Entrevista por Claudio Daniel
Poesia como vertigem, experiência visionária, no limite entre vida e linguagem. A escritura não como reflexo do cotidiano imediato, em sua banalidade autoritária, mas como construção de uma realidade com sua própria morfologia do desejo, que não se distingue do sonho ou de estados alterados da consciência. A poesia surrealista é um território onde a lógica habitual, no campo do discurso e da ação, cede lugar à multiplicidade de outras formas possíveis de composição de cor e som, idéia, forma e movimento. Nesta entrevista, o poeta, tradutor e ensaísta Claudio Willer, um dos principais nomes do surrealismo no Brasil, comenta sua trajetória poética, sua visão de um mundo fragmentado e faz a defesa dessa estética alucinada que não distingue a arte da magia, o sonho construído da fugaz realidade.
(Entrevista publicada originalmente no site Popbox)
Zunái: Qual é o sentido de escrever poesia hoje, numa sociedade regida pela mídia e pelo mercado?
CW: Precisamos ser claros ao usar a expressão “hoje”. Hoje é quando? Há 150 anos, Baudelaire já transmitia a idéia do poeta como ser à parte, isolado e marginalizado na sociedade de massas, o albatroz obrigado a levar vida pedestre, como naquele poema de As Flores do Mal, e em tudo o que ele escreveu sobre a vida na metrópole. A contradição poesia/sociedade (sociedade burguesa, industrial, pós-industrial, de massas, de mercado, midiática, o que for), já foi claramente estabelecida no Romantismo, e não mudou em sua essência, a não ser pelo fato de a sociedade burguesa, hoje, ser menos fechada, mais permeável. Por exemplo, você não tem censura direta, não toma processos por escrever poemas — e este é um avanço recente. Aliás, sempre houve, na civilização ocidental, tensão entre poesia, descontado o beletrismo eloqüente, e sociedade — basta lembrar que Camões foi em seu tempo criticado, excluído, visto com desconfiança por suas inovações, e só depois convertido em nosso autor mais canônico. Isso, entre tantos outros exemplos.
Zunái: Sim, podemos considerar que esse “hoje” começou em 1789, quando o Bispo e o Rei cederam o assento ao fabricante de vinhos ou cortiça e aos futuros especuladores financeiros. Nesse período, que evoluiu da guilhotina à Internet, surgiram diferentes idéias sobre por que fazer poesia. Para alguns, ela é uma ferramenta para mudar o mundo; para outros, é um severo exercício estético, que se justifica na própria escritura; alguns querem que a poesia altere o comportamento social, influencie outras mídias ou o idioma, e outros acham que a poesia, realmente, não serve para nada. Em sua opinião, por que escrevemos poesia, atividade que consome tempo, inteligência, esforço e que não interessa a quase ninguém, além de nós mesmos?
CW: Exatamente. Romantismo é um produto da mesma configuração de que faz parte o Iluminismo. Um de seus componentes. Possível a partir do momento em que destamparam a panela – que aliás continua sendo destampada, o processo não se encerrou, e nele a rebelião individual desempenha um papel decisivo — com a queda dos absolutismos e do poder temporal da Igreja. Queda dos absolutismos, não — redução considerável, não simplifiquemos as coisas. Poesia consome tempo? Pois então, é um bom modo, bem prazeroso, de consumir tempo. Olha, se poesia não me proporcionasse um certo nível de prazer, de satisfação pessoal independente de resultados como a repercussão, eu não mexia um dedo sobre o teclado ou segurando a caneta para fazer isso. Em segundo lugar, “nós mesmos” é bastante gente. Dirigimo-nos a pessoas que partilham um código, ou um mesmo repertório, sei lá. E, é evidente, a poesia se projeta, tem um resultado exterior à subjetividade do autor, embora saia de dentro dela. Em caso contrário, seria um solipsismo, escrever para o próprio umbigo, para sua imagem no espelho. Seria paranóia aguda, galopante, alguém se pôr a escrever para ser Dante, Camões ou Baudelaire, isso, citando exemplos mais evidentes de autores cuja poesia se projetou, constituiu cultura, portanto, produziu realidade. No entanto, concordo, tanto quanto concordava a primeira vez que o li, décadas atrás, com o trecho de Octavio Paz, em O Arco e a Lira, em que ele diz que a poesia, sendo histórica, produz história.
