PROSA VOLUME 5 NÚMERO 1
O MARIDO PERFEITO
– O que ele tem que eu não tenho?!
Maria Alice olhou para a barriguinha proeminente do futuro ex-marido – seria ex, oficial, assim que assinasse a papelama do divórcio que estava diante dele, na mesa do restaurante.
– É mais o que você tem, que ele não tem, Carlos Alberto – ela respondeu, implacável. Carlos olhou para a circunferência pronunciada do abdômen/ e suspirou:
– Juro que vou para academia. É isso o que você quer? Eu vou, juro que vou!
Ela fez uma careta.
– Essa conversa de academia já tem mais barba do que papai noel. Assina logo, vai?
Ele se debruçou sobre os papéis, ameaçando virar o resto de cerveja do seu copo sobre eles.
– Aposto que é o pinto biônico dele, né? É isso? O pinto biônico, com vibrador embutido?
Maria Alice revirou os olhos e recostou-se na cadeira.
– Você é nojento Carlos. Nojento e patético.
– Então me diz o que é? Me diz, pelo amor de Deus!
A mulher suspirou de novo e pensou um pouco. Depois, disse:
– Eu sou a coisa mais importante na vida dele.
O homem fez uma careta de escárnio.
– Vida? Mas que vida, Maria Alice? Desde quando...
Ela se inclinou para frente, os olhos brilhando uma fúria mal reprimida e arreganhou o lábio superior – o lindo lábio superior, pensou Carlos Alberto sentindo como aquele pensamento lhe causava dor física – e rosnou:
– Está vendo? Está vendo? Esse é o seu problema Carlos Alberto. Você nunca se preocupa comigo. Nunca!
Ele piscou, confuso.
– Ramon nunca me chamaria de “coisa”. Eu não sou a “coisa” mais importante da vida dele! Eu sou o próprio sentido da existência dele e o Ramon nunca, está ouvindo? Nunca!, me confundiria com uma coisa. Mas você, Carlos Alberto, você... dá mais importância ao seu carro do que para mim!
Carlos Alberto mordeu os lábios e batucou com a caneta no tampo da mesa. Sua expressão dizia “Hãn?”, mas ele preferiu ficar em silêncio.
– O que... – ele começou com cuidado. – O que o meu carro tem a ver com isso? É o mesmo esportivo de sempre...
– Não é o “mesmo esportivo”. Você o comprou no começo do ano passado!
Ele quase disse “pois é...”, mas preferiu ficar de bico fechado. Não que ela descobrisse que ele fizera um consórcio novo.
– O Ramon sempre me coloca no topo das prioridades. Sempre! Nunca esquece nada, nem aniversário, nem de ir me buscar na Sinara, nem de pegar o Pedro e a Belinha na escola. Ele liga pro que eu digo, presta atenção. E você, hein, Carlos Alberto? Quantas vezes esqueceu que tinha de ir buscar o Pedro na aula de judô, só este ano? Três, Carlos Alberto, três! E estamos só em agosto!
– Mas era um horário novo... – ele protestou, franzindo o cenho.
– Não me interessa! Assina logo essa porcaria, que eu tenho mais o que fazer! – ela berrou, por fim, batendo no tampo da mesa. Os olhos dele se encheram de lágrimas.
– Você é a mulher da minha vida, Maria Alice, não faz isso comigo!
Ela se inclinou de novo na direção dele.
– As-si-na! – ordenou entredentes.
Carlos Alberto deu um soluço seco e olhou para os papéis.
– Eu também não esqueceria as coisas se tivesse uma agenda eletrônica embutida – murmurou assinando na linha pontilhada com a mão trêmula.
– Cala a boca e não diz bobagem. Ele não tem uma agenda eletrônica embutida.
Carlos olhou a ex-esposa e empurrou a papelama na direção dela sarcástico.
– Não, é claro. Ele é uma agenda eletrônica! Uma agenda eletrônica com pinto. Parabéns, Maria Alice. Espero que seja muito feliz.
