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“INVERNO MUITO, FARTURA MUITA”: UMA VISADA ECOCRÍTICA EM CRÔNICAS DE RACHEL DE QUEIROZ

Atualizado: 22 de jan. de 2023

ENSAIO VOLUME 5 NÚMERO 1


por Mariana Cristina Pinto Marino



Resumo: A partir do que sugerem Estok (2009) e Gifford (2009) acerca da falta de sistematização literária nos estudos ecocríticos, este artigo propõe analisar as crônicas Tartaruga de arrastão e Inverno em 55, escritas por Rachel de Queiroz em 1951 e 1955, de modo a utilizar categorias de análise ecocríticas já existentes em Ecocrítica (2006), de Greg Garrard, de maneira mais profícua e rigorosa, tendo sempre em mente as especificidades formal e conteudística do texto literário. Isto posto, intenta-se, após a retomada de aspectos biográficos de Rachel de Queiroz, relevantes para a discussão, ressaltar e explorar características mais evidentes dos textos que podem ser alinhadas à abordagem ecocrítica, visto que as temáticas tratadas nas crônicas suscitam percepções de sensibilidades outras (Marcuse, 1973 [1972]) no trânsito entre o espaço urbanizado e o interiorano, sertanejo. Além disso, o olhar de Queiroz antecipa preocupações mais contemporâneas concernentes ao Antropoceno (Bogalheiro, 2018) no que tange à preservação de espécies e, por que não dizer, interessantes aos debates sobre o direito animal.

Palavras-chave: Ecocrítica; Rachel de Queiroz; crônicas.


1. PRIMÍCIAS


Para além da produção literária de Rachel de Queiroz, faz-se pertinente, neste primeiro momento, retomar certos aspectos biográficos da escritora e jornalista, com o intuito de se fazer entender a presença de algumas temáticas em sua obra, advindas da preocupação da própria autora com ao meio natural e a preservação de espécies animais e vegetais. Também é igualmente interessante pontuar que, por mais óbvias que se façam as relações entre a obra de Queiroz e os estudos literários ecocríticos, essa possibilidade de aproximação ainda não foi explorada. No que tange à análise do texto cronístico da autora, ainda que esse gênero tenha sido o mais produzido por ela durante toda a sua trajetória[1] como escritora, o campo de estudos é igualmente escasso, tendo sido os seus romances mais abordados na seara da pesquisa literária, enquadrados no que os críticos denominam de literatura regionalista[2]. Para Regma Maria Santos (2016, p.1), pesquisadora das crônicas rachelianas,


A fortuna crítica sobre a obra de Rachel de Queiroz ainda pode ser considerada incipiente e restringir-se basicamente aos seus romances consagrados e aos temas mais evidentes de sua produção, como o aspecto regional, a seca, a fome, a miséria e a condição feminina.


Isto posto, é imprescindível que sejam abordadas questões concernentes à vida e obra da escritora, sua produção cronística, reflexões acerca desse gênero literário e, por fim, que seja realçada a conexão estabelecida entre os estudos ecocríticos e os textos aqui selecionados.


1.1 OS ESPAÇOS DE RACHEL DE QUEIROZ


Essa ligação de amor que o nordestino tem com a sua terra.(...) Aquela terra salgada que já foi fundo do mar tem mesmo o gosto do nosso sangue

Rachel de Queiroz


Nascida no final da primeira década do século XX, em Fortaleza, no Ceará, Rachel de Queiroz, mesmo posteriormente tendo morado por certos períodos em São Paulo e no Rio de Janeiro, mantém uma relação afetiva com algumas localidades em que viveu no estado nordestino, fato este que contribui diretamente para a preservação histórica-patrimonial-ambiental desses espaços. A casa do sítio em Pici, próximo à Fortaleza, em que, nos anos 30, abrigou a escritora para um rigoroso tratamento de saúde, também fora guarida para a escrita do romance de estreia de Queiroz, O quinze, agraciado com o prêmio da Fundação Graça Aranha quando ela tinha ainda vinte anos de idade.

De acordo com a Prefeitura Municipal do Ceará (PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA citada por CAVALCANTE, 2014, p.4), em documento oficial, é prevista, para Casa de Rachel de Queiroz (como é reconhecida após seu tombamento), “a criação de um parque que possibilita a manutenção dos recursos hídricos e da vegetação de todo o perímetro composto pelo riacho e a vegetação ali existente”. A casa do sítio Pici, portanto, fora tombada e, consequentemente, teve seu perímetro preservado haja vista o reconhecimento dado à Queiroz, sua produção literária e seu interesse particular em salvaguardar espécies animais e vegetais, reiterado em entrevistas: “sempre foi preocupação minha, desde menina, soltar passarinho” (CAVALCANTE, 2014, p.9).

