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Posfácio a Moldura de Lagartas por Antônio Manoel dos Santos Silva

ENSAIO VOLUME 5 NÚMERO 2




Olympia é um quadro de Edouard Manet. Na primeira vez que foi exposto ao público (1865), causou polêmica. “Olympia” é a primeira palavra do poema “Moldura de lagartas” deste livro de Susanna Busato, poema que provavelmente não causará polêmica, mas poderá gerar alguma sensação de estranhamento no leitor que não teve acesso à pintura de Manet. Mas quem conhece o quadro, se cometer a imprudência crítica de comparar a descrição literária com a pictórica, sentirá que o olhar da poeta procedeu a uma transfiguração descritiva, um modo diferente de discurso ecfrástico.


Essas observações iniciais me bastam como síntese que ilustra as características dominantes dos diferentes poemas do livro: o pendor descritivo, a polifonia textual, o domínio da imaginação com impulsos para a fantasia ditatorial, a compulsão para fazer do imanente uma força transcendente. Enfim, Olympia, de Manet, exemplifica um modo de antecipação criadora do poema de Susanna, antecipação (mas também retomada) expressa por Merleau-Ponty no finalzinho de seu denso ensaio O Olho e o Espírito quando assevera que nenhuma pintura encerra ou conclui a pintura, ou, até mesmo, se nenhuma obra-de-arte se conclui ou se fecha absolutamente é porque cada criação artística (poema, quadro, escultura, filme etc.) “transforma, altera, ilumina, aprofunda, confirma, enaltece, recria ou cria previamente todas as outras”.


Afirma ainda esse filósofo que as criações artísticas não são conquistas definitivas, e não as são porque passam como todas as coisas passam, mas porque têm diante de si mesmas quase toda a vida inteira. Essa afirmação procura, sob forma hipotética, dar resposta a uma das estupefações românticas diante da realidade e dos meios pelos quais os homens tentam descrevê-la, compreendê-la, explicá-la, transfigurá-la. A totalidade ou a plenitude, embora seja o alvo perseguido, está sempre aquém de cada cientista, de cada filósofo, de cada artista, de cada arte: pois entre as metas e os meios, entre estes e o desejo da verdade ou da beleza absoluta, se estabelece o angustiante vazio, que a própria atividade criadora, em sua historicidade, vai tentando preencher, e, paradoxalmente, confirmando.


Por outro lado, quando busca fornecer as respostas (que se dispõem, no referido ensaio, como numa arte de fuga), Merleau-Ponty sinaliza que essa história da criação humana nos situa diante de um diálogo peculiar: aquele que se estabelece entre as obras de arte e, mais amplamente, entre as diversas artes, um diálogo que se faz no tempo e ao longo do tempo. Diálogo que não comporta apenas aquelas retomadas, sob outras condições e outro espírito, de obras, de técnicas, de motivos e de estilos, de modo a permitir aos críticos, aos teóricos e aos historiadores de arte tecerem o tapete interminável das leituras e releituras, das influências e das escolas, das afinidades eletivas e das imitações, dos plágios e das paráfrases, das reminiscências inconscientes e das estilizações e, quem sabe, das superações. Trata-se também da atração crítica e constante de uma produtividade artística por outra, de uma espécie de consciência operante que se manifesta, na passagem de uma para outra obra e de uma para outra arte, atravessando-as. E se trata, acima de tudo, como se dá neste livro de poemas, da experiência da tradição como matéria viva da expressão poética.


Aqui vale aceitar, na esteira do filósofo francês, que um poema, como obra-de-arte, por mais que ateste, por sua existência mesma, uma autonomia, relaciona-se ativamente com outras obras, ou porque as remata, ou porque as antecipa, ou porque as critica, ou porque nelas se apoia. Mas também tenho que lembrar, agora na linha de Etienne Souriau, que as diferentes obras de arte se identificam pela sua natureza de arte, ou seja, pelo seu fazer, sua promoção anafórica, por aquela atividade que faz com que um ser saia da não existência para a existência. Quero dizer com isso que todo belo poema, por sua natureza-arte e por seu vínculo experiencial com a tradição, se situa num sistema que, sendo maior que ele e sua garantia real ou histórica, também se nutre desse poema e se sustenta com este.


Posso dizer, portanto, que, à medida que fui lendo este “Moldura de Lagartas”, o livro, senti-o constituído por poemas que me remeteram seja a outras artes, seja a outros poemas, alguns dos quais remissivos (graças à vontade consciente da poeta) ou remissíveis (graças à perquirição crítica) a outras artes ou obras-de-arte.


