ENSAIO VOLUME 5 NÚMERO 2
De todas as infindáveis formas possíveis de se analisar o mito de Don Juan, uma delas, na obra-prima homônima de Byron, diz respeito à sátira ao poder do capital, que reflete decerto o espírito das revoluções de seu tempo, algumas das quais o poeta participou ativamente, como se mostrou no capítulo 2 da tese Don Juan de Lord Byron – Tradução Integral, Comentários e Notas, quer apoiando Napoleão, ou depois a sociedade secreta dos carbonários na Itália, ou enfim se reunindo com os filo-helenistas, aqueles que inicialmente incentivaram os estudos dos clássicos gregos nas escolas da Europa, o que levaria diversos aspirantes a heróis, alguns deles poetas românticos, a se alistarem nas batalhas contra os turcos pela libertação da Grécia, causa pela qual Byron apostou todos seus últimos esforços e perdeu a vida, como se sabe.
O instinto de rebeldia de Byron trata-se de um assunto delicado, repleto de contradições das quais ele próprio esteve ciente.
Em amplíssimo sentido, qualquer grito libertário de revolta contra a ordem opressora instituída é um ato anarquista. Sendo assim, Byron seria anarco-individualista, mas a coisa está longe de ser simplória dessa forma.
Por outro lado, o anarquismo enquanto “sistema político” depende em grande medida da consciência de classes, essa que não existia ainda nos tempos de Byron, tendo começado a se desenvolver na Inglaterra e França em 1830, alastrando-se para outras regiões apenas por volta de 1848, como aponta Hobsbawm. Visto por esse lado, além de outros fatores, seria impossível chamar Byron de precursor do anarquismo. No entanto, Byron obviamente conheceu as obras de William Godwin, pai de Mary Shelley, precursoras do anarco-individualismo, famosas nos círculos radicais de Londres desde 1790, que influenciaram inclusive Shelley, cujo poema “The Mask of Anarchy”, sua resposta ao Massacre de Peterloo, destaca-se sobre o assunto.
Dessa forma, em linhas gerais, se o pensamento de Byron era anarquista, se ele (e o Romantismo em geral) cultivava as extremidades, “qualquer que seja o seu conteúdo, era um credo extremista” (Hobsbawm, p. 281), se depois suas ideias também tenderiam ao nacionalismo que culminaria um século depois no fascismo, se a época de extremos fez Wordsworth e Coleridge irem da extrema esquerda à extrema direita, e se Victor Hugo fez o movimento inverso, enfim, se Byron tinha ideais bastante libertários, ele usufruía de todos os privilégios de sua nobreza e conhecia o poder absoluto do dinheiro, tornando-se avaro e vendendo suas obras cada vez mais caro.
Parece ser difícil lidar com isso na prática, sem dúvida, mas em tese acontecia simultaneamente, angariando os inúmeros conflitos que obviamente provinham dessa atitude contraditória. Assim, sua paixão por Napoleão arranjou-lhe vários transtornos em Harrow, e total descredibilidade no Parlamento. Seu experimentalismo na área da “libertação moral” de seu ménage com a esposa e a meia-irmã levou-o a autoexilar-se da Inglaterra. Algum tempo depois, na Itália, alguns de seus serventes jogar-lhe-iam na cara essa contradição, ironizando o lorde rico que do alto de seu poder clamava liberdade aos pobres. Não obstante, pode-se imaginar que sua fama literária da noite para o dia só foi possível graças aos seus privilégios de uma boa educação, da sua possibilidade de viajar para onde queria, mesmo que à custa de empréstimos, de ser publicado pela melhor editora, até seu fim relativamente heroico só foi possível graças a grande quantia de capital investido. Até a respeito de sua glória posterior, não sendo tão influente na contracultura e na poesia beat quanto Blake e Shelley justamente por conta de sua classe. Tudo isso parece de igual modo verdadeiro.
