Torre Eiffel noturna e sideral” em “Morro Azul”.[37]


Junto com a melancolia, o discurso de Oswald se situa, como aponta Agamben, num ponto que navega entre a infância e o que resta da infância no universo adulto. Para ele, a filosofia é um jogo de armar, explorando como Benjamin, o universo infantil. A infância, afinal, é o início da profanação da linguagem, ou seja, de sua descoberta, principalmente poética. E a infância, sem dúvida, carrega o sentido de toda uma existência.

O sujeito da linguagem é fundamento da experiência e do conhecimento, e a origem transcendental da linguagem se localiza, portanto, na infância do homem, a pura língua do discurso humano. A ideia de uma infância como uma “substância psíquica” pré-subjetiva revela-se “um mito”, como aquela de um sujeito pré-linguístico. Isso porque, na visão de Agamben, infância e linguagem estão intrinsecamente ligadas, cada uma remete uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância”,[38] isto é, a infância em questão não assinala apenas um período, mas coexiste originalmente com a linguagem, “constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dele efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito”.[39] A infância seria o inefável, a transcendência, o que ocorre nessa passagem do signo ao discurso.


O que se destaca em Oswald – como Agamben – é sua predileção por uma certa infância da linguagem, ideia extraída não só dos românticos e dos seus sucessores. Benjamin afirmava que o Adão havia sido o primeiro filósofo, e há na sua figura uma representação dessa infância a que Agamben se refere, que coloca a vida como um jogo entre rito e linguagem. No último texto de Profanações, em que ganha relevo essa visualização benjaminiana, a profanação é vista como uma colocação dessa linguagem em plano comum. Não deixa de ser uma obsessão de Agamben, pois, em Infância e história, ele já recorria a essa infância da linguagem, mesmo no homem adulto. Essa permanência da infância é a mais clara presença da melancolia, como em “A laçada”: “E o médico veio de Chevrolé / Trazendo um prognóstico / E toda a minha infância nos olhos”[40], assim como aquele que espera, como em “O cruzeiro”, ver o “Primeiro farol da minha terra”.[41]


O livro Pau-Brasil, abalando parte do academicismo dominante, mesmo após a Semana de Arte Moderna, por meio de um estilo imprevisível àquela época, trazia uma poesia ao mesmo tempo primitiva, ácida e bem-humorada na superfície; em sua profundeza, ali estava o homem Oswald, tentando reencontrar “terras imaginárias / Onde nasceria a lavoura verde do café”[42] e “Pássaros que ninguém vê nas árvores”.[43]


Fazendo referências a outros textos e a situações da história do Brasil, indicava a existência clara de um poeta radical, como afirmava Haroldo de Campos, em busca de uma linguagem adequada ao seu tempo, mas profundamente imbuída em recuperar o passado, na clareza e na objetividade seus maiores atributos. Uma poesia que se mantinha no imaginário melancólico de uma infância eterna, eis o senhor Oswald de Andrade sentado na varanda de sua fazenda:


No Pão de Açúcar

De Cada Dia

Dai-nos Senhor

A poesia

De Cada dia[44]



 

André Dick nasceu em Porto Alegre (RS), em 1976. É poeta, crítico literário e doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com tese sobre a obra completa de Stéphane Mallarmé. Publicou os livros de poesia Grafias (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2002), Papéis de parede (Belo Horizonte: Funalfa Edições; Rio de Janeiro: 7Letras, 2004), Calendário (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010) e Neste momento (Curitiba: Kotter Editorial, 2022), assim como a coletânea de traduções Poesias de Mallarmé (Bauru: Lumme Editor, 2010). Também organizou Signâncias: reflexões sobre Haroldo de Campos (São Paulo: Risco Editorial, 2010) e A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski (Rio de Janeiro: Lamparina, 2005), este com Fabiano Calixto. Publica críticas de filmes no Cinematographe.



[1] ANDRADE, Oswald de. Informe sobre o modernismo. In: ANDRADE, Oswald de. Estética e política (Org. Maria Eugenia Boaventura). 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Globo, 2011, p. 147. (Obras Completas de Oswald de Andrade). [2] ANDRADE, Oswald de. O divisor das águas modernistas. In: ANDRADE, Oswald de. Estética e política (Org. Maria Eugenia Boaventura). 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Globo, 2011, p. 78-79. (Obras Completas de Oswald de Andrade). [3] PRADO, Paulo. Poesia pau-brasil. In: ANDRADE, Oswald de Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 59. [4] PRADO, Paulo. Poesia pau-brasil. In: ANDRADE, Oswald de Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 59. [5] PRADO, Paulo. Poesia pau-brasil. In: ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981. p. 60. [6] PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 39. [7] ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 101. [8] CAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade In: ANDRADE, Oswald de Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 19. [9] CAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade In: ANDRADE, Oswald de Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 19. [10] CAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade In: ANDRADE, Oswald de Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 19. [11] MANIFESTO Antropófago. Tropicália. Disponível em: http://tropicalia.com.br/leituras-complementares/manifesto-antropofago. Acesso em: 28 jun. 2022. [12] CAMPOS, Augusto de. Poesia, antipoesia, antropofagia. São Paulo: Cortez & Moraes, 1978, p. 124. [13] DERRIDA, Jacques. Força de lei. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007. [14] MANIFESTO Antropófago. Tropicália. Disponível em: http://tropicalia.com.br/leituras-complementares/manifesto-antropofago. Acesso em: 28 jun. 2022. [15] LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002, p. 32. [16] LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002, p. 32. [17] FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas de Sigmund Freud – Vol. XIV (1914-1916). Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 249. [18] FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas de Sigmund Freud - Vol. XIV (1914-1916). Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 249. [19] FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas de Sigmund Freud - Vol. XIV (1914-1916). Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 254. [20] FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas de Sigmund Freud - Vol. XIV (1914-1916). Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 261. [21] ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 94. [22] ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 97. [23] ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 132. [24] ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 114. [25] ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 131. [26] ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 147. [27] ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 130. [28] ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 133. [29] ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 142. [30] ANDRADE, Oswald de. Cadernos de poesia do aluno Oswald (poesias reunidas). São Paulo: Círculo do Livro, 1981, p. 137. [31] ANDRADE, Oswald de. Um livro pré-freudiano. In: ANDRADE, Oswald de. Estética e política (Org. Maria Eugenia Boaventura). 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Globo, 2011, p. 55-56. (Obras Completas de Oswald de Andrade). [32] MANIFESTO da Poesia Pau-Brasil. Tropicália. Disponível em: http://tropicalia.com.br/leituras-complementares/manifesto-da-poesia-pau-brasil. Acesso em: 23 jun. 2022. [33] CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: Metalinguagem & outras metas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 235. [34] ANDRADE, Oswald de. 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