Além da casa no sítio em Pici, outra localidade muito afetada pelos esforços de preservação ambiental e cultural de Rachel de Queiroz foi o município de Quixadá, no Ceará, maior cidade do sertão central, onde há a presença de monólitos, formações rochosas características da região. Atualmente, o Parque Nacional dos Serrotes de Quixadá é uma unidade de preservação ambiental graças ao pedido de tombamento solicitado pela escritora, que criticava o desenvolvimento econômico da cidade, em parte advindo da exploração de granito dos monólitos:


O presente estudo foi motivado pelo pedido de tombamento, “do complexo paisagístico formado pelos inselbergs - serrotes de Quixadá”, solicitado pela escritora cearense e membro da Academia Brasileira de Letras, a imortal Rachel de Queiroz, cuja vida e obra têm por origem o cenário e a paisagem em questão (IPHAN, 2001 citado por CAVALCANTE, 2014, p.5).


No que tange à presença da região citada na obra de Queiroz, é interessante notar que muitas das crônicas escritas por ela são encerradas com menção à fazenda Não me deixes[3], próxima a Quixadá, sinalizando que a escritura dos textos foi feita no local. Apesar de Inverno em 55 ter sido escrita na Ilha do Governador[4], são claras as referências à região na qual a fazenda está inserida, no Ceará. No momento presente, Não me deixes é reconhecida como Reserva Particular do Patrimônio Natural:


Certamente, o afeto de Rachel pelo lugar Não Me Deixes foi um dos motivos para a sua preservação. É pelas mãos da escritora, pois a criação de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural – RPPN é ato voluntário, que é criada a RPPN Fazenda Não Me Deixes (...) A tipologia florestal característica da Não Me Deixes é a caatinga arbórea densa, típica da região semiárida, ainda natural e bem conservada, com ocorrência de pau-branco, pau-branco louro, catingueira, jurema-preta, imburana, juazeiro, angico, aroeira e frejorge (CAVALCANTE, 2014, p.7).


É fato, a partir do exposto, que Rachel de Queiroz, com as experiências de vida também calcadas em preocupações de ordem preservacionista, produziu uma literatura igualmente engajada com essas temáticas, mesmo que, às vezes, de maneira mais sutil, como a abordada em Inverno em 55, cuja narrativa é entrecortada pela descrição de espécies animais, mais ou menos preparadas para enfrentar o inverno no sertão. É a partir da observação desses animais, seus ciclos e comportamento, que se é possível prever a escassez ou a abundância advinda daquela estação do ano, levando-se em conta noções outras que não somente as centradas numa episteme antropocêntrica. Antes de ser iniciado, de fato, o debruçar-se sobre os textos selecionados, aproximando-os de uma possível análise a partir de categorias ecocríticas, é necessário que sejam pontuadas algumas questões no que tange ao gênero literário crônica e ao fazer cronístico racheliano.

1.2 CRÔNICAS RACHELIANAS: A “MENORIDADE” DO GÊNERO, A LITERARIEDADE DO TOM


É afirmando ser “um gênero menor” que Antonio Candido apresenta a crônica na introdução “A vida ao rés-do-chão” da obra Para gostar de ler crônicas. Discorrendo sobre essa posição mais rasteira do gênero, ele afirma que assim a crônica o é por ter seus temas atrelados ao corriqueiro, banal, cotidiano, “graças a Deus”. É como se houvesse, para o crítico literário, uma clara divisão entre o que pode ser considerada temática “elevada” ou do chão[5]. Ora, se há tanto alguns consideram que, na poesia (gênero considerado, por longo período, refinado e de difícil acesso), qualquer substrato pode compô-la, é curioso, portanto, estabelecer essa distinção. Além disso, a crônica vem sendo estudada como um gênero híbrido, um entre-lugar entre o fazer literário e jornalístico, enfraquecendo, de certa forma, a democratização de seu estudo mais sistematizado no meio acadêmico literário. Isto posto, com o intuito de estudar (e re-visar) algumas características da crônica que vêm, sistematicamente, sendo pensadas por esse viés que por vezes a inferioriza, Maria Cristina Ribas instaura um olhar diferente para o texto. Segundo ela, desvincular a crônica da ideia de constituição híbrida é relevante, visto que