– Serei – ela resmungou, guardou os papéis em uma pasta, levantou-se e saiu do restaurante teclando o celular.
Enquanto esperava Ramon chegar, Maria Alice remoía as palavras de Carlos Alberto, lutando contra as lágrimas que, apesar de tudo, teimavam em queimar seus olhos. Queria tanto, tanto, não ter de passar por tudo aquilo! Afinal de contas, Carlos Alberto era o pai dos seus filhos e tinham tido bons momentos juntos, muitos bons momentos. Mas não ia ter saudades, sabia. Tinha a vida inteira pela frente, uma vida de dedicação, carinho e atenção. Seria feliz, apesar do veneno dele. Carlos Alberto ia só ver! Ser feliz, agora, era uma questão de honra!
Ao fim de alguns minutos, o sedan preto apareceu, deslizando entre o trânsito. Habilmente, o motorista aproximou-se e parou em fila dupla ignorando as buzinas atrás de si com tranquilidade zen. Não disse uma palavra sobre a demora de Maria Alice para embarcar, nem sequer um olhar contrariado.
– Você demorou a ligar. Cheguei a ficar preocupado – ele disse, o lindo moreno de olhos verdes. Ramon inclinou-se para ela e beijou-lhe os lábios carinhosamente. Depois deu o sinal e arrancou, no timing exato para não ser multado pelo guarda que vinha se aproximando sem pressa.
– Ele não queria assinar. Queria que eu voltasse. E eu estou esgotada, Ramon. Não quero conversar, está bem?
– Tudo bem, querida. Quer um pouco de música? Talvez um sambinha? Não? Não tem problema. Vamos chegar em casa rapidinho e você vai poder descansar.
E dali em diante, o carro foi um silêncio sedoso, avançando com calma e precisão em meio ao trânsito pesado. Ramon não perdeu a paciência, não buzinou nem xingou os outros motoristas, nenhuma vez. Mesmo assim, a dor de cabeça que tinha sido só uma ameaça na saída do restaurante, se consolidou. Maria Alice recostou-se, ouvindo o som do carro e os movimentos precisos do companheiro. Já estavam próximos de casa quando franziu de leve a testa. Aquele zumbido... já tinha ouvido antes. Era quando Ramon voltava sua atenção para alguma coisa específica, como dirigir em meio ao trânsito carregado, por exemplo. Percebeu que o ruído irritante estava mais alto, acompanhado de pequenos rangidos. Maria Alice suspirou.
Da próxima vez que levasse Ramon para a revisão teria de comentar aquilo com o técnico. Não era bom deixar esses detalhes ao deus-dará. Sabia de vários casos em que os modelos terminavam dando defeito no momento mais inesperado. Não estava a fim de ter de assumir a direção enquanto o robô se imobilizava por causa de um bug no seu programa personalizado. Afinal, Ramon ia buscar seus filhos na escola.
E imagine se tivesse de pagar o mico de uma colega, cujo modelo tinha dado problema justamente enquanto transavam no sofá da sala, pouco antes da mãe dela chegar com as crianças, da escola. Deus me livre! Os androides da AmorPerfeito S/A eram ótimos, mas ainda eram protótipos.
Marido perfeito não existe, mesmo, ela pensou triste e ficou olhando o fluxo incessante dos carros ao redor deles.
Simone Saueressig estreou na Literatura em 1987, tendo publicado mais de trinta títulos para diferentes públicos e em diferentes gêneros, entre eles a Ficção Científica. Vários de seus contos foram publicados em fanzines tradicionais como o “Hiperespaço” e “Somnium”. Em 2012, seu romance “B9” foi finalista no concurso Argos, promovido pelo Clube de Leitores de Ficção Científica. Em 2014, publicou “Padrão 20 – A ameaça do Espaço-Tempo” e participou da coletânea “Tu, Frankenstein – II ” ambos editados pela BesouroBox. É autora da saga de Fantasia “Os Sóis da América”.
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