Observando-se por outra perspectiva, no entanto, em Don Juan ele deixa claro, em estrofes anteriormente citadas na tese, como um dia o povo veria a monarquia como os dinossauros, ou seja, como objetos de museus, relíquias completamente antiquadas e obsoletas. Byron era utópico o bastante para julgar que a monarquia e a opressão estavam com os dias contados naquela época, ledo engano, quando ainda hoje parece algo distante. Ademais, do mesmo modo que dava voz aos miseráveis, que seus discursos na Câmara dos Lordes eram em prol das minorias reprimidas, como os ludistas, tecelões desempregados quebradores de máquinas, e que seus versos, sua fama, sua fortuna, e mesmo sua vida, fossem dedicadas à libertação da Grécia, é possível imaginar que Byron entregaria de bom grado, como entregou, seus privilégios pela causa da liberdade dos povos, caso chegasse a hora e a vez. Apesar disso, também é possível que se chegasse a ser conclamado rei da Grécia, não recusaria, conquanto tivesse de ser uma monarquia idiossincrática, sendo-lhe facultado renunciar ao trono quando bem entendesse.
Ainda que tais reflexões soem quase inapreensíveis, é válido ressaltar que um dos alvos principais da sátira de Don Juan é contra a hipocrisia, portanto tudo isso é bastante sincero, ou será ironizado, como sua obra demonstra.
Como sustenta Hobsbawm, poeticamente, “crítica semelhante também se desenvolve, em relâmpagos visionários muito próximos da excentricidade, ou mesmo da loucura, entre os primeiros socialistas utópicos da França. Os primeiros seguidores de Saint-Simon (embora não o seu líder) e especialmente Fourier dificilmente podem ser considerados outra coisa que românticos” (p. 285).
Apesar disso, “desde o início, o revolucionário romântico não foi inteiramente uma novidade. Seu precursor imediato foi o membro das sociedades secretas e das seitas maçônicas revolucionárias – carbonaro ou filo-heleno – cuja inspiração vinha diretamente de velhos jacobinos ou babovistas sobreviventes como Buonarroti” (p. 291). E o autor segue trabalhando as contradições da época, quando afirma que “foi a típica luta revolucionária do período da Restauração, cheia de ousados jovens armados ou vestidos com uniformes hussardos, saindo de óperas, soirées e compromissos com duquesas ou de reuniões ritualistas maçônicas para dar um golpe militar ou se colocar à frente de uma nação revoltosa; de fato, seguiam o padrão de Byron” (idem).
Ainda de acordo com o historiador, a seguinte voz do Manifesto Comunista, contra o “mundo burguês”, “fala também por todos os românticos”:
Ele impiedosamente quebrou os fortes laços feudais que uniam o homem a seus “superiores naturais”, e não deixou nenhum outro vínculo entre os homens a não ser o puro interesse pessoal e o insensível “pagamento em espécie”. Ele afogou os mais divinos êxtases de fervor religioso, de entusiasmo nobre, de sentimentalismo filisteu, na congelada água do cálculo egoísta. Transformou o valor pessoal em valor de troca, e em lugar das inumeráveis e inquebrantáveis liberdades ergueu uma simples e inescrupulosa liberdade – a liberdade do Comércio. (Hobsbawm, 1981, p. 286).
Hobsbawm cita Chopin, Liszt, Verdi, Mickiewcz, Manzoni, Uhland, Heine (esse amigo íntimo de Marx), entre os vários “artistas (que) se tornaram figuras políticas e não só em países com angústias de libertação nacional” (p. 291).
De um modo surpreendente, o espírito revolucionário de Byron causa tanta estranheza ao homem moderno porque se assemelha demasiado ao revolucionário de hoje, que em grande parte age de modo idêntico ao capitalista, burguês ou neoliberal em relação às próprias finanças e relações comerciais, embora seja socialista ou comunista ideologicamente, e apenas um pouco mais liberal nos costumes, conquanto raramente deixe de aproveitar quaisquer privilégios ou promoções que apareçam seja lá qual for sua ideologia. Por vezes, no Brasil, ambos ainda torcem pelo mesmo time de futebol – e abraçam-se quando ele é campeão.
Destarte, a estética dos extremos do Romantismo, difícil de assimilar de início, mas relativamente comum na prática, acharia na figura paradoxal de Byron um nicho apropriado para florescer.
Byron, por sua vez, em sua obra-prima, tomaria outra figura bastante contraditória, Don Juan, mais um rebelde aristocrata que usufrui de todos os privilégios de sua classe para exercer seus desejos inescrupulosos, desafiando a moral, os costumes, a crença e até a divindade, enfim, Byron tomaria o mito de Don Juan para redimi-lo, tornando-o mais humano, graças justamente a seus erros e contradições.