Nessa perspectiva, particularizar a crônica como gênero ‘híbrido’ e colocar a pendência para um ou outro aspecto dessa ambiguidade por conta exclusiva do talento do escritor é mais uma particularização infundada do ponto de vista epistemológico, porque atribui ao gênero uma singularidade que na verdade é plural e compartilhada pelos inúmeros gêneros textuais no cenário discursivo. Reconhecemos, entretanto, uma justificativa: a preocupação com o hibridismo é por conta de a crônica ser produzida, a partir do século XIX, pela mão/pena de literatos, mas no suporte/imprensa jornal, o primeiro veículo de comunicação de massa de que temos ciência. Da mesma forma, singularizar a crônica por tematizar o banal, o cotidiano, o pitoresco aspecto conteudístico -, também não resolve o impasse. Qual o teor de banalidade dos temas? Por oposição a grandiosos? (RIBAS, 2013, p.6, grifo nosso).


Portanto, é possível que, como já apontado por Regma Maria Santos, na seção anterior, um dos motivos que sustentam a falta de pesquisas sobre as crônicas de Rachel de Queiroz seja exatamente considerar esse gênero menor, ao mesmo tempo em que suas temáticas são consideradas uma simples repetição das retratadas pela autora em seus romances, estes mais estudados, porém ainda de forma incipiente, para usar a mesma adjetivação de Santos. Como também posto anteriormente, é sabido que a produção cronística de Queiroz é extensa e abarca diferentes épocas e sensibilidades, o que faz com que, ao longo de dois mil textos, os temas manifestem questões concernentes à passagem do tempo (seja em suas implicações pessoais ou coletivas), sofrendo influências, mesmo que indiretas, do desenrolar social e tecnológico durante os setenta anos de sua produção literária

É, portanto, apesar de sabido que a escritora produziu e pensou seu trabalho inserida no universo literário e tradutório, além do jornalístico, necessário atribuir ao trabalho de crônicas de Queiroz um caráter não limitado ao considerá-lo híbrido. É importante destacar, além disso, que a produção cronística da autora foi toda organizada em alguns volumes de livros (inclusive, é desta forma que temos acesso aos textos atualmente), o que faz com que os textos “ganhem uma perenidade que potencializa a sua leitura” (RODRIGUES citado por RIBAS, 2013, p. 7-8). Essa ideia vai de encontro à noção de que a crônica estaria mais atrelada ao jornalismo, devido à sua celeridade (natural dos gêneros jornalísticos) e contribui para enfraquecê-la.

Isto posto, consideraremos, na análise deste trabalho, o caráter literário do gênero crônica, levando em conta que, no que tange à produção de Rachel de Queiroz, “a crônica não é apenas o relato do breve, do passageiro, mas também o espaço da criação e da inventividade para abordar quaisquer temas, sejam eles eternos ou não” (SANTOS, 2016, p.2)



2. NO MAR, NA TERRA: UMA RE-VISÃO DE SENSIBILIDADES NARRATIVAS


É evidente que Rachel de Queiroz era dotada de uma consciência ecológica sensível. Entendendo a necessidade preservacionista de localidades no Ceará, sua terra natal, a autora foi responsável, no início dos anos 2000, pelo tombamento dos monólitos de Quixadá e teve sua fazenda considerada patrimônio particular nacional, como já sabido. Para além de traços biográficos relevantes à temática ecológica, faz-se necessário (visto que a intenção desse estudo é a de análise do texto literário) destacar que essa preocupação ambiental já estava presente na década de 1950[6], quando as crônicas Tartaruga de arrastão e Inverno em 55 foram escritas.

Do olhar empático da voz narrativa que assiste ao desespero de uma tartaruga capturada em alto-mar (Tartaruga de arrastão) até serem reconhecidos os ciclos das estações a partir do comportamento dos animais (Inverno em 55), as crônicas possuem uma substância comum: a tentativa de, a partir das vozes narrativas, instaurar um contrato natural (SERRES, 1990) com os animais e outros elementos naturais. Uma aproximação tão interessada só é possível quando se reconhece que “não há separação dualista entre os seres humanos e a natureza” (GARRARD, 2006, p. 39), o que afirma uma postura contrária ao pensamento antropocêntrico (cada vez mais urbanizado no século XX), que centra seus sistemas de valores de mundo no homem e em suas relações com outros seres humanos e seus bens de consumo. Portanto, com base em perspectivas calcadas na reciprocidade, respeito e contemplação de seres não-humanos pelas vozes narrativas presentes nas crônicas em questão, um novo contrato é estabelecido, já que não se faz presente um olhar que considera os animais e outros elementos naturais como propriedade e domínio (SERRES, 1990, p. 65).