Zunái: Como é o seu processo criativo? A escrita automática, método de composição do surrealismo, ainda é válida?
CW: Claro. Com a ressalva que Aragon já havia feito no Traité du Style, nos anos 20, de que um imbecil, se fizer escrita automática, irá escrever imbecilidades. Procedimento algum, em si, garante nada. Mesma coisa que com alucinógenos, conforme já repeti inúmeras vezes: o fato de Henri Michaux ter produzido obra importante sob efeito de mescalina não significa que alguém, por tomar mescalina, vá escrever Miserable Miracle. Quanto a meu processo criativo, é mesmo espontâneo. A frio, do tipo “vou escrever um poema”, não dá, não sai nada. Tem que haver entusiasmo, no sentido grego da palavra, como embriaguez ou possessão, ou, no mínimo, inspiração. Um dos poemas que saíram publicados naquela edição de Azougue em que figuro, Ruínas Romanas, eu estava lá, e me vi impelido pela emoção a tirar um bloquinho do bolso e ir escrevendo. Nem reparei, mas estava fazendo um comentário à quantidade de autores, de grandes poetas, que já haviam estado lá e escrito sobre essas ruínas — alguns, eu nem conhecia então. Aliás, tudo o que fiz em poesia saiu mais ou menos assim, de impulso. Note bem, não se trata de adesão a “escolas” ou cartilhas, mas do seguinte: aquilo de que André Breton fala no Primeiro Manifesto, das imagens poéticas que batiam na janela, comigo é assim, uma frase, no caso desse poema de que estou falando, a frase “quantos poetas já não estiveram aqui?”, daí para a frente, o texto vai saindo espontaneamente, quase por si só, por sua conta. Aliás, essa experiência, poesia como voz do outro, nem é patrimônio exclusivo do surrealismo, basta ver o que, por exemplo, Derrida escreve a respeito naquele seu ensaio sobre Edmond Jabés em A Escritura e a Diferença.
Zunái: Acredita que a poesia tenha relação com estados alterados de consciência, com a experiência visionária?
CW: A questão não é “acreditar” — a questão é aquilo que é. Baudelaire escreveu aquela quantidade de paginas sobre haxixe, a troco de quê? Falava de um meio de passar o tempo, só? Experiências visionárias? E Mallarmé, aquelas enormes crises, ele ouvindo o refrão, la penultiéme est morte, e aí escrevendo, ou melhor, transcrevendo O Demônio da Analogia, obviamente o tipo do texto que, digamos assim, baixou, que certamente nem ele conseguiu entender o que significava, como traduzir, decodificar, e que até hoje é tido como obscuro, hermético. E Ginsberg ouvindo a voz de William Blake? E o próprio Blake? E...? Podia escrever páginas e páginas sobre episódios de criação poética como revelação, êxtase, algo baixando. É claro que não estou fazendo nenhuma condenação a priori da escrita a frio, pensada. Apenas estou dizendo como as coisas são, ou foram, ou têm sido, historicamente, e não só para mim.
Zunái: Mircea Eliade, autor de Técnicas Arcaicas do Êxtase, foi uma influência intelectual marcante entre os poetas de seu círculo literário? Você tem interesse pelo esoterismo e por tradições iniciáticas?
CW: Sim e sim, as duas partes da sua pergunta. Com tudo o que se escreveu depois sobre mito e sobre xamanismo, Mircea Eliade me parece ainda insuperado. Há, nele, um fundamento filosófico, ontológico, que é a idéia da relação entre o homem e o mundo como algo vivo, animado e sagrado, nas sociedades tribais, no mundo arcaico. Quanto a esoterismo e tradições iniciáticas, trato disso em minha narrativa em prosa, Volta. Nunca fui adepto, de fazer parte de uma seita ou grupo, a exemplo, digamos, de Yeats e a Ordem da Aurora Dourada. Interessa-me o movimento oposto, da experiência poética se tornar mágica, de, no contexto da criação poética, acontecerem antevisões, revelações, o acaso objetivo. Esoterismo e poesia se aproximam por ambos terem como fundamento um modo de pensar analógico, oposto à razão da herança cartesiana ou aristotélica.
Zunái: Fale um pouco sobre o seu livro de estréia, Anotações para um Apocalipse (1964). Como ele foi recebido na época?