Portanto, além da imensidão de heróis fabricados com a Revolução Francesa, a época de Byron tinha seus “heróis míticos”, nas palavras de Hobsbawm, “como Satã, Shakespeare, o judeu errante e outros pecadores que se colocavam mais além dos limites comuns da vida” (p. 281).
Ademais, havia também alguma transgressão à religiosidade em se idolatrar o dinheiro, “o elemento demoníaco na acumulação capitalista, a busca ininterrupta e ilimitada de mais, além dos cálculos da racionalidade ou do propósito, a necessidade ou os extremos do luxo, tudo isso os encantava” (idem). Os luxos e extravagâncias de Byron foram o motivo mesmo de sua perdição econômica com os empréstimos dos judeus, obrigando-o a vender a mansão de seus antepassados.
Sendo assim, duas obras-primas do período tratam especificamente do mesmo tema, o desejo e a cobiça de mais, “alguns de seus heróis mais característicos, Fausto e Don Juan, compartilhavam essa insaciável ganância (...)” (Hobsbawm, p. 281). Como será visto adiante, sexo é também poder, e as conquistas são igualmente colecionáveis como posses e títulos, e quando Juan é comprado como escravo sexual e recusa amar a sultana, busca-se mostrar indiretamente que algumas coisas não se encontram à venda, ou assim o autor quis fazer crer.
Utilizando o mito de Don Juan, lidando com questões como acúmulo e ganância, Byron busca redimir o herói, como dito, ao começar sua narrativa do início, narrando uma infância comum, com uma educação reprimida sobre alguns temas, em alguns pontos semelhante a do próprio autor, e depois uma série de aventuras durante as quais vai aos poucos perdendo sua inocência, sendo lançado à maioria delas contra sua vontade pelas vicissitudes – ou ironia – dos fados.
Juan quase nunca age para impedir tais fatalidades, quando faz qualquer coisa, apenas piora a situação. Desse modo, algo óbvio, ele não poderia seduzir ninguém ativamente, mas seduz passivamente muitas das mulheres com quem trava contato ou, em outras palavras, atraia-as, sendo de certa forma seduzido por elas.
Com essa atitude, em um épico inacabado justamente quando começaria a perdição de Juan, a qual talvez culminasse em casamento, dá-se a remissão do mito do sedutor maligno, passa-se a ver Don Juan como um jovem atraente pronto para ser seduzido. Essa subversão no mito que Byron opera desagradou principalmente as mulheres, as quais dedicaram-lhe severas críticas sobre o ponto. O poeta, por sua vez, chamava hipocrisia delas negarem que tinham papel ativo no jogo da sedução.
Seja como for, o Don Juan de Byron é um exemplo de conduta, totalmente distinto da imensa maioria daquilo que era propalado acerca do mito até então.
E se não era do personagem aquela voz irônica, cética e intrépida contra os costumes e crenças, satirizando heróis e reis em seu Don Juan, quem seria?
O narrador, mais especificamente, a voz digressiva que o tempo todo irrompe à narrativa para tecer os mais díspares e esdrúxulos comentários.
Portanto, nas próximas linhas, apreciar-se-á como Byron opera ao mesmo tempo por vias dúplices no mito, criticando de forma oblíqua através do narrador o que Don Juan representa em sua essência, e redimindo a interpretação convencional do mito através do personagem, a qual, não obstante, tenderia a redimir o consenso geral a respeito de si próprio também tido como um Don Juan, tendo inclusive feito suas listas de conquistas e outras façanhas, como pode ser visto nos capítulos anteriores da tese.
Das muitas formas que o Romantismo tomou para contrapor-se à cobiça e ânsia por lucro, Hobsbawm aponta que “o capitalista e o racionalista eram os inimigos contra quem o rei, o senhor e o camponês tinham que manter uma sagrada união” (p. 289), e de modo indireto, que “de Rousseau, que a sustentava como o ideal do homem social livre, até os socialistas, a sociedade primitiva era uma espécie de modelo para todas as utopias” (idem). Portanto, como fez o Romantismo em geral, e Byron em Don Juan particularmente, critica-se o capitalismo pela primeira ótica, e louva-se a segunda, buscando o mesmo efeito do primeiro gesto.
Os anos que se seguiram à morte de Byron foram catastróficos para os trabalhadores, a miséria se alastrava e os ideais libertários juntamente. Os produtos alimentícios recentemente importados das Américas para a Europa, considerados a solução para as frequentes crises de carestia, como a batata, após duas safras malsucedidas acarretaram na morte de parte da população da Irlanda, por exemplo, coisa que Byron já alertava com ironia em Don Juan.