A forma com a qual as entidades não-humanas são retratadas nos textos escolhidos desperta, portanto, uma nova sensibilidade no que tange às representações do mundo natural: ao serem re-visadas estruturas concernentes à dominação da natureza, “tratada de um modo agressivamente científico; [que] existe para ser dominada; [que] é uma matéria livre de valor, um material” (MARCUSE, 1973 [1972], p. 65), as crônicas sugerem (em maior ou menor intensidade) o entendimento do valor intrínseco da natureza, seu reconhecimento como sujeito legítimo (MARCUSE, 1973 [1972],). Em Tartaruga de arrastão, por exemplo, a identificação de sentimentos expressos pela tartaruga marinha, aprisionada pelas redes de arrastão —“ela que decerto esperava sepultar-se entre areias claras, nalgum maciço colorido de anêmonas do mar” (QUEIROZ, 1958, p. 128) — faz com que ela seja poupada da morte, pois “um coração se apiedou da tragédia” (ibidem). Por ter tido o animal o seu valor intrínseco reconhecido (e por ser atribuído a ele um caráter de sujeito legítimo, pois é manifestada a sua senciência) e, consequentemente, escapado do abatimento, é possível identificar o traço revolucionário da nova sensibilidade (presente na narrativa), sugerida por Marcuse:


O que está acontecendo é a descoberta (ou, melhor, a redescoberta) da natureza como aliada na luta contra as sociedades exploradoras em que a violação da natureza agrava a violação do homem. A descoberta das forças libertadoras da natureza e de seu papel vital na construção de uma sociedade livre converte-se em nova força de mudança social (MARCUSE, 1973 [1972], p. 127, grifo nosso).


Compreendendo, portanto, que há a presença de uma nova sensibilidade, responsável por direcionar as narrativas em Tartaruga de arrastão e Inverno em 55, e levando em conta o que é postulado por Estok (2009) e Gifford (2009) sobre a falta de metodologia de trabalho nos estudos ecocríticos, a análise dos textos selecionados será feita a partir de categorias ecocríticas já existentes em Ecocrítica (2006), de Greg Garrard, como anteriormente citado. Por já ter sido identificado nas crônicas um caráter que rompe com a dualidade natureza/cultura, iremos aproximá-las da visada da ecologia profunda, postura que versa sobre a aproximação entre seres humanos e não-humanos exatamente por considerar que não existe uma distinção entre mundos (natural e humano): “essa postura pretende estender-se, por exemplo, a entidades (ou formas) como rios, paisagens e até espécies e sistemas sociais” (SESSIONS citado por GARRARD, 2006, p. 39). Ademais, devido à presença de espécies animais nos textos escolhidos, as categorias de análise que se referem a eles, no sexto capítulo de Ecocrítica (2006), também serão abordadas.


2.1 TARTARUGA DE ARRASTÃO


A personagem central da crônica é uma tartaruga, aprisionada após uma pescaria na Ilha do Governador, Rio de Janeiro. Por mais que a voz narrativa não seja dada ao animal, a ele se debruça um olhar diferenciado, visto que lhe são atribuídas emoções que, numa visão antropocêntrica, não poderiam pertencer ao bicho. Da perda de dignidade à uma descrição mais alongada de sua volta ao mar, a tartaruga é descrita com nuances de curiosidade, espanto e, mais adiante, de uma empatia que acaba por salvá-la de virar “turtle soup[7]” (QUEIROZ, 1958, p. 127).

