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ALGUÉM QUE ENTRE PELA PORTA (SOBRE A POESIA DE ANDRÉ DICK) por Ronald Polito

Atualizado: 17 de ago. de 2022


Quando lemos um novo livro de um poeta, é natural que nos perguntemos sobre os rumos que ele tomou em relação a seus trabalhos anteriores. O que desdobrou daquelas tentativas, o que deixou para trás, em que medida e como pode apresentar outros caminhos. Sobretudo, se há mais continuidade ou ruptura ao longo de sua trajetória. É partindo desses elementos que pretendo comentar Neste momento, de André Dick, reunião de poemas que escreveu nos últimos dez anos.


Num primeiro olhar, pareceria que seu livro dá continuidade a muitos traços presentes nos anteriores. Em um aspecto geral, não se distancia deles quando sempre opera com palavras as mais simples, correntes, e com estruturas sintáticas que não podem ser caracterizadas como complexas. E observando mais de perto essas palavras, em todos os livros há diversas recorrências, sobressaindo os elementos da natureza, o sol, o vento, as árvores, as flores, os animais. Os lugares também são praticamente os mesmos, configurando uma geografia intimista, reduzida espacialmente, sobressaindo a casa, o quarto, o jardim, o pátio, por vezes uma rua, rara a cidade. E os âmbitos da memória também se “repetem”, lembranças da infância, de familiares, tanto quanto algumas referências literárias, das artes, da cultura, como os poetas simbolistas franceses e os modernistas brasileiros. Pareceria, assim, que nada mudou.


Minha percepção, no entanto, vai no sentido contrário. É mais que inesperado que tantas recorrências desaguem numa ruptura e ela me parece profunda. Isto porque há propriamente uma mudança na esfera da paixão, da emoção com que se sente a vida e, por consequência, na forma que a linguagem adota neste cenário. Os comentadores de seus livros anteriores, Grafias (2002), Papéis de parede (2004) e Calendário (2010), anotaram um feixe de traços que os caracterizam. Do ponto de vista formal, sobressairia certo desenvolvimento entre eles: os versos curtos e as estrofes feitas fragmentos do primeiro livro ganham maior desenvolvimento no segundo e mais ainda no terceiro, alcançando o poema em prosa. Apesar dessa expansão, ela não subverte a descontinuidade estrutural que subjaz a essa poética. O que se nota, por exemplo, no que pode haver de narrativa nesses poemas, segmentos de ocorrências ligados tenuemente ou mesmo não ligados, quando justapostos para atestarem sua mútua estranheza. Circunstâncias em que os espaços em branco entre as estrofes demandam que o leitor invente um caminho para transpor a distância muito mais que física entre elas. Também unifica esses três livros um modo de reflexão específico, o predomínio do solilóquio, uma conversa consigo próprio tentando dar sentido às coisas e à história pessoal. Nesse monólogo, talvez o ponto mais forte seja a tentativa de comunicação com a natureza. Lida na chave do maravilhoso, dos efeitos estupefacientes de luzes, cores, formas, da busca simbolista da mais ampla sinestesia, ela continua inatingida, hipótese de pacificação que não se realiza no sujeito. Posso expressar mais objetivamente essa ideia mencionando uma das palavras mais caras ao poeta, o “desalento”, que atravessa esses livros. Ou o “nada” e seus sucedâneos, a falta de sentido de tudo, a solidão, o incompreensível. A dimensão torturante da experiência que tanto atraiu a produção da arte, da literatura e da cultura da alta modernidade fatigada.


Nada disso mais tem valor neste momento. O livre-arbítrio é um sentimento. Talvez vencido por aquela esgotante perquirição sem fim, André parece ter deixado de fazer perguntas a favor de tentar descrever, definir, organizar, enumerar, contrastar, elencar, reunir as coisas, as lembranças, os momentos. Há sempre a possibilidade do reencantamento do mundo, de inventar outro mundo. Nele, a necessidade da narrativa perde passo diante da imperiosidade que é a criação de metáforas. A história fragmentada, inapreensível, é substituída pelo enredo leve de sensações com uma unidade por vezes fulgurante. Por isso a palavra “desalento” não existe em seu novo livro, bem como seus correlatos, e uma poética também se define em termos fortes pelo seu silêncio, pelo que abandona, descarta, supera. Porque, agora, o poeta decidiu mandar “às favas o nada”. E se afastar da melancolia de Saturno, um astro que sempre o incomodou particularmente. O solilóquio prossegue, mas há mais momentos de abertura, de querer ser ouvido e se comunicar, o que o título do último poema do livro atesta.


Esse voltar ao início, à linguagem primeira, obriga à reconstrução da “Infância”, não por acaso o título da primeira seção do livro, tal qual um Miró, um Cy Twombly da poesia. O texto de abertura, “Zoografia”, dá o tom do que ocorrerá em termos de procedimentos e enfoques não apenas formais em diversos poemas, como a atmosfera fabular e fantasiosa. Uma denominação assombrosa que uma criança formula para as coisas do mundo, tanto mais pela indistinção, onde tudo possui anima: lobo, árvore, guindaste, e também aquela que o enuncia, ao incluir nas descobertas a “batida de coração”. As partes de um todo vivo. O que importa é reconstituir as correspondências, estabelecer novas ligações sensórias “de uma floresta de signos”, como se lê no poema “Palavra”, esse legado da modernidade. E a serem mantidas depois da infância, tal como se realizam no poema “Zoo”, bem mais à frente, com a mescla dos inesperados: “um ponto de interrogação” entre os bichos, e “my heart, sky, seu coração”, ou no poema “Flora”, que, na realidade, é uma enumeração de bichos, inclusive os imaginários, como Pernalonga e Patolino.


