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Laura Nogueira

POESIA VOLUME 5 NÚMERO 2



O LOUCO



Muitos viram a loucura faiscar nos olhos dele.

A cabeça dançar como um pássaro.

A boca desaguar palavras sem caminho.

Viram os passos para nenhuma direção.

O silêncio como uma pedra.

O corpo poeirento e curvado.

O sonho tornando-se delírio.

A voz arranhando cavernas.

Não o vi. Mas lembro que há tempos o chamavam louco.

E que ele, obstinadamente, sempre sonhara um mundo são.




O POEMA QUE APAGO



O poema que apago é raiz da fome.

Pulsa a poesia incrustada na carne.

Garra fincada no paiol do peito.

Pássaro sangrando o poente.

Os versos são braços que renascerão.

Importa cavoucar a noite até encontrar o grão.

A palavra essencial que resvala e revela.




A TERRA



A mata crivando o sol é o mistério da palavra.

A terra abriga a árvore dentro da noite.

Guarda o som dos nossos sapatos, os zumbidos eletrônicos

e o tilintar elétrico.

Nosso legado é ferrugem, plástico e vidro.

A terra aguarda, doente, nosso corpo silencioso.

Sem dor, sem movimento, sem sonho.




O BURACO



Cheio de metáforas e antíteses desabrochou na parede.

De um lado pinturas abstratas da chuva.

Do outro, as cores móveis da rua.


Descarnada chaga floresceu.

De um lado mudez pálida e concreta.

Do outro, músicas multicolores.


Um dia a parede ruirá.

O muro cairá.

A rua desaparecerá.

Só o buraco resistirá, realidade sensível.

Flor de ausência a vicejar no cemitério do mundo.




O TIGRE QUE MASTIGA NOSSA CARNE


Para o nosso tempo não há palavra.

O som dos corpos na cova preenche o mundo.


Amanhã, a terra não terá cobrido todos os braços,

todos os lombos.

A voz será uma fera dentro do peito.

Tigre a mastigar nossa carne.

O poema terá cheiro de morte.

Cravos e rosas para o corpo distante.

Um mundo apodrecido.


O véu da morte já desceu pelas ruas.

Tomou as paredes, violou as portas.

E o céu é um límpido grito azul.




SUBTERRÂNEA



Nasci subterrânea.

Às vezes, solares cascas de arroz sobre mim.

Outras, pedras plácidas e mudas.

A teia de cabelos intransponível de pensamentos.


Nasci subterrânea.

Fera sob pelos de aço.

Pernas presas a longos fios musicais.

Serena, com o colar de águas-vivas.


Cresço,

A pele crestada de meu tempo fincada nos dias.

Este tempo córrego pela narina.

Cresço subterrânea.

O mato sempre mais viçoso dentro e sobre mim.

Cresce o rastro de onça na palma da mão.

Mão refugiada no bolso da pele.

Gramíneas crescendo sob as unhas.




SINGULAR



Na parede da caverna, poemo.

Em punho o sol.

A foto estrangula a moldura.

A boca ri os séculos.

Canções entranham:

o timbre ignoro.

Cinge a cabeça

um pensamento trôpego.




POENTE



O poema é sempre o assombro.

Por isso a retina pasma

em mosaico de palavras.

Os verbos se condensam sulfurosos.

Árvores seculares rasgam a visão.

Inscrevem-se no vento.

O crepúsculo nasceu no monte de tijolos.

Um sol morrendo em tabletes.

A palavra não quer desvendá-lo.

Quer ser, com a argila em poente.




Laurenice Nogueira da Conceição (Laura Nogueira) é poeta, autora do livro Poema pequeno, ganhador do Prêmio Literário da Fundação Cultural do Estado do Pará – FCP, na categoria poesia, em 2016. Seu livro Habitamos Sem Rosto, aprovado para publicação pela editora Patuá, está no prelo. Em 2012, ganhou o prêmio da Academia Paraense de Letras, com a obra Porque uma flor é grito matéria, ainda não publicada. Mestra em Estudos Literários pela UFPA, é professora e reside em Belém. É natural de Uruará, cidade do interior do estado do Pará. É poeta participante da antologia O vento continua, todavia – Dez vozes da poesia contemporânea em Belém, publicada pela Kotter Editorial, em 2020.

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