É curioso notar que, ao longo da narrativa, são os seres humanos (e o mundo terrestre ao qual pertencem) que se apresentam descritos de forma negativa: seja através de adjetivações (“a bela moça devia parecer-lhe terrível”(p. 127)/ “incerto é o coração do homem, incertos são seus impulsos” (p.128)/”mundo sujo, escuro, inimigo onde viviam os homens”(ibidem)), seja pela criação de imagens que subvertem o olhar pelo ponto de vista humano (“As caras desconhecidas de ignorados animais —no caso, homens”). Essa inversão no teor das descrições de humanos e não-humanos contribui para a instauração de uma sensibilidade outra, que rompe com o modus operandi humano de enxergar o animal (nesse caso, considerado selvagem) de forma a inferiorizá-lo e, portanto, dominá-lo. Assim, o antropomorfismo atribuído à tartaruga não tem o intuito de contribuir para o seu rebaixamento, não sendo, portanto, um antropomorfismo negativo:


ao associarmos todas as nossas características e funções corporais “mais vis” à animalidade, afirmamos a importância de sustentar os atributos superiores ou mais espirituais que conferem a nós, humanos, a soberania sobre as bestas (SOPER citado por GARRARD, 2006, p. 201).


Mesmo sendo os homens reconhecidos como animais e à tartaruga conferido um antropomorfismo às avessas, a verificação da espécie marinha como sujeito legítimo só vem a ocorrer no desfecho do texto. Isso se dá, no entanto, como consequência da incapacidade de ser decidido como abatê-la: “Falou-se em degolar, em sangrar, saiu até o folclore que ensina a matar bicho de casco com aspa de chapéu-de-sol” (QUEIROZ, 1958, p. 128). Dessarte, essa sensibilidade que arrebata “mão que abriu a porta da capoeira”[8] (ibidem) não é observada desde o início da narrativa. A aproximação entre os seres-humanos e o não-humano, como sugerida pela ótica da ecologia profunda, tem motivação outra que não essencialmente o de considerar o valor intrínseco do animal, por mais que essa tomada de consciência ocorra na sequência:


Mas felizmente para a tartaruga, incerto é o coração do homem, incertos os seus impulsos. Tanto vai para um lado como para o outro, tanto procura hoje devorar o seu irmão bicho, como amanhã o festeja e liberta. O fato é que um coração se apiedou da tragédia que lavrava sob a carapaça negra dentro de um outro coração embora regado a sangue-frio (QUEIROZ, 1958, p. 128, grifo nosso).


Isto posto, ainda há expressa, em Tartaruga de arrastão, uma dualidade entre seres humanos e não-humanos, mesmo que atenuada pelo que aqui denominamos de antropomorfismo às avessas e pelo desfecho da crônica, favorável à manutenção da vida do animal marinho, reconhecido como semelhante (irmão). Por mais que a dualidade se apresente de forma ainda mais marcante ao final do texto[9], a narrativa sugere, mesmo que em menor intensidade, a aproximação com o meio natural exatamente por atribuir à tartaruga um valor intrínseco.

2.2 INVERNO EM 55


Com foco primeiro numa figura mística e popular no Ceará, o profeta, a narrativa presente em Inverno em 55 é repleta de nomeações de espécies animais e vegetais. Em pouco mais de duas páginas, é possível observar a menção a vinte e nove espécies que, a partir de seus hábitos e comportamentos, definem o destino do sertão na época que antecede o inverno. Profeta Roque é considerado o favorito da voz narrativa[10] que o apresenta e o descreve: “ele adivinhou a seca de 52, o ano ruim de 53 e o escasso de 54. Experiência de chuva é assunto perigoso que já desmoralizou muito vidente” (QUEIROZ, 1958, p. 216) e conta com a ajuda não somente das espécies não-humanas para sugerir uma previsão para 1955, mas também dos “meninos”, “camaradas do mato” (ibidem, p. 215), provavelmente moradores de regiões mais centradas no sertão do estado.

É sabido que o inverno no Nordeste foi bastante benfazejo no ano citado. Essa afirmação não é explicitada pela crônica, que foi escrita em janeiro do mesmo ano citado no título, longe do início do inverno. Porém, é sabido que Profeta Roque não errara a sua previsão, de fato: em 1955, o país fora tomado por uma grande massa polar no mês de julho, que trouxe chuva e temperaturas mais baixas também para o Norte e Centro-Sul do país. É interessante perceber que, ao texto, por ter sido publicado em outro suporte, diferente de seu original (jornal), podem ser atribuídos a ele outros níveis de leitura, visto que sua narrativa atinge uma perenidade (estando em formato de livro) que possibilita associações históricas nos âmbitos cultural, intelectual e ambiental, como sugere Estok[11] (2009, p. 9). Portanto, sabendo da veracidade da previsão do vidente, é possível estabelecer uma relação diretamente conectada às discussões sobre sensibilidade e contrato com a natureza, já observadas anteriormente: o fato de os animais e as plantas (seus hábitos e comportamentos) anunciarem um período de prosperidade, deve-se a eles estarem intrinsecamente ligados a uma ciclicidade ecológica que vem sendo ignorada (se não negada). Portanto, entrar em contato com a mundividência dessas espécies, seus ciclos e peculiaridades, permite a aproximação de seres humanos e não-humanos de forma bastante profícua. Observar a vida de plantas e animais permite com que enxerguemos a nossa própria, visto que, de acordo com a visão da ecologia profunda, trata-se da mesma vida: “E quanto à quantidade de água, nem me pergunte: vai ser invernão chamado. Inverno muito, fartura muita, não sou eu que digo, são os bichos do mato, meus amigos[12], e eles não se enganam” (QUEIROZ, 1958, p. 216).

Ademais, o conhecimento expressado pelo Profeta Roque sobre a diversidade de espécies pode estar atrelado ao fato de ele estabelecer com esses animais e plantas uma outra relação que não a de dominação, reconhecendo-os como sujeitos legítimos. Em Ecocrítica (2006), Greg Garrard não destina seção à recapitulação da presença de plantas na literatura. Porém, sabemos que ele o faz com animais, que podem ser divididos em duas categorias, domésticos e selvagens, de acordo com as sensibilidades a eles atreladas. Para o autor, “raramente somos instados a impedir o sofrimento dos animais selvagens, porque nossa responsabilidade moral aplica-se principalmente aos animais que usamos como alimento, como meio de transporte e como companhia” (GARRARD, 2006, p. 210). Desta forma, para reconhecer o valor intrínseco de gambás, calangos e tatus, é necessário romper com um distanciamento imposto por dois pensamentos primordiais: o de que a vida humana está dissociada da não-humana, e que a última está sob o nosso domínio. Diferentemente de Tartaruga de arrastão, que expõe com menor intensidade a oposição a esses pensamentos citados, Inverno em 55 narra, com facilidade intrínseca, a aproximação entre seres humanos e não-humanos: é, então, a partir da proximidade, que outras narrativas (não baseadas no que Ursula Le Guin (1996) define como killer story[13]) podem ser experienciadas e estabelecidas.

É interessante pontuar que, em ambas as crônicas, Rachel de Queiroz, como já citado, antecipa uma sensibilidade ambiental: antes mesmo da efervescência do debate ecológico, iniciado com maior profusão na década de 1960, e das posturas em relação ao direito animal e à consciência animal, essas preocupações já se encontram presentes num tempo em que as discussões acerca do Antropoceno[14] e da crise ecológica não se apresentavam como uma preocupação real. Isto posto, faz-se possível afirmar que, ao instaurar uma sensibilidade não dualista ao mundo e seus elementos, a autora (tanto no que diz respeito a seus traços biográficos quanto ao trato das temáticas ecológicas nas crônicas analisadas) poderia estar, ainda nos anos 1950,

na inquietante posição de um auto-conhecimento radical que, depois das certezas do projeto Moderno, instala a incerteza e nos lança numa imperativa revisão da nossa posição enquanto seres no mundo – obrigando-nos a novas reintegrações mais abrangentes de elementos não humanos – e da nossa posição enquanto seres na História (BOGALHEIRO, 2018, p.48, grifo nosso).



CONSIDERAÇÕES FINAIS


Intentou-se, ao selecionar e analisar crônicas de Rachel de Queiroz pela ótica da ecologia profunda, estabelecer um caminho de possibilidades ao aproximar os textos dos estudos ecocríticos, visto que essa aproximação é possível e não havia sido anteriormente explorada. Tendo como ponto de partida os pressupostos de que a ecocrítica demora a tomar espaço na área dos estudos literários (mas não somente, já que se trata de uma abordagem multidisciplinar), as crônicas foram analisadas por categorias já existentes, postuladas por Greg Garrard (2006), e suas temáticas, alinhadas a outras possibilidades de interpretação que o próprio texto literário sugere. Houve, de início, uma necessidade de apresentar traços biográficos da autora, a fim de perceber como, para Queiroz, as sensibilidades de um mundo que separa seres humanos e não-humanos não funcionam em sua própria visão de mundo.