Se sigo à risca as lições do autor de O Olho e o Espírito e, usando o procedimento da redução eidética, não me custa interpretar que a pintura de Manet, Olympia, antecipa o texto de Susanna Busato, “Moldura de Lagartas”, o qual, ao contrário de quase todos os outros poemas do livro, é relativamente longo. A poeta parece propor uma leitura do quadro; realiza, neste sentido, um tipo de écfrasis: descrever o que vê, isto é, proceder a uma duplicação. Podemos supor que a poeta redige seus versos enquanto contempla a pintura ou a foto que a reproduz; teria feito assim uma imitação. Comparando, porém, as duas obras, verificamos que o procedimento icástico não existe: o que existe é uma espécie de recusa da realidade do quadro, como se a poeta (o eu lírico) não estivesse diante da pintura, ou, pelo contrário, estivesse diante da memória daquilo que contemplou, aquilo que lhe ficou como recordação do visto: a mulher nua reclinada, sua pele de nácar, o colar, o vidro embaçado da moldura, o gato preto, tudo não como está no quadro de Manet, mas apresentado em frações, em pedaços que a recordação recorta ou distorce. Desse modo, o leitor do poema não tem acesso, pela descrição poética, à totalidade do quadro, mas a elementos que o constituem como se fosse, esse leitor, guiado por um analista que vai chamando sua atenção para cada detalhe; a moldura, o vidro que protege a pintura, um vidro embaçado (pelo pó ou pelo calor da respiração da mulher meio deitada?), alfaias, mão sobre o sexo, olhos, íris, brincos, colares que no quadro é apenas um), mamilos, gatos (que no quadro é somente um e quase fundido na sombra negra). Entretanto, poesia não aceita a mera descrição. O olhar poético transfigura a imagem por meio de vários procedimentos: suprime a serviçal negra com o cesto de flores, elimina o ornamento da flor sobre a cabeça da mulher nua, mostra colares e gatos no plural e progressivamente modifica, pela metáfora, a realidade que a pintura representa: a mão da mulher, que encobre seu sexo, guarda pudicamente o “anjo sem asas”, os mamilos se tornam “voláteis látegos do desejo”. Quando o leitor (pelo menos o que escreve este posfácio) está suspenso pelo enlevo da estranha beleza feminina, a poeta (seu eu lírico) cobre de sarcasmo a figura e seu entorno: “os gatos mijam no quadro”, “Olympia fede na sua beleza de marfim”, “a boca mínima lambe as feridas”. O ponto alto dessa visão fantástica encontra-se nos dois versos que compõem o penúltimo bloco rítmico: “Olympia rasteja no vidro como lagarta no cio. / Olhos de vaso chinês, pele de laca”. A metamorfose da mulher nua (a do quadro) em lagarta no cio (a do poema) transcende para a etapa final, por assim dizer, biológica: a da borboleta. O poema realiza então uma reviravolta que, aliás, vinha sendo sutilmente preparada com as imagens conceituais do embaçamento, da leitura superficial intermediada pelo vidro que, encaixado na moldura, dificulta a apreensão do objeto artístico:


E você, indiferença de crayon, aprendiz de galeria,

assopra a gordura baça da vida

no sonho de vidro da borboleta de negras asas.


O leitor fica perguntado quem é esse “você”. Seria o eu lírico que se distancia e se torna alvo de crítica da poeta, conforme se nota em muitos poemas modernos que se valem da técnica da heteroscopia, pela qual o eu lírico se coloca na posição de um outrem indiferente? Seria o leitor incauto do próprio poema que está acabando de ler ou o leitor que se contenta com a “aprendizagem” proporcionada pelos guias de galeria? Qualquer que seja, a ironia é forte no verso penúltimo; “assopra a gordura baça da vida”.


Demorei-me um pouco na análise (incompleta, por certo), deste poema porque nele encontro o espírito que anima o livro inteiro bem como o estilo dominante, que é o do discurso ecfrástico, que logo comentarei, pois preciso acrescentar que a remissão a obras-de- arte (aí incluindo as poéticas) ou a seus autores, como homenagem ou não, pode ser observada em outros poemas do livro: “A Condição Humana (para René Magritte), “Solo para Pagu” (para Augusto de Campos), “Outra pedra do sono” (para João Cabral), “Da morte, fodas mínimas” (a uma lagarta chamada Hilda), “Balada invernal para Mário de Andrade na cidade de Oswald”. Eles parecem sinalizar possíveis vestígios daquele diálogo proposto por Merleau-Ponty, vestígios que se notam em muitos outros poemas, afora aqueles que, desses e de outros autores (Carlos Drummond, por exemplo) se podem vislumbrar durante a leitura. Essas remissões apontam para uma das tendências marcantes da poesia brasileira contemporânea: a de voltar-se o texto poético criticamente para si mesmo, de modo ora explícito ora latente, aqui francamente referido, acolá sugerido, alternando os dois modos poéticos que Mallarmé definia: mostrar ou sugerir, mais sugerir do que mostrar.