A revolução parecia iminente, Byron decerto a pressentira; “em 1831, Victor Hugo escrevera que já ouvia o “ronco sonoro da revolução, ainda profundamente encravado nas entranhas da terra, estendendo por baixo de cada reino da Europa suas galerias subterrâneas a partir do eixo central da mina, que é Paris”. Em 1847, o barulho se fazia claro e próximo. Em 1848, a explosão eclodiu” (Hobsbawm, p. 332).
Em alguns pontos a sociedade de Byron distingue-se da atual no campo da moralidade. Em sua época, ter vários relacionamentos amorosos, poligamia, homossexualismo, por exemplo, causavam relativamente mais escândalo que hoje em dia. Outros assuntos, incesto, zoofilia etc, permanecem tabus ainda hodiernamente. A relação com o dinheiro também pode ser considerada tabu em algumas culturas ou períodos históricos.
À parte tais questões, algumas das quais serão tratadas nos subcapítulos subsequentes, resta saber, antes de uma breve análise de Don Juan, qual projeto – se havia um – o autor pretendia a sua sátira épica.
O maior esboço de intenções disponível elaborado pelo próprio foi explicitado em carta remetida a John Murray, em 16 de fevereiro de 1821, da qual se apresenta a seguir a tradução de um trecho.
Caro Moray,
(...) O 5° (Canto) está longe de ser o último de D.J. que mal está no começo. – Eu tenciono fazê-lo dar uma volta pela Europa – com uma mistura razoável de cerco – batalha – e aventura – e fazê-lo terminar como Anacharsis Cloots – na Revolução Francesa. – Por quantos Cantos isso vai se estender – eu não sei – nem se (mesmo que eu viva) será completado – mas essa era minha ideia. – Tenciono fazê-lo cavalier servente na Itália e uma causa de divórcio na Inglaterra – e uma figura sentimental de Werther na Alemanha – só para mostrar os diferentes ridículos da sociedade em cada um desses países – – e mostrá-lo gradualmente gatè e blasè conforme envelheça – o que é natural. – Mas ainda não tenho totalmente decidido se o farei terminar no inferno – ou num casamento infeliz, – não sabendo qual seria mais cruel. – A tradição espanhola diz inferno – mas é provavelmente apenas uma alegoria de outro estado. – – – – – –
Não se pode chamar de um projeto bem desenvolvido, ou que pretende abolir o acaso. Porém a essa altura ele já havia contado toda a infância de Juan, e o detalhamento do naufrágio, mais o amor por Haidée, a venda de Juan como escravo para a sultana, algo até então raramente tratado nas versões do mito que lhe antecederam, a infância cerceada e inocente do mito. Apesar disso, Juan foi apenas vítima das contingências inesperadas da sorte, o autor estava tomando aí as mais diversas liberdades em seu tratamento do mito, reinterpretando-o a seu modo, e quem de fato interferia na narrativa praticamente roubando a cena do protagonista seria a voz digressiva.
Vejam-se dessa forma alguns exemplos das várias estratégias de sátira e ironia que a voz digressiva, ou o narrador onisciente intruso, insere na narrativa como crítica à prática capitalista, comercial, focada no lucro, vantagista e até idólatra do dinheiro, da burguesia que se fortalecia – e desafiava a importância da própria nobreza, cujos membros às vezes eram nobres empobrecidos ou falidos – naqueles tempos pós-Revoluções Industrial e Francesa, movimentos em grande medida burgueses, durante os quais o autor compunha sua obra.
Nos primeiros versos da Dedicatória a Southey aparecem criticados os lake poets que em sua juventude apoiaram Napoleão, e então se tornaram conservadores, particularmente Southey, que recebia sua pensão de Poet Laureate: “Conquanto um Tory tu tenhas virado, / obrar destarte é hoje mui constante” (I). E a crítica prossegue com o narrador afirmando que “não imito esta ideia ordinária, / nem por esmola meu amor-próprio prosterno” (VI). Em seguida passa a criticar Castlereagh, que em “mercancias vis, sarrafaçador (...) / forma escravizadores, grade emenda, / Deus e o homem têm repulsa da sua renda” (XIV).