CW: É uma série de poemas em prosa, escritos automaticamente, e um manifesto, em um tom bretoniano, mas que vale, penso, por antecipar o que vinha pela frente, a rebelião contracultural, e mais coisas, e falar de Ginsberg e outros em primeira mão, aqui no Brasil. Recepção? Amigos gostaram. Tanto o meu livro, Anotações para um Apocalipse, quanto os do Piva, Paranóia e Piazzas, fora daquele ambiente, ninguém entendeu nada, silêncio total. Crítica, nem pensar. Levamos uns 15 ou 20 anos para ser lidos.
Zunái: Como os poetas do modernismo receberam a tua poesia? Tomaram posição a respeito? Faço essa pergunta porque, em minha opinião, o teu trabalho, como o de Piva, não tem nada a ver com o modernismo dos anos 30 e 40... Claro, há certos paralelos com Murilo Mendes e Jorge de Lima, na imagética, em especial. Mas a impressão que eu tenho é que a poesia de vocês existiria mesmo sem o modernismo, pois descende de outras fontes, do romantismo, do simbolismo, de Breton, dos beats, da contracultura dos anos 60... o que você pensa a respeito?
CW: Penso um monte de coisas! Modernista, remanescente da semana de 22, havia Sérgio Milliet, bela figura, mas, no início dos anos 60, não tomamos conhecimento, freqüentava o bar ao lado (ele e a turma dele no Paribar, eu e minha turma mais no Leco ou La Crémerie, lugar mais agitado), mas ainda assim era muito burguês, muito establishment para nosso gosto. Não nos interessou qualquer interlocução pessoal com modernistas e afins, embora não tivéssemos dúvidas quanto à importância de Drummond e admirássemos Murilo. Bandeira, nunca gostei, simplesinho demais. Guilherme de Almeida, o então Príncipe dos Poetas Brasileiros, de enorme prestígio, nem chegar perto, de jeito nenhum, representava tudo o que não suportávamos, oficialismo, academicismo, restauração do beletrismo etc. Idem os demais corifeus do retorno dos modernistas ao academicismo, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo. O contexto literário imediato era dado pela Geração de 45. Nem foi preciso romper, nos afastarmos, tomar posição contra, bastou saírem Paranóia e Piazzas do Piva, e o meu Anotações para um Apocalipse, e eles imediatamente esfriaram conosco.
Agora, você tocou em uma questão importantíssima ao falar em simbolismo. Pelo seguinte — na França, em especial, modernismo estava dentro do simbolismo! Houve aquilo que Breton denominou de correia de transmissão entre simbolismo e surrealismo. Vanguardas recolheram um legado simbolista. Veja bem: Jarry (e Jarry já é tudo, em sua obra colossal, está tudo lá, ele produziu século XX como ninguém) era simbolista, freqüentava Mallarmé e os outros, foi quem proclamou como fundamentos da nova literatura Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé. O primeiro tradutor de Jarry, para o italiano, foi Marinetti... Apollinaire, o ideólogo do novo, idem, freqüentava Jarry, o admirava. Os surreais adotaram como referências, a exemplo de Jarry, a Lautréamont e Rimbaud. Os formalistas, Eliot e Pound inclusive, a Corbière e Laforgue. Linha direta, conexão, em todos esses casos, e em outros.
Aqui não, o pessoal de 22 maravilhou-se com futurismo e vanguardismo, mas não reparou em nosso próprio simbolismo, no que havia de moderno em Kilkerry, na poesia em prosa de Cruz e Souza. Não sabiam de Sousândrade, e olha que em seus momentos simultaneístas, em muito de Oswald, até lembram Sousândrade. Não perceberam o anti-beletrismo de Lima Barreto. Nacionalistas que não souberam olhar a seu redor, algo muito estranho, que associo a uma certa caretice modernista, especialmente em Mário de Andrade, um discurso como: sim, vamos inovar, mas espere aí, até certo ponto, devagar, loucura, isso não, como ele diz em seus primeiros textos críticos. Isso posto, muito do que Mário fez, gostamos. E, sem dúvida, Oswald, o mais inquieto e criativo de 22.
Zunái: Dentro da tradição da poesia em língua portuguesa, com quais autores você sente mais afinidade?
CW: Comecemos pelos portugueses mesmo. Ah, mas como líamos Fernando Pessoa! E Sá Carneiro. Menos, mas devíamos ter lido mais, Almada Negreiros. Portugal, como tem bons poetas, os surrealistas, António Maria Lisboa, Mário Cesariny. Os de hoje, olha, Herberto Helder, que bom que saiu aqui, coloco-o em um primeiro time mundial. Dos brasileiros, meu poeta é Jorge de Lima, já falei várias vezes, que para Invenção de Orfeu ser reconhecido como monumento literário mundial, tem que ser primeiro lido e reconhecido por nós. Murilo, também. Há uma frase inteligente de Roland Barthes, em O Prazer do Texto, quando ele diz que Proust é uma matexis para ler Flaubert. Ou seja, começar pelos contemporâneos, os mais próximos, para aí remontar aos clássicos. Quanto a mim, já cheguei ao simbolismo, nesse trajeto. Em termos, também não vamos exagerar, pois houve uma primeira formação romântica, para todos nós.
Zunái: Você trocou cartas com Allen Ginsberg, durante o seu trabalho de tradução de poemas do autor norte-americano, reunidos na coletânea Uivo, Kaddish & Outros Poemas. Fale um pouco sobre esse diálogo.
CW: Quando se acertaram os direitos de tradução, consultei-o sobre algumas dúvidas que tinha, ele foi muito atencioso, respondeu a minhas consultas. Tenho as cartas. Depois que saiu Uivo, Kaddish & Outros poemas, mandei-lhe, e ele me mandou os livros dele que saíram desde então, inclusive essas edições da poesia reunida e diários pela Harper & Collins, com cartões para o dear translator friend. Queria trazê-lo para o Brasil, na época em que estava na Secretaria de Cultura, mas não havia mais condições, ele já estava mal de saúde.
Zunái: Como tradutor, além de Ginsberg, você publicou os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, Escritos de Antonin Artaud, poemas de Octavio Paz. Estes são os poetas que marcaram a sua formação literária?
CW: Os poetas, não — alguns dos poetas — tem muito mais, é claro. Dei sorte, as ocasiões em que me convidaram para traduzir algo, Lautréamont, Artaud, Ginsberg, eram autores com os quais, de algum modo, convivia, que, para mim, tiveram valor de revelação. Foi coincidência, acaso objetivo.
Zunái: Fale um pouco sobre o processo de criação de seus livros Dias Circulares (1976) e Jardins da Provocação (1981).
CW: Dias Circulares, quando, pela segunda vez, em 1976, o Massao Ohno enunciou o fatídico chamado, “Willer, quero te publicar!”, reuni o que tinha, poemas em prosa e alguns com versos espalhados pela página, fiz um novo manifesto, e apresentei-lhe tudo isso. Em Jardins da Provocação, há poemas temáticos, mas também escritos espontaneamente, direto, que coexistem com os em prosa, assim como no meu próximo livro, Estranhas Experiências. Há, continua havendo, notas da véspera, como as passei.
Zunái: Em Jardins da Provocação, você incluiu, junto com os poemas, um manifesto em que fala sobre o poder mágico da palavra poética, com o enfoque da semiologia e da teoria literária. Afinal, qual é a relação entre poesia e magia? Concorda com Huidobro, de que a poesia inaugura um mundo próprio, com sua própria fauna e flora?
CW: Concordo. A poesia produz realidade. É possível uma teoria literária aberta, incorporando a magia, o pensamento mágico. É só abrirem-se as cabeças desse pessoal, alguém realmente querer ir além do cientificismo.
Zunái: Você define sua poesia como lírica, no sentido de expressão do sujeito, do eu lírico, e também quanto à temática amorosa. A vocação subjetiva, herdeira da rebelião romântica, contrapõe-se à materialidade cabralina, centrada na visão objetiva das coisas. Sua opção de mergulhar no mundo interior, nos sonhos e obsessões, afastaram-no da crítica social, sátira política? Acredita ser possível conciliar o mergulho existencial com a reflexão do estar no mundo, ou concorda com Piva de que “todo ato individual é anti-social”?
CW: Concordo, sim. O que Piva diz não é antagônico com estar no mundo. E insisto: eu nunca programei como iria escrever. Lembro a frase famosa de Octavio Paz: o poeta não se serve das palavras; é o seu servidor. Crítica social, sátira, faço mais em meus ensaios. Na criação, na leitura, até na crítica, e muito, muito mesmo no ensino, é preciso recuperar a dimensão da emoção, da magia e encantamento, assim tornando-as (criação, crítica, ensino) menos assépticos, menos burocráticos. O que essa gente faz é desestimular leitores.