Não escapa ao leitor que os poemas da primeira parte deste livro constituem, em sua maioria, textos cujo assunto é a poesia, desde a tentativa de definir ou de sugerir uma poética, ou seja, uma aproximação conceitual do que seria essa arte da palavra, até a expressão em ato de como a poesia se manifesta no próprio fazer do poema, isto é, em sua performatividade ou, na proposta cunhada por Luigi Pareysons, em sua formatividade. Textos que ilustram a primeira direção: “Da poesia e sua outra” (dedicado a Haroldo de Campos e a Carlos Drummond de Andrade) “Academicismo”, “Desejo”, “A poesia é”, “Cilada”, “A cidade desejante”. A direção da performatividade pode ser sentida nos textos seguintes: “Gênesis”, “Lagarta sendo”, “Enlagarça II”, “Como usar a língua”, “Perdida”, “Método I”, “Método II”, “Método III”, “Golpe fatal”, “Fricativa”. Esses poemas exemplificam em parte aquela orientação que se observa nas chamadas estéticas da construção que foram se desenvolvendo desde Kant e que, passando por Schiller, encontra as formulações mais ricas em Paul Valéry (Eupalinos), John Dewey (Art as Experience) e Luigi Pareyson (Estética). No caso dos poemas citados podemos verificar a ação da consciência operante, isto é, a realização artística como critério para si mesma; com outras palavras, a produção do texto que é linguagem e, ao mesmo tempo, a invenção de seu código regulador.


Dizendo isso, posso dar a impressão de que a poeta trilha somente esse caminho da identificação da poesia com sua construção poemática. Tal não acontece nas quatro molduras seguintes, onde vamos encontrar o predomínio do discurso ecfrástico, o qual pode parecer muito original e próprio da contemporaneidade (pois agora se costuma indicar como o discurso poético que se vale da descrição do que se vê em obras de arte pictóricas), mas tem suas raízes na antiguidade. Chamo a atenção para este aspecto por me parecer o mais relevante quanto ao vínculo deste livro com a tradição.


O termo “ékphrasis” (ou écfrasis) aparece na retórica grega, com os textos da primeira sofistica (séculos IV e V. a. C.), tendo perdurado até a segunda onda sofística. Designava uma descrição viva, uma representação realista das personagens e das coisas, como se o autor do discurso pretendesse que o ouvinte as palpasse com as mãos, as visse, desculpem-me a redundância, com os olhos. A “ékphrasis”, procedimento discursivo voltado para a função suasória, incidia sobre a natureza física (o mundo mineral, o vegetal, o animal e espaços respectivos) e sobre as aparências físicas das pessoas, inclusive sobre aqueles aspectos que propiciassem a percepção das reações psicológicas, como podemos ler nos tratados de Retórica de Fontanier e de Lausberg . Usado pelos teóricos e praticantes da oratória sofística até o século IV d. C., sua legitimidade como descritor de um procedimento discursivo só perdeu força graças à atuação de Santo Agostinho, o qual percebeu com clareza que a “ékphrasis” havia se transformado numa espécie de entidade autônoma, sem vínculo com a persuasão doutrinária, pois dava às palavras um valor em si, semelhantemente a muitos textos de hoje que se representam a si mesmos, se enrolam sobre si mesmos e constroem a chamada “densidade poética” resistente à comunicação ou, usando a simbologia deste livro de Susanna, uma espécie de lagarta que não chega a borboleta. Santo Agostinho, como G. Lukács tentou propor séculos depois para a narrativa literária, passou a se exigir, como pregador cristão, que houvesse uma motivação entre o mostrar e o assunto dos sermões, entre o mostrar e a argumentação e sua finalidade persuasiva. Podemos afirmar que o De Doctrina Christiana do pensador cristão matou e enterrou a “ékphrasis”, como denominação de uma técnica.