Qual o motivo alegado para a opção pelo mito de Don Juan como personagem principal em seu épico satírico? Basicamente, os jornais produzirem diversos heróis todo dia, dentre eles incluindo alguns mercenários, até posteriormente se descobrir a hipocrisia, e que o heroísmo não era verdadeiro, e por isso Byron preferiu “o velho amigo Don Juan” (I, I).
Nas digressões que o narrador envolve-se ainda no Canto I tratando da idade de Don Alfonso, afirma que aos cinquenta anos amor puro é raro, porém de todo modo “(...) é cinquenta luíses bom pra / se obter boa quantidade numa compra” (CVIII), explicitando como alguma quantia em dinheiro pode comprar até amor – o oposto do pensamento idealizado romântico ao qual o amor é algo sagrado. Pouco adiante, manifesta-se como por vezes se deseja a morte de alguém mais velho, esperando-se ficar com a herança (CXXV). Assim, no primeiro Canto, amor e morte, temas românticos por excelência, subordinam-se à angústia capitalista, ao dinheiro.
Em seguida, o narrador, em novas digressões, nota como as diversas descobertas feitas à época “gênio franco e bolso vazio apontam” (CXXIX), isto é, o grande desenvolvimento visto nas ciências e invenções, a maior parte efetuada para o aperfeiçoamento dos meios de produção e comunicação, como de máquinas de tear, transporte a vapor, telégrafo etc, buscava por vias ingratas (como ainda hoje) meios de financiamentos para suas pesquisas.
Adiante, quando os versos dão voz às invectivas de Júlia a Alfonso, ela, irada, expressa uma opinião com franqueza excessiva dizendo que a ação do advogado era a “menos desculpável, / dinheiro sujo, é óbvio o seu porquê, / em nada lhe interessa eu ou você” (CLI).
Na estrofe CCXXI, encerrando o Canto I, o narrador dirige-se ao leitor, mas, mais ainda, ao “bom comprador”, desmistificando mesmo a aura romântica da poesia, expondo que seu interlocutor principal, aquele a quem escreve, é de fato o comprador de seu livro.
Na cena do naufrágio do Canto II, quando vão deixar a nau que afundava para saltar aos botes, Juan “enfiou seu dinheiro onde pôde em / si mesmo e em Pedrillo, que o deixou agir / como bem entendesse”. Byron demarca sutil e capciosamente, de passagem, que não importa o que aconteça, perdem-se até amigos e cachorro, mas se salva o dinheiro.
Quando Juan, o único a salvar-se do naufrágio, é encontrado por Haidée e sua criada desfalecido na praia, e elas lhe oferecem um café da manhã, o narrador faz questão de ressaltar que foi “por amor, por money não” (II, CXLV), de igual modo julga necessário dizer que a ilha onde Haidée era princesa, embora não fosse grande, era a “mais rica” (CLIV).
Durante a descrição do luxuoso banquete do casal Juan e Haidée, há uma paródia de poeta, ironizando novamente Southey, que entoa um hino pela independência da Grécia. Além desse hino, que é sincero, há outros, entretanto, que o poeta entoa hipocritamente apenas para agradar, por vezes mesmo “mente com tal fervorosa intenção, / claro que havia uma laureada pensão” (III, LXXX).
Porém o pai de Haidée retorna inesperadamente e separa ambos à força: Juan é vendido como escravo e Haidée enlouquece e morre grávida. Agora Juan, na condição de escravo, levanta diversas conjecturas acerca do capitalismo que se desenvolvia graças ao uso de mão de obra escrava. Embora a situação seja lamentável, não é o horror da escravidão necessariamente que impulsiona as potências a pressionarem o sistema colonial escravocrata naqueles tempos em que Byron escrevia a obra, e sim a concorrência injusta nos meios de produção e os empecilhos que a escravidão gerava na incrementação de um mercado consumidor pra vazão de seus produtos industrializados.
E Juan, “ainda que pálido, era lindo mor. / E aí – eles calcularam seu valor” (V, IX). Chega-se mesmo em determinado momento a se orar aos céus para “que alguém queira comprar-nos” (XXIV).
Como o escravo a quem vai arrematar.
É mui bom comprar nossos semelhantes,
E estão todos à venda, se se olhar
Paixões e habilidades. Por semblantes
Compram-se uns, já uns por líder militar,
Cargos, vai de idade e índole, bastantes
Por grana viva; mas todos têm preço,
De coroas a seis pence, o vício a ver-se. (XXVII).