Zunái: Em seus “poemas da loucura”, o romântico alemão Hoelderlin antecipou recursos da poesia moderna, como a estética do fragmento e o texto não-linear. O psicanalista Isaías Mehlson, a esse respeito, fez um interessante comentário, afirmando que “o inconsciente é uma consciência não-discursiva”. Essa ruptura com a lógica narrativa e sintática está presente em diversos experimentos de vanguarda, como o Lance de Dados de Mallarmé, o futurismo, o dadaísmo. Já a poesia surrealista foi acusada por certos críticos, ligados à poesia concreta, de ser uma tentativa de restabelecer o verso, ou seja, o discurso e a sintaxe. O que você pensa a respeito?
CW: Eu cito essa visão fenomenológica do inconsciente de Isaías Mehlson em alguns lugares. Hölderlin louco e Gérard de Nerval em surto são modernos justamente por produzirem obra não-discursiva. Agora, veja que interessante, com relação a críticas ao surrealismo: há duas vertentes de crítica, dizendo exatamente o contrário. Uma crítica de um marxismo mais soviético, acusando-o de irracionalismo, e (isso até mesmo em um crítico da envergadura de Antonio Candido, e confesso que não entendo como é que pode, ao mesmo tempo ele apontar a importância de Clarice Lispector e, com relação a Rosário Fusco, fazer esse tipo de afirmação) reduzindo-o a sintoma de uma crise burguesa. E a outra crítica, acusando-o justamente do contrário, de racionalismo, em Haroldo de Campos, que o chamava de filho bastardo da lógica, ou em Leila Perrone Moisés, que chegou a indigitar Breton como sendo racionalista ou cartesiano ou algo assim, tempos atrás em um artigo no Jornal da Tarde que eu precisava recuperar).
Pois bem. Então, vamos distinguir entre pensamento lógico, fundado no princípio da identidade, de que, A sendo A, e B sendo B, então, A não pode ser B, e pensamento analógico, enxergando as correspondências (no sentido de Baudelaire, mesmo) entre A e B. Recentemente, em palestra no congresso internacional “O Surrealismo: Atualidade e Subversão”, realizado no campus da Unesp em Araraquara, entre 14 e 16 de agosto, mostrei como a ensaística de Breton recorre muito mais ao pensamento analógico do que lógico (até no Segundo Manifesto, em pleno furor marxista, ele se permite tecer considerações sobre a mesma conjunção planetária que teria presidido ao nascimento dele, de Eluard e de Aragon — olha, se recorrer à astrologia não é pensamento analógico, então não sei o que é). Permiti-me apontar como exemplo de leitura surrealista o capítulo em Volta, a minha narrativa em prosa, sobre Nadja de Breton, mostrando como essa leitura é aberta, ao contrário daquela que utiliza paradigmas, teorias literárias, forçosamente fechadas, pelo modo como vou atrás de sincronias, correspondências, acasos objetivos por sua vez tomados como reais. Quanto à poesia surrealista, ela é plural, inclui muita coisa tendente ao que faziam e viriam a fazer os construtivistas. Agora, é sempre regida pela analogia. Até perguntei, no meu artigo na Cult, por que, então, quando registramos sonhos, eles se parecem com obras surrealistas, enquanto poesia concreta, na sua manifestação mais típica, nem em pesadelos...
Zunái: Ainda é possível o surrealismo hoje?
CW: Acho que, em primeiro lugar, as pessoas têm que ler surrealismo, aqui no Brasil — tem muita gente dando opiniões as mais disparatadas, sem saber direito do que se trata. O fundamento, a idéia da contradição entre poeta e sociedade, do prosseguimento da rebelião romântica, continua valendo. Movimentos e ações coletivas inspiradas no surrealismo, acho perfeitamente possíveis, e seria muito bom se acontecessem. Percebo, hoje em dia, um tipo de cultura ou de movimentação underground que tende ao surrealismo, incorporando, é claro, a beat e outras tendências rebeldes e marginais. Isso está acontecendo, neste momento, nos Estados Unidos, com o grupo de Chicago. Algo disso, vejo em um projeto como o da revista Azougue — também em nossa revista eletrônica, do Floriano Martins e minha, Agulha, www.agulha.cjb.net , entre outros lugares, os quais vejo como registros, estações retransmissoras, não exclusivamente surreais, é claro. Neste número da revista Cult, que saiu enquanto respondo a suas perguntas, trato de burocratização do conhecimento. Surrealismo continua um grande antídoto, um instrumento de combate.
Zunái: O sonho das vanguardas era unir o “mudar a vida” de Rimbaud ao “mudar o mundo” de Marx. Como você vê a atual crise das utopias?
CW: Olha, “crise das utopias”, tem muita gente falando nisso pelo encerramento do ciclo dos regimes fechados, burocráticos, de planejamento central, da esfera do “socialismo real”, enfim, do modelo soviético. Mas essa nunca foi minha utopia, nem esta é minha crise, pois jamais esperei qualquer coisa desse tipo de regime, sempre os achei autoritários. Sou anarquista, e minhas utopias estão no mesmo lugar onde sempre estiveram. A rebelião individual, inspirada em Rimbaud e tantos outros, continua um caminho, talvez o caminho pelo qual seja possível seguir.
Zunái: Além do naufrágio do stalinismo, que colocou em crise as outras propostas de esquerda também, você não vê uma crise mais ampla, no sentido de ausência de uma proposta ética, espiritual ou humanista? Não houve um retrocesso em relação às rebeldias libertárias da década de 60? A sociedade neoliberal, com suas longas jornadas de trabalho e o ideal yuppie não trocou a contestação pelo conformismo, o peiote pela cocaína, droga de executivos que querem produzir mais?
CW: Sim, houve retrocesso. Mas na mesma proporção em que contracultura teve algo de modismo, de cultivo de uma exterioridade, de estereótipo, padronização, massificação, como se puxar um fumo ou tomar um alucinógeno ou escolher um repertório musical fosse, em si, mudar alguma coisa. O retrocesso já estava dentro, contido naquele período. Agora, neste momento, há crise, talvez esgotamento do projeto neoliberal. Mas quero saber o que irão propor em seu lugar. Não pode servir como defesa ou justificativa dos regimes fechados. Propostas éticas, espirituais, humanistas, existem. A questão é se irão adquirir caráter coletivo, como irão se projetar em forma de movimentos, de algum modo de ação.
Zunái: A opinião de um escritor tem importância, hoje, no Brasil? O que a UBE tem feito no sentido de resgatar o papel do escritor como consciência crítica da sociedade?
CW: Escritor consagrado é formador de opinião, sem dúvida, além de produzir realidade. Jorge Amado, que morreu há pouco — ele produziu Brasil, constituiu identidade. Era sócio da UBE, participou de um congresso de escritores, em Portugal, 89, do qual eu era um dos organizadores. Bela figura. Olha, diante de certas políticas literárias meio mafiosas, acho exemplar o comportamento dele — levar o Campos de Carvalho para ser publicado na Civilização Brasileira, apadrinhá-lo, quase — ele, Jorge, realista, Campos de Carvalho surrealista, ele militante, o outro nem aí...
A UBE procura defender os direitos do autor, políticas culturais democráticas, enfim, age em um plano institucional, além de promover atividades associativas. É uma entidade plural, com um quadro de sócios grande, que abrange uma diversidade de escritores, correspondendo a níveis e registros distintos do que se poderia chamar de consciência crítica da sociedade. Acho que o escritor desempenha esse papel através de sua obra, independentemente de uma entidade tentar resgatá-lo ou não. UBE pode ser um espaço de convivência, de diálogo, e instrumento ou meio para manifestações e tentativas de intervenção política nessas questões que mencionei acima, a começar pela democracia e liberdade de expressão. Sempre foi. Que interessante isso, Jorge Amado e Zélia se conheceram naquele congresso de escritores de 45, da ABDE, entidade da qual a UBE é sucessora... Você vê o que pode rolar (rolou bastante, no que me diz respeito) em entidades de escritores... Quem pensa que é de uma austeridade imitando cerimonial de Academia está enganado. Ao menos, comigo de presidente... Aliás, nesse aspecto, o informal, o não-oficial, o currículo da UBE é bom. Uma hora lhe conto umas histórias.
Zunái: A poesia é uma forma de sapiência, de loucura ou de retorno à infância?
CW: Tudo isso e muito mais. A imagem do Octavio Paz — a outra voz — acho perfeita.
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