O termo desapareceu, mas a coisa por ele designada, não. Que tenha desaparecido ou ocupado os cantinhos da ciência retórica antiga, são testemunhas os dicionários de termos literários publicados até pouco tempo. Que a coisa designada não tenha desaparecido, lembremos, para comprová-lo, que, no começo do século XIX, a “ékphrasis” já estava substituída, conforme se lê em Fontanier, por cinco denominações diferentes: “topografia”, “cronografia”, “prosopografia”, “etopeia” e “retrato”. Muito recentemente a “ékphrasis” ressuscitou e tenta legitimar-se outra vez, mas com um significado bem restrito: o da descrição que tem por objeto as qualidades sensíveis perceptíveis por meio da contemplação das obras de arte visual, especificamente das obras pictóricas e escultóricas. Aqui, neste posfácio, eu a substituo pelo discurso descritivo, ou melhor por aquele discurso que se orienta pelo olhar e, como se trata de poesia, pelo olhar criativo, um dos parâmetros que T. S. Eliot considerava o maior refinamento da imaginação poética.


O leitor do livro deve ter percebido que muitas das descrições poéticas se desviam do modo linear. Não referirei todos mas destaco “Pintado à mão”, “Nascimento do olhar”, “Arrebol”, “Crisálida paisagem”, “Espartilho” e “Dobram os sinos”. Este último, minimalista no tamanho, vale por mil imagens:


Um último látego do sol e basta.

A noite dobra-se.


O segundo, “Nascimento do olhar”, nos remete ao modo minimalista de composição musical à maneira de Philip Glass ou Steve Reich. Sua base é a frase inicial que se desdobra depois graças a variações mínimas até o final. É assim o começo:


O pôr do sol avermelha o horizonte.

O sol se põe no vermelho do horizonte.

O vermelho se horizontaliza no sol.

O pôr do sol orienta o vermelho.


E, depois de 17 versos ou variantes, assim termina:


Um pôr de sol depõe contra

o horizonte. Vermelhorror: o

sol

se

con

so

me.


Para concluir, tenho que destacar três fatos. O primeiro: não é por acaso que Susanna Busato deixa escrito na página 78 um poema em língua francesa, “Chanson d’hiver” dedicado ao poeta surrealista Jacques Prévert. Não se trata de apenas um tributo à língua em que ela se formou, mas uma sinalização para um modo especial de ver a realidade a fim de dar relevo ao irrelevante, àquelas coisas comuns que estão presentes em nosso quotidiano mas que costumam passar desapercebidas. A escolha de uma lagarta como um ente com múltiplas simbologias está dentro desse universo. E estão dentro desse universo as coisas maiores como a cidade, e as menores como os bancos de jardim, os postes, os sacolões, as pistas, as buzinas, a caminhada, os óculos sobre o nariz, o celular, o queijo, o vinho, as rodelas de tomate, as abobrinhas, os atos corriqueiros.


O segundo fato é que a poeta não prescinde da primeira pessoa nem recusa as confissões sobre suas preferências e sobre suas angústias, o que traz para dentro de seus textos aquela ambiguidade entre o ficcional e o biográfico e o apagamento das fronteiras entre o subjetivo e o objetivo. Em resumo não tem medo do amor, não tem medo da vida, mesmo quando afronta a possibilidade da morte.


O terceiro e último fato é a tematização do corpo, que aflora constantemente, de uma forma sem idealizações. O corpo como espaço inalienável de identidade individual, como ponto físico onde se define a experiência da dor ou a potência de prazer e do erotismo, o desejo da perfeição e da plenitude. O corpo, que em outros poetas é tratado ou pensado como objeto, neste livro se exprime como vivência ou experiência dramática intransferível.


Tratar desse tema, tal como se verifica com grande complexidade nos poemas de Susanna, exige um ensaio que transcende os limites deste posfácio.




Antônio Manoel dos Santos Silva (Pitangueiras, SP, 1941) é Licenciado em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Paraná (1965), doutor em Literatura Espanhola e Hispano-Americana pela UNESP (1972), livre-docente em Literatura Brasileira pela UNESP (1979) e titular da UNESP, em 1983, universidade da qual é professor emérito. É autor de, entre outros livros, Análise do Texto Literário: Orientações Estilísticas (Criar Edições, 1981), Os Bárbaros Submetidos (Editora Arte & Ciência, 2006), e co-autor de, entre outros, Conto Brasileiro: Quatro Leituras (Vozes, 1979), Poesia e Música (Perspectiva, 1985), À Roda de Memórias Póstumas de Brás Cubas (Alínea Editora, 2006), Literaturas em Língua Portuguesa – Marcos e Marcas, 2: Brasil (Editora Arte & Ciência, 2007), A indústria radical: leituras de cinema como arte-inquietação (Nankin Editorial, 2012).

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