Se o apetite foi bom, quem há que entenda?
Ou, se foi, também foi sua digestão?
Creio que à refeição ideia estranha surpreenda,
E a consciência faz curiosa questão
Sobre se é direito divino a venda
De carne e sangue. Janta com opressão
De alguém acho quiçá a mais sombria hora
Que está nas tristes vinte e quatro afora. (XXX).
Então Juan, forçado a vestir-se de mulher, adentra o harém e descobre que vai servir como escravo aos desejos sexuais da sultana. Isso soaria como uma dádiva ao Don Juan do mito de Molina a Mozart, ainda mais residindo no harém. No entanto, o Don Juan de Byron é ainda inocente, possui orgulho e crê que o amor é algo divino, por isso não consegue esquecer Haidée. Alguns heróis, incluindo-se poetas, podem não ter preço, ao contrário do que o narrador dissera pouco antes, mas pagarão com a própria vida por isso. Caberia aos Românticos pôr a vida à prova de modo sistemático, como outrora fizera, por exemplo, Giordano Bruno por suas crenças heréticas à época, mas vistas hoje como precursoras de uma perspectiva quântica (como em sua Arte da Magia, por exemplo). Nas últimas estrofes de Don Juan tais questões serão retomadas.
A respeito da recusa do personagem, o narrador reconhece que se o corpo está em uma prisão, “(...) nossa / alma ao menos é livre, e é em vão / fazer que contra ela a carne se entregue; / o espírito no fim seu curso segue” (CX).
Na sequência, conhece-se um pouco mais do harém, isto é, centenas e até milhares de odaliscas, escravas sexuais do sultão.
É importante ter em mente que em um épico satírico há duas formas básicas de se criticar: o modo direto, quando o narrador vitupera o objeto de fato; e o modo indireto, o qual, por meio da ironia, leva-se a diminuir, ou descrever como natural algo que se quer satirizar, isto é, busca-se dar a entender exatamente o oposto do que se diz.
No Canto VII passa-se a narrar o cerco de Ismail, durante o qual os russos bombardearão a fortaleza otomana, onde se mantinha o harém. O narrador então expõe os soldados mercenários que vendiam seus serviços para lutar contra outras nações, interessados na pilhagem e em vanglórias e promessas de heroísmo.
E após o “prestidigitador John Bull” pôr Londres na “imensa iluminação”, referindo-se à iluminação a gás que se desenvolvia à época para manter as empresas trabalhando também durante a noite, e deparar-se com a Fome “em magro e ósseo crescimento / fixa o olho em sua cara, e ele nem pondera, / só afirma que Ceres fome gera”, a típica retórica improdutiva dos governantes que não rompem por estratégia o ciclo de carestia, embora gastem fortunas com iluminação pública e coisas supérfluas (VII, XLV).
No Canto VIII, uma das estrofes mais interessantes ao estudo manifesta a visão de Byron a respeito do povo oprimido, esse que ainda não possuía ideologia de classe, como aponta Hobsbawm, e que só viria a tê-la uma década depois dos seguintes versos, contados por um curioso “passarinho” revolucionário, talvez avô de Proudhon.
Tanto faz. “Deus salve o rei” e os reis!
Porque senão, não creio que o homem fará.
Um passarinho me disse, eu achei,
Que o povo aos poucos mais forte será.
(...) e então só
Aí a turba enjoará de imitar Jó. (VIII, L).
Nas estrofes que iniciam o Canto IX, nas quais Byron vitupera o duque de Wellington, uma das críticas é à “fazenda sabina" de um milhão que o duque adquirira, mas principalmente que “grandes homens riem das grandes recompensas” (VIII). Isso apenas leva a melhor compreensão sobre a licantropia, situação em que “sem transformação / homem vira lobo sempre que há ocasião” (XX).
Após o sucesso como soldado mercenário na guerra e uma temporada na Rússia sendo o preferido da czarina Catarina, Juan é enviado para a Inglaterra por conta de um resfriado e, chegando em Londres, faz-se alusão ao mito de Don Juan original ao constatar ali a “sala de visitas do diabo” (X, LXXXI); Juan assusta-se com a quantidade de taxas a pagar e, repentinamente, é surpreendido por um assalto: “maldito seja! a vida ou o money seu” (XI, X).
Em seguida, retomando a imagem da iluminação, o narrador afirma revolