PROSA VOLUME 5 NÚMERO 2
Trecho do romance Ignóbil
Depois de 53 dias sem sair de casa nem para comprar cigarros, começamos a cheirar tão mal quanto o próprio quarto fechado e impregnado pelo odor de tabaco não arejado, um odor que se mistura ao cheiro de mofo das suas roupas, guardadas por décadas no mesmo armário, dos seus móveis antigos e raramente encerados, da poeira por trás desses móveis, de suor noturno aderido aos lençóis e das sobras de alimentos em decomposição, esquecidos ali no lixo, que ficou mais uma vez por trocar. Esse cheiro não era nada comparado ao do espécime homem de rua exposto à sujeira, ao tempo, à falta de banho, ao álcool e aos seus próprios fluídos e dejetos corporais.
Não era a primeira vez que Lucas sumia. Das outras vezes, porém, nunca tinha sido muito difícil encontrá-lo. Bastava alguns telefonemas e uma olhadela na luneta para topar com ele lá, reinando entre os mendigos do centro da cidade, causando alvoroço em algum hospital psiquiátrico ou grupo de ajuda mútua, fazendo amigos, inimigos, arrebentando estruturas, dissolvendo parâmetros, provocando dilúvios, virando a vida de toda gente do avesso.
E, depois que o funâmbulo intenso e louco passava, os que ficavam, mesmo que desorientados pela bagunça deixada, mesmo que perdidos de seus pontos de referência, ainda sim, sofriam era com a sua falta. Aquele excesso de vida desaparecera sendo substituído por um vazio que porém não era oco: havia uma sombra lá, no vazio que um dia esteve cheio. Após retumbar com tamanha intensidade sobre outras vidas, Lucas deixava uma ausência surda e devastadora, como o silêncio carregado de gravidade que as cidades destruídas por furacões, os bulevares ensurdecedores em dias de feriado ou as vilas fantasmas provocam no viajante solitário que observa tudo da janela do trem.
Da última vez que Alex viveu essa experiência, suas pernas esmoreceram quando ao descer para ir buscá-lo, só enxergou um borrão disforme que Catu dizia ser Lucas. É que Alex estava sem óculos. Estava sem eles porque não enxergava quase nada sem e, quando saía na rua, preferia não usá-los. As coisas e as pessoas lhe pareciam menos ameaçadoras quando não as discriminava umas das outras. De vez em quando, via - ou entrevia, ou subvia- um ou outro rosto extremamente deformado e isso lhe causava espanto, mas não medo. Não o medo paralisante de ser o centro para o qual todos os olhares convergiam, não o medo de ser exposto do avesso, não o de ser analisado, destrinchado pela multidão anônima. À medida que a pessoa deformada se aproximava, as formas do rosto subvisto retomavam harmoniosamente o seu lugar no sistema facial esteticamente comum, a deformação provando ser apenas ilusão míope. Porém, o medo provocado, não pela suposta monstruosidade, mas pela presença daquela e de todas as outras figuras embaçadas que se movimentavam pelas ruas, não tinha folga, apenas brandas atenuantes. Assim, sem os óculos, Alex criava um distanciamento artificial, porém confortável com relação ao ambiente circundante. Cobria o seu campo de visão com um véu de mal ver que o protegia sem denunciá-lo. O mundo então se tornava menos assustador.
Daquela outra vez em que desceu, com Catu como guia, ele não precisou ver Lucas para entender em que estado ele se encontrava. Bastou sentir o cheiro. Aquele cheiro atingiu-o em cheio. Era tão forte que adquiria feições antropomórficas na cabeça do Alex. Dominava Lucas de tal maneira que Lucas que passava a ser atributo do cheiro e não o contrário. Catu, só ela, correu em um abraço desesperado, apesar do cheiro e da sujeira que Alex não via, mas imaginava.
A Catu também, parecia tomada por um tipo de cegueira. Lucas não respondeu, preocupado que estava com os seus demônios pessoais, mas a seguiu mesmo assim, porque ela era toda mãe naquela hora, tinha uma voz tão doce que Alex tinha vontade de morar naquela voz.
Catu em seguida tentou protegê-lo. No entanto, Lucas nunca foi e nunca seria contido, ele, que mal dava conta de se encerrar em seu próprio corpo. Havia um tipo de trasbordamento nele e, de certo por isso, estava condenado. Alex sabia, Lucas sabia e Catu, ela não. Para sempre o seguiria. Dois condenados.
Mas ela disse que nunca quis essa vida de terno, gravata, eletrodomésticos, bar da moda, restaurante mainstream, hora para dormir, pré-estreia do Star Wars, ultima série da Netflix, sapatos caros, jantares de negócios, excursões e páginas culturais de jornais e, ela nem precisava confessar, viu em Lucas uma possibilidade de vida real, com cicatrizes, fluídos corporais, troca, gozo, pele com pele, alma com alma, fricção, faísca e estar aqui, no mundo, no mundo sem máscaras nem maquiagens palatáveis, no mundo de gente de verdade nua e crua.
No começo, a liberdade de Lucas a assustava. Só que o desejo de desbravamento falava mais alto que tudo, virava obsessão.
Lucas nunca falou nada sobre sua experiência nas ruas. Talvez nem a tenha vivenciado como uma pessoa sã faria. Mário, por exemplo, contou que na vez em que teve que dormir ao relento urbano, mal fechou os olhos. Tinha chegado do interior com duas mudas de roupa, uma garrafa de vodka, algumas músicas transpostas em folhas de caderno e um violão. O dinheiro acabou, a vodka acabou, o violão foi trocado por ninharia e nenhum contrato foi feito, mas vários novos amigos de garrafa.
A rua, Gaia dos tempos modernos, mãe única de todos os vagabundos, pareceu disposta a embalá-lo em seus braços. De certa forma estava aliviado porque tinha chegado no patamar mais baixo e pior não ficaria. Ainda assim, teve que beber para conseguir passar a noite. Tinha medo que lhe roubassem a mochila, seu único bem. Tinha medo que por um acaso, sua mãe tivesse vindo de passeio e de surpresa à cidade e topasse com ele dormindo ali. A decepção era palpável, mesmo que apenas projetada num futuro pouco provável.
Alex, com seus óculos redondos de aros grossos dirigiu-se até a luneta. Um vizinho acenou. Devia achar que ele era muito solitário.
Assistiu Catu dobrando a esquina, indo onde não se deve ir, e isso não física ou geograficamente. Estava indo explorar todos os limites e abismos do homem, os mais profundos, os mais recônditos, os mais escondidos, os mais incompreensíveis. Toda a obstinação do mundo, transferidas nuns pés de menina. Lá ia ela, dobrando a esquina para chegar face a todos os limites e dizer kkkkk limites. Não era à toa que era a preferida, tinha tudo que um bom “Explorador” tinha.
Ela se deixava levar pelo momento sem muito se dar conta, era toda pathos prestes a explodir por aí, capaz de levar todos os sentimentos, o medo, a vergonha, a incerteza, o amor, tudo às últimas consequências, capaz de entregar-se a todas as experiências-limites natural e instintivamente, como se não pudesse agir de outro jeito. Desde os dissidentes do Planeta Origem até o Bandeirante, passando por Gilgamesh, Ulisses, Camões e Colombo, eles abriam trilhas, interiores e exteriores, adaptavam-se às circunstâncias, elevavam ou rebaixavam o homem a outros níveis, descobriam, desvendavam, faziam buracos na existência como minhocas fazem na terra, possibilitando a fertilidade e novidade de tudo que os cerca.
Um bom explorador, segundo o Lucas, não era o que pulava do alto de um prédio, não era o que dirigia à toda velocidade e fazia rachas. O Bom Explorador, espírito que fora capaz de conquistar um outro planeta para a humanidade e que vai reencontrar o caminho de volta era aquele que perscrutava os abismos interiores, não só psicológicos como também existenciais para conhecer as possibilidades mais extremas de vida. Como Catu, que partia para mais uma expedição pelos cantos escuros e inexplorados lá de dentro. Iria descobrir coisas que ninguém deveria saber e portanto dificilmente voltaria intacta. Alex sabia disso, mas não podia fazer grande coisa. Ela precisava do triturador de formas e partículas, da catarse, da totalidade cega e destruidora, no núcleo explosivo. Tinha sede disso não por um impulso autodestrutivo, mas por que sabia que era ali, naquela explosão, e só ali, que era possível a vida, só ali que as ideias, o novo, a arte podiam ser gerados. Só ali havia criação, expansão e êxtase. O universo surgiu do caos e do big bang.
Alex ficou ali comparando e desdenhando sua covardia quando lembrou-se de algo muito importante. O bom Explorador não era aquele que nunca tinha medo, mas, ao contrário, era aquele que se entregava sem escrúpulos à ele. Era o que ficava paralisado, o que tremia, o que sentia o pânico invadir toda a sua existência e cada uma das suas células até perder completamente o controle sobre si mesmo.
Apagou o cigarro minuciosamente para que não sobrasse nenhuma faísca. Isso ele tinha aprendido com Antônio-sem-rosto. Olhou o seu próprio rosto amarelo e viscoso, rosto guardado, refletido na janela. Inspirou fundo procurando sugar qualquer força que vagasse perdida por ali e preparou-se para morrer de medo.
Regina Ribeiro é formada em Comunicação Social e em Filosofia. É adepta de ambientes alternativos tais como squats de artistas, ashrams, centros de acolhimento para asilados e ocupações para desabrigados. Seu primeiro romance, Ignóbil, será publicado pela Kotter.
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