top of page
Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

DO VERSO AO REVERSO E AO CONTROVERSO: A POESIA DE AUGUSTO DE CAMPOS, por Claudio Daniel

Atualizado: 22 de jan. de 2023



A poesia de Augusto de Campos situa-se no campo das vanguardas da segunda metade do século XX e adota o projeto de unir a palavra, a imagem, o som e o movimento em um único artefato artístico, pela mescla de recursos das artes visuais, da publicidade, da música e das tecnologias digitais. Conforme observou Manuel da Costa Pinto, o trabalho de Augusto de Campos utiliza outros suportes além do livro para a comunicação poética, como o holograma, o CD ou o videoclipe. O conceito de invenção, formulado por Ezra Pound, é essencial para a compreensão do pensamento e da prática poética do autor, voltado à pesquisa e experimentação de linguagem.


Em O Rei Menos o Reino, seu livro de estreia, publicado em 1951, Augusto de Campos pratica o verso tradicional, em poemas líricos, metafóricos, de forte tensão existencial. As imagens poéticas usadas nesta obra recordam por vezes a plasticidade surrealista, como por exemplo no poema O Vivo (“As mortas-vivas rompem as mortalhas / Miram-se umas nas outras e retornam / Seus cabelos azuis, como arrastam o vento![1]”), mas os versos são construídos com rigoroso artesanato formal, ao contrário da experiência mais espontânea da escrita automática. É possível identificar neste livro a influência de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e Federico Garcia Lorca, na construção de imagens e na experiência criativa com a sintaxe, que por vezes se afasta da lógica discursiva linear, prenunciando suas futuras experiências poéticas, como na peça que abre o volume (“Onde a Angústia roendo um não de pedra / Digere sem saber o braço esquerdo / Me situo lavrando este deserto / De areia areia arena céu e areia[2]”).


Em poemas publicados posteriormente, como O Sol por Natural (1950-1951), Ad Augustum per Angusta (1951-1952) e Os Sentidos Sentidos (1951-1952), o poeta vai progressivamente adotando o verso livre, a espacialização de palavras e linhas, a criação de neologismos e a fragmentação léxica. Em Poetamenos, que publica em 1955 no número 2 da revista Noigandres, ele apresenta um ciclo de poemas coloridos de temática amorosa em que a sintaxe discursiva é substituída pela organização gráfico-visual das palavras. Estas composições, inspiradas na melodia de timbres do músico austríaco Anton Webern (cada cor equivale a uma nota distribuída a um instrumento musical diferente) são os primeiros exemplos de Poesia Concreta publicados no Brasil. O movimento concretista, criado por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, defendia o “fim do ciclo histórico do verso” e propõe a criação de novas estruturas de composição poética, integrando recursos sonoros, visuais e verbais numa unidade “verbivocovisual”.


A proposta da Poesia Concreta tem como principal referência histórica o poema espacial Um Lance de Dados (1894) de Mallarmé, em que as palavras são dispostas de maneira geométrica na página, permitindo várias possibilidades de leitura, empregando ainda diferentes corpos de letras e fontes tipográficas, itálicos e negritos. A experiência de Mallarmé influenciou ainda os Caligramas (1918) de Apollinaire, em que cada poema tem uma organização visual relacionada ao seu tema (por exemplo, palavras dispostas na forma de um cachimbo, de uma pomba ou de uma fonte de água). Outras referências importantes para os concretistas foram os Cantos, de Ezra Pound, o Finnegans Wake, de James Joyce, e a poesia de e. e. cummings. No Plano-piloto da Poesia Concreta, publicado em 1958, os poetas concretos formalizam o seu pensamento estético, que seria desenvolvido em vários manifestos e artigos posteriores, reunidos na Teoria da Poesia Concreta (1975).


A Poesia Concreta surgiu num momento histórico em que a sociedade brasileira vivia um breve período de democracia política, acompanhada pelo surto desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek, que culminou com a construção de uma nova capital para o país, Brasília, projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Nesta época, em que também se aceleram a urbanização e a industrialização, com investimentos de capital estrangeiro, “surgem os primeiros filmes do Cinema Novo (...), Grande Sertão: Veredas, o Teatro de Arena, a Bossa Nova, João Gilberto, as vanguardas na poesia e nas artes plásticas”[3], como assinalam Iumna Maria Simon e Vinícius Dantas. Ao mesmo tempo, há um crescimento dos movimentos sociais, que demandavam a reforma agrária e outras mudanças na economia e na política do país, acirrando os conflitos com os setores conservadores, que irão apoiar o golpe militar de 1964.


Augusto de Campos aderiu a uma poesia participante em 1961 com o poema Greve, que concilia a invenção de linguagem com temas de caráter político e social, adotando como lema a frase de Maiakovski: “Sem forma revolucionária não existe arte revolucionária”. Nesta época, aliás, Augusto e Haroldo de Campos estudaram o idioma russo com Boris Schnaiderman, na Universidade de São Paulo (USP), para traduzirem poemas de Maiakovski, Khlébnikov, Krutchonik e outros autores de vanguarda russa das décadas de 1910 e 1920, reunidos na antologia Poesia Russa Moderna (1968). A temática social está presente em outros poemas de Augusto de Campos, como Luxo / Lixo (1965), construído como paródia das logomarcas comerciais, e na série de poemas-cartazes Popcretos (1964-1966), que afirmam a contestação da ordem econômica e política pelo trabalho criativo com a linguagem. Em Psiu, poema circular construído a partir da colagem de textos e imagens recortados de jornais e revistas, podemos ler, por exemplo, a frase “Saber viver, saber ser preso, saber ser solto” junto a outros retalhos semânticos como “bomba”, “dinheiro”, “amar”, “vamos falar”, “livre” e “paz”, além de “pedaços de mensagens comerciais, referências à ditadura militar e aos atos institucionais”[4], como observou Flora Sussekind.


Já no poema Cidade (1963), Augusto de Campos faz uma representação irônica do movimento caótico, acelerado e ruidoso da vida urbana, aglutinando, numa única linha, fragmentos de palavras em diversos idiomas, formando uma frase quase impronunciável (“atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveveravivaunivoracidade city cite[5]”). Este poema permite diferentes possibilidades de leitura, pela combinação e permutação de prefixos e sufixos presentes na frase, aglutinados ao substantivo “cidade”, gerando significados como “atrocidade”, “caducidade”, “causticidade”, “ferocidade”, entre outros. Uma experiência similar a esta é o Colidouescapo (1971), pequeno álbum composto de folhas soltas que podem ser intercambiadas em diferentes sequências pelo leitor, de modo aleatório, permitindo assim a construção de palavras inusitadas pela recombinação de morfemas (destinto, desescanto, resiscanto).


Poemóbiles (1974), conjunto de doze poemas-objeto coloridos tridimensionais, desenvolvidos em parceria com Júlio Plaza, também solicita a participação visual e tátil do leitor, já que cada uma dessas peças pode ser manipulada, como as esculturas móveis, ou móbiles, de Alexander Calder, conduzindo a diferentes interpretações. O poema Viva Vaia, que integra esta série, chama a atenção pela tipologia empregada, que abole as fronteiras entre palavra e imagem: os signos visuais podem ser “lidos” como letras (sons / idéias) e ainda como formas plásticas, recuperando a dimensão visual da escrita. Este é um dos aspectos centrais na poesia de Augusto de Campos, e atinge o seu ponto de maior desenvolvimento na Caixa Preta (1975), conjunto de poemas visuais e poemas-objeto elaborados novamente em parceria com Júlio Plaza, no qual se destaca o poema Pulsar, em que letras do alfabeto estilizadas mesclam-se a sinais gráficos como círculos e estrelas, que substituem as vogais. A peça foi musicada por Caetano Veloso, e consta na gravação em vinil que acompanha a CaixaPreta.


A obra de Augusto de Campos só obteve maior circulação a partir do final da década de 1970 com a publicação da antologia Viva Vaia (1949-1979), que reúne parte considerável de sua produção poética. Entre 1979 e 2003, o poeta publicou três outras coletâneas com mostras mais recentes de seu trabalho, Despoesia (1994), Não (2003, acompanhada de um CD-Rom com poemas dinâmicos e interativos elaborados com o apoio de programas multimídia) e Outro (2015). Como tradutor, Augusto de Campos divulgou em português autores como Ezra Pound, Mallarmé, Joyce, Cummings e Maiakovski. No campo da crítica literária e do ensaio publicou as antologias Re-Visão de Sousândrade (1964), Re-Visão de Kilkerry (1971) e Pagu: Vida-Obra (1982).


Estudioso da música erudita de vanguarda, publicou artigos sobre compositores como Edgar Varèse, Anton Webern e John Cage no jornal Folha de S. Paulo, reunidos posteriormente no livro Música de Invenção (1998). Augusto de Campos também se interessa por movimentos de renovação da música popular brasileira, como a Bossa Nova e a Tropicália, publicou o livro O Balanço da Bossa (1974) e tem parcerias com os compositores Caetano Veloso, Arnaldo Antunes e Arrigo Barnabé. Em 1994, gravou o CD Poesia é Risco, com Cid Campos. O poeta desenvolve hoje trabalhos na área da poesia digital ou eletrônica, utilizando programas de multimídia para explorar a animação e a interatividade. É possível acessar poemas recentes do autor no site http://www.uol.com.br/augustodecampos, entre eles Criptocardiograma, peça que integra a série Clip-poemas, em que a leitura é interativa: cabe ao leitor arrastar as letras de um menu-alfabeto para dentro de um campo de ícones, substituindo cada ícone por uma letra para compor o poema, numa operação lúdica que recorda o engenho barroco da poesia visual labiríntica. Convém destacar o trabalho de Augusto de Campos na área da crítica literária, que revalorizou poetas criativos do passado que se achavam esquecidos, como o romântico Joaquim de Sousândrade, o simbolista Pedro Kilkerry e os modernistas Oswald de Andrade e Patrícia Galvão (Pagu), considerados por ele poetas inventores, conforme a classificação do paideuma de Ezra Pound.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CAMPOS, Augusto de. Viva Vaia (1949-1979). São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.

GUIMARÃES, Júlio Castañon e SUSSEKIND, Flora (organizadores). Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.

PINTO, Manuel da Costa. Antologia comentada da poesia brasileira do Século 21. São Paulo: Publifolha, 2006.

SIMON, Iumna Maria e DANTAS, Vinícius. Poesia concreta (Coleção Literatura Comentada). São Paulo: Nova Cultural, 1982.

[1] CAMPOS, Augusto de. Viva Vaia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, 17. [2] __________. Viva Vaia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, 9. [3] SIMON, Iumna Maria, e DANTAS, Vinícius. Poesiaconcreta (coleção Literatura Comentada). São Paulo: Nova Cultural, 1982, 103 [4] GUIMARÃES, Júlio Castañon e SUSSEKIND, Flora (organizadores). Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, 155. [5] Campos, Augusto de. Viva Vaia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, 114-115

168 visualizações0 comentário

Komentarze


bottom of page