Além disso, fez-se igualmente necessário considerar a crônica um gênero literário, visto que ela é, ainda, caracterizada como um “gênero menor”. Mesmo que não se tratem de textos ficcionais, as crônicas podem, de fato, ser vinculadas à seara literária, dada a presença de vozes e linhas narrativas, como observado na análise de Tartaruga de arrastão e Inverno em 55. Ademais, o trabalho com esse gênero não ficcional pelo olhar ecocrítico pode promover duas consequências mais diretas: o interesse pelo estudo da crônica, ainda incipiente no campo literário, e a ampliação do interesse em analisar (e produzir) a chamada nature writing[15], muito presente no segundo estágio de consolidação da ecocrítica nos Estados Unidos, berço dessa abordagem, visto que os textos em análise se alinham esteticamente à tradição estadunidense.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BOGALHEIRO, Manuel. O fim da natureza: paradoxos e incertezas na era do antropoceno e do geo-construtivismo. Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa, v. 48, p.48-66, mar. 2018

CAVALCANTE, Tiago Vieira. Os lugares de Rachel de Queiroz: geograficidade e patrimônio. Caminhos de Geografia, Uberlândia, v. 15, n. 52, p.151-161, dez, 2014.

ESTOK, Simon C. Theorizing in a Space of Ambivalent Openness: Ecocriticism and Ecophobia. Oxford: Oxford University Press, 2009.

GARRARD, Greg. Ecocrítica. Brasília: Editora UNB, 2006

GIFFORD, Terry. A Ecocrítica na mira da crítica atual. Terceira Margem, Rio de Janeiro, v. 20, p.244-261, jan./jul. 2009.

LE GUIN, Ursula K. The Carrier Bag Theory of fiction. In: GLOTFELTY. Cheryl; FROMM, Harold. The Ecocriticism Reader. Georgia: Georgia Press, 1996.

MARCUSE, Herbert. Natureza e Revolução. In: MARCUSE, Herbert. Contra-Revolução e Revolta. Rio de Janeiro: Zahar, 1973 [1972]. Cap. 2. p. 63-80.

RIBAS, Maria Cristina. Por uma revisão conceitual do gênero crônica: entre a montanha e o rés do chão. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC, 13., 2013, Campina Grande. Anais... . Campina Grande: Uepb, 2013. p. 1 - 10.

SANTINI, Juliana. Entre o riso e a ruína: humor, romance e regionalismo em José Lins do Rego. Teresa: revista de literatura brasileira, São Paulo, v. 16, p.175-190, jun. 2015. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/teresa>. Acesso em: 20 jun. 2019.

SANTOS, Regma Maria. Cidade e Memória nas crônicas de Rachel de Queiroz. In: Simpósio Internacional De Letras E Linguística (SILEL), 1., 2009, Uberlândia. Anais... . Uberlândia: Edufu, 2009. p. 1 - 5.

________. Morte e vida nas crônicas de Rachel de Queiroz: Práticas e Representações. Revista Nupem, Campo Mourão, v. 14, n. 8, p.171-182, jan/jun 2016.

SERRES, Michel. O contrato natural. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.

QUEIROZ, Rachel de. Cem crônicas escolhidas. São Paulo: Círculo do Livro, S.a, 1958. 280 p.


[1] Rachel de Queiroz publicou mais de duas mil crônicas ao longo de quase oitenta anos de produção; os textos organizam-se em volumes como: A donzela e a moura torta (1948), 100 crônicas escolhidas (1958), O brasileiro perplexo (1964), O caçador de tatu (1967), As menininhas e outras crônicas (1976), O jogador de sinuca e mais historinhas (1980), As terras ásperas (1993) e Falso mar, falso mundo (2002). Em 2015, a Global Editora lança, a partir de seleção de Heloísa Buarque de Hollanda, As melhores crônicas de Rachel de Queiroz. As crônicas analisadas neste trabalho pertencem a 100 crônicas escolhidas, de 1958.


[2]Diferentemente do que havia sido feito a partir da regionalista perspectiva na literatura, principalmente na fase pré-moderna, Queiroz, com O Quinze, juntamente com A bagaceira, de José Américo de Almeida, inauguram a denominada segunda fase do modernismo ou romance de 30, obras “que revelam a natureza de um regionalismo menos tipificador” (SANTINI, 2015, p.188). Ainda, segundo Santini, “a prosa regionalista de então [romance de 30] congrega em suas páginas um olhar sociológico — que pincela as cores do sertão e analisa criticamente a condição daqueles que o habitam — atrelado ao avultamento de tradições que se articulam ao tecido narrativo e ao enfoque, muitas vezes de aguda percepção psicológica, do homem desajustado aos esquadros que se desenham com a modernização e o progresso” (p.179).


