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Brontops Baruq - MINIANTOLOGIA DA FICÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA

Atualizado: 22 de jan. de 2023

PROSA VOLUME 5 NÚMERO 1


PAPO CABEÇA


Falam que surgiu na Índia. Um favelado meio gênio meio guru meio prodígio bolou por sua conta, usando umas coisas do lixão fez o primeiro dos Turbantes. Conversa! As pessoas adoram pensar que podem ser mais importantes do que são. Eu não acredito, não dá pra uma coisa dessas surgir na garagem de alguém sozinho. Pára com isso: não existe mais Santos Dumont, Steve Jobs, Satoshi Nakamoto. A tecnologia saiu das nossas mãos, só dá para bolar essas coisas em equipe, pesquisando por décadas. Não nos deixam mais fazer, só podemos comprar. Consumir, consumir. Agora só assim, tá tudo na mão dos governos, das multinacionais, dos gringos. Viramos uns peões, formiguinhas obedientes no circo deles.


Esse troço bem que podia ser mais bonito, eu comentei quando Maria trouxe do centro da cidade. Era um capacete branco grande, com uma espécie de peruca de ventosas por dentro, para gente ir colocando antes de ligar. Parecia mesmo um turbante. Eu disse que era ridículo demais, que eu não ia usar esse troço. Maria não deu nem trela, disse vai pra rua arrumar dinheiro e chega de encher meu saco. Dei um tapão na bunda dela para me despedir, ela fingiu que não gostou (ou vai ver não gostou mesmo, foda-se) e fui fazer minha ronda de aplicativo. Não dá dinheiro essa merda, mas compensa não ter chefe nem horário, só ficar na corrida poraí, que nem devia ser antes de haver cidade, civilização, casais, essas escravidões.


Voltei da rua, tava lá Maria, a louça toda empilhada para eu lavar. Do jeitinho que estava de manhã. Eu estranhei. Ela arruma uns trocados fazendo umas marmitas pros vizinhos e pras crianças sozinhas sem creche, enquanto os pais fazem suas correrias. Se estava tudo igual, então ela não passara pela cozinha desde manhã. Havia uns recados das pessoas reclamando e eu, cadê você Maria?


Ela estava deitada na cama, com o capacete na cabeça, os olhos virando e revirando, ela meio mijada e babada e rindo. O celular dela estava na mão, o Turbante vinha com um aplicativo de um mapa na cabeça para você escolher onde queria sentir os magnetos no cérebro. Eu desliguei o aparelho, ela gritou de susto e, depois de ver se ela não precisava ir ao Posto de Saúde, dei um esporro nela, você tá pensando o quê? Que essas coisas de mexer na cabeça não tem perigo? Não soube do primo do porteiro? Que depois de fritar a cabeça nessa merda ficou em coma para sempre? Ou da senhora do 901 que agora precisa brigar com a mão esquerda dela o tempo todo?


Maria nem piscou, ignorou minha gritaria. Me beijou na bochecha, agradeceu a preocupação. Pediu desculpa pela sujeira que fez e foi tomar um banho, um longo banho. Perguntei se ela se sentia bem, ela disse que estava se sentindo plácida. E eu fiquei ali que nem idiota diante da porta fechada e da palavra plácida. Quando foi que ele ouviu essa palavra? No hino da seleção?


Liguei pros clientes dela pedindo desculpa, explicando que houve um problema de saúde. Os vizinhos não gostaram nada, pô, ela não podia ter deixado recado? Eu não quis dar detalhe, inventei uma morte repentina, uma história horrorosa que já havia nos acontecido uma vez há muito tempo, daquelas para calar assunto. Depois fui lavar a louça e ela surgiu.


Falou uma cacetada de coisa, dos sonhos que teve, das memórias que relembrou. Falou do Turbante e do cérebro. Explicou que ondas eletromagnéticas podem conduzir e reordenar sinapses, que os eletrodos no lobo parietal levam à sensação de sair do corpo e era como se ela houvesse morrido e fosse uma alma, mas também era como um sonho, indo para lá e para cá sem sair do lugar. Disse que o capacete era capaz de estimular os neurônios espelho e que começara a entender coisas que sempre julgara injustas ou erradas. De retrair a ponte cerebral e se tornar incapaz de diferenciar delírio e realidade. Ou do inverso, de estimular o córtex pré-frontal para ser capaz de ser senhor do seu próprio sonho e compor cenários e movimentos, uma coreografia para sua mente dançar, avaliar, estudar, prever.


E eu fiquei ouvindo aquela baboseira e eu sem paciência, corta logo esse lenga lenga e conta o que aconteceu. Ainda tenho louça para lavar. Maria disse que havia revisto o primeiro filho dela, aquele que vive com a avó no Mato Grosso. Fazia anos que não se falavam desde que perdera a guarda para mãe. Ela precisava revê-los. E eu, reviu como? Telepatia? Televisão? Você voou até lá? Você nem sabe onde eles estão morando. Agora eu sei, Xavantina, fronteira com Goiás. E eu, duvidando ainda. Faz mais de 11 anos que vocês não se veem, saíram brigadas uma com a outra, você dizia que não havia nascido para ser mãe, e agora você tirou isso de onde? Foi esse capacete que botou esse troço na sua cabeça?


Ela não me negou. Explicou que sempre se achou meio devagar das ideias e esperava que o Turbante fosse dar um jeito, que fosse como um desses cursos que se acha pela internet, que iria explicar uma porção de coisas, porque havia o bem, havia o mal, se havia mesmo Deus ou coisa parecida. Ou no mínimo, uma nova receita para fazer na marmita, uma receita nova e deliciosa que pudesse fazer a diferença e os ajudassem a pagar as contas. Mas não veio nada disso, nenhuma grande ideia, só desenterrou sentimentos inesperados, intuições, desejos e vontades. Nenhuma grande descoberta, nenhum plano fantástico, nenhuma forma de chegar em Marte. Só reencontrar o filho e a mãe.


Eu vi que Maria estava serena. Foi outra palavra que ela usou. Fiquei olhando bem para ela. Parecia que havia crescido, não de tamanho, continuava aquela baixinha fogosa, mas o fogo agora era outro, era um laser no escuro: preciso, contido, frio, uma mira de pistola. Senti que ela ainda gostava de mim, mas... agora era eu o pequeno. Eu não ia mais segurá-la. Faz o que você quer então, vai pode ir, mas não me peça para esperar. Ela concordou. Pedi só para ela conversar com os vizinhos e os clientes para que não ficassem pensando coisas erradas a meu respeito. Ela se comprometeu.


Voltei para rua, fazer dinheiro. Sem o dela eu ia precisar de mais do meu. Não me despedi, a gente ainda ia se ver enquanto preparava os arranjos para ir embora. Boa parte da louça ficaria suja. As ruas passavam, enquanto não pingava um passageiro. Fiquei pensando se eu também não deveria experimentar o Turbante. Ver se não tiro umas coisas da minha cabeça ou se faço alguma descoberta assim que nem a dela que me refaça.


Ou talvez não, vai ver a gente é mais feliz sendo errado do jeito que é.


Brontops Baruq é o pseudônimo de alguém nascido em São Paulo no ano de 1973. Publicou em diversas coletâneas de contos: Brinquedos Mortais, da editora Draco e Cartas do Fim do Mundo e Alterego, ambas pela Terracota. Participou de vários números do Projeto Portal, capitaneado por Nelson de Oliveira. Seu primeiro livro solo é "O Grito do Sol sobre a Cabeça" (Terracota).

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