Um bom conjunto de poemas, talvez o melhor do volume, se articula nesses termos: listar, denominar e ao mesmo tempo correlacionar e contrastar campos da experiência. É o caso dos poemas “Nascimento”, “Estações”, “Lobo”, “Sentir”, “Pais”, “Direção”, “Silêncio”, “Sou”, “Sistema solar”, “Comunicado”, “Tartaruga”, “Flora”, “Borboleta”, “Beleza”, “Luta”, “Estamos”, “Rosto”, “Zoo”, “Reencontro” e “O amor”, para citar os mais evidentes. A figura mais recorrente em sua organização é a anáfora, usualmente empregada em tentativas de reconhecer os elementos de um campo ou para enfatizar os sentidos almejados. Praticamente, não há precedentes substanciosos em seus livros anteriores. Em apenas um poema, “Sem tato (2)”, do livro Papéis de parede, ele se utiliza de anáforas e de forma parcimoniosa. E agora, em seu novo livro, quebrando a típica monotonia que uma figura como essa pode gerar, André faz uso de um engenhoso sistema de delicadas rupturas ou suspensões de seu funcionamento, criando uma dinâmica toda própria que faz a anáfora produzir outros rendimentos e efeitos. Veja-se, como um exemplo entre tantos, as quebras que introduz no poema “Comunicado”, montado a partir da repetição de “você está”, interrompido em alguns passos como “Você está em movimento / Você e o vento”, e, mais adiante, quando “Você está sendo notado / (...) / Quarta, quinta, sexta, sábado”.


Este mesmo poema testemunha também uma aderência ao tempo presente, menos notável em seus livros anteriores, num gesto político mais declarado em nosso mundo vigiado: “Você está sendo observado”. Para não restar dúvidas, o bordão é repetido: “Você está sendo observado”, e a situação do sujeito é mais esmiuçada: “Você está sendo notado / Anotado, reescrito, remanejado / Conduzido, circunscrito, recolocado / Quarta, quinta, sexta, sábado / Prolixo, propagado, adiantado / Convencido, programado, comunicado”. Se nele a circunstância contemporânea do mundo controlado é alçada a primeiro plano, essa mesma questão se insinua pelo livro em diversas passagens. “Sou a favor de ser contrário”, lê-se no poema “Sou”, “Quando tudo estiver normalizado”, no poema “Avisos”, todo o poema “Programado”, que gira em torno da atual pandemia, “Não adianta gás lacrimogêneo / Não adianta ameaçar com fogo”, como se vê no poema “Beleza”, “Lutando pelo que sonha / Lutando pela terra / (...) / Lutando contra a guerra” (em “Luta”). Isso implica também maturidade, não perder tempo com o que não vale a pena: “Não lutando contra as palavras / (...) / Não lutando contra as rugas/ (...) / Não lutando contra a idade” (também em “Luta”). Porque o poeta sabe: “Estamos todos livres / Mas só em pensamento”, e calmamente pode advertir como alguém que não desistirá: “Estamos todos olhando a parede / Com um belo olhar sereno” (em “Estamos”). Mas sublinhe-se duplamente: essa dimensão de intervenção no debate contemporâneo situa-se a léguas de distância do que há de piegas, de patético, de ridículo mesmo nos minidramalhões e fúrias fúteis em que chafurda tanta poesia atual que se quer “participante” com suas cenas até pornográficas de “política explícita”.


Pouco a pouco o solilóquio se metamorfoseia em ode, um homem novo surge na paisagem devastada do presente, e ele se agarra com seus mil braços a um mundo também possível, este em que poderiam valer a alegria, a felicidade, o amor, em suma. É quase falta de modéstia falar hoje em alegria num contexto poético afogado em lamentações e manifestações de horror ao tempo presente. É um gesto de força afirmar a vida no meio da morte e precisamos muito disso, daí a importância e as distâncias acentuadas nesse livro em relação ao panorama poético atual. Entre perdas e danos, o poeta pode afirmar: “Ganhei o nascimento” (em “Nascimento”), dizer despudoradamente que “Todos aqui são felizes” (em “Estações”), decidir “Ir até para aprender a voltar” (em “Sentir”). E sem qualquer ingenuidade: “Eu vou me alegrar, mas reclamando”, como está dito no poema “Direção”, o mesmo em que sentencia: “Eu vou ver o universo e todo seu brilho”. Este direito inalienável à felicidade, que é simultaneamente nosso dever, é também o lugar onde a unidade se reinstitui, onde o eu e o mundo se fundem: “Brilho, estrela, sol, coração” (em “Avisos”), “Sou feliz por estar aqui” (em “Sou”), “Todo o amor pelos meus pais” (em “Sistema solar”, um tour de force em torno de uma unidade essencial), “Tudo um dia volta a ser amado” (em “Fliperama”), “Um só infinito” (em “Big Bang”), “E, quando imagino viver a alegria, / isso traz um ar permanente / não de distância, mas de euforia” (em “Casa”), “A vida prospera, é o que é / Tarda, mas não falha” (em “Tartaruga”). Em poucas palavras: “um mundo / fantástico” (em “Caligrafias”); contra tudo e todos, “Ainda vai ter beleza” (em “Beleza”). “O amor / Pelo outro” é a maior tarefa (como se lê no encerramento do poema “Outro”), esperando “O afeto de alguém que entra pela porta” (em Memória”), “O seu sorriso: // Uma petúnia” (versos finais do último poema do livro, “O seu sorriso”). Em um mundo tão áspero, brutal, injusto, ainda é possível alguma delicadeza.

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