[3] O nome atribuído a Não me deixes é antigo. A propriedade, pertencente ao tio-avô de Rachel, foi passada para um sobrinho que, deslumbrado com a possibilidade de enriquecimento advindo do ciclo da borracha ocorrido na floresta amazônica, desde o final do século XIX, vendeu a propriedade. Sabendo do que havia se passado, o tio-avô Miguel retomou a fazenda e, quando o sobrinho voltou do Norte despossuído de bens, permitiu com que ele ficasse no local com a condição de que não o abandonasse de vez: Não me deixes permanece com este nome até os dias atuais.


[4] No início deste ano, 2019, a escola de samba União da Ilha do Governador teve desfile influenciado por narrativas de José de Alencar e Rachel de Queiroz, ambos cearenses, com o enredo A peleja poética entre Rachel e Alencar no Avarandado do Céu. A escritora foi residente de Ilha do Governador por 12 anos e por lá escreveu O Galo de Ouro, primeiro romance não ambientado em sua terra natal.


[5] “Em ambos os casos, ser menor sugere certa isenção e uma justificativa para as eventuais concessões de um produto voltado para a massa. Por este motivo supomos que a estratégia vigorava entre a elite intelectual e não tinha grande serventia junto à comunidade leitora, à massa que degustava o produto sem se preocupar com sua decantada ‘menoridade” (RIBAS, 2013, p.7).


[6] Faz-se interessante pontuar que, até a década de 1950, a preocupação ambiental era uma questão direcionada somente ao meio científico. É a partir da década de 1960, com o avanço dos movimentos sociais, que a degradação do meio natural passa a ser uma pauta que atinge outras camadas da população. Nesse sentido, Rachel de Queiroz já antecipava essa inquietação ao lidar com as temáticas vistas em Tartaruga de arrastão e Inverno em 55.


[7] “Sopa de tartaruga”.


[8] Não é possível saber, ao certo, quantas pessoas compartilham a experiência descrita na crônica. Há a presença de uma menina, logo que a tartaruga é levada à praia, e a referência explícita a uma bela moça, “estranha divindade canibal” (QUEIROZ, 128, p.127). As outras marcações da presença de “caras desconhecidas” (ibidem) ocorrem no uso de pronomes indefinidos como “alguém” e “ninguém” e, no último parágrafo, na utilização do substantivo “mão”. Essas escolhas são interessantes se forem associadas à ideia de que é prezado dar destaque ao animal marinho e seus anseios. É também possível notar que, assim como a tartaruga, nenhum outro personagem é nomeado. Essa escolha reitera o foco no animal, mas também pode indicar uma relação de semelhança entre os seres humanos e o não-humano, visto que o último é considerado, pela voz narrativa, um irmão.


[9] “Cortou a areia deixando um rastro longo, penetrou na água como um barco a deslizar do estaleiro, mergulhou, emergiu, voltou a cabeça ainda assustada para aquele mundo sujo, escuro, inimigo, onde viviam os homens, onde esperava nunca mais voltar” (QUEIROZ, 1958, p. 128, grifo nosso).


[11] Ainda para o autor, o rigor de uma metodologia ecocrítica é exemplificado com Rei Lear, de Shakespeare. Para Estok, é bastante relevante saber que, no período em que foi escrita, a Europa foi assolada por uma Pequena Era do Gelo: “as climate conditions deteriorated, a lethal mix of misfortunes descended on a growing European population” (Fagan 91), and that these were conditions that Shakespeare saw when he looked outside” (ESTOK, 2009, p. 10) (“À medida que as condições climáticas se deterioravam, uma mistura letal de infortúnios descendia de uma população europeia em crescimento” (Fagan 91), e essas eram condições que Shakespeare viu quando olhou para fora”. Tradução nossa).


[12] Por se tratar de um discurso direto, de fala proferida pelo Profeta Roque ao repórter Alencar Monteiro, não é possível afirmar se o aposto “meus amigos” refere-se aos bichos, propriamente ditos, ou aos leitores do jornal O Unitário, para quem o repórter trabalha.


[13] “História assassina”.


[14] A Teoria do Antropoceno baseia-se na ideia de que o planeta vive uma nova fase geológica, acelerada pela ação de seres humanos em ecossistemas diversos.


[15] Nature writing abarca também, além de poesia e prosa, ensaios e narrativas de aventura ou viagem, baseadas em fatos (científicos, históricos) acerca do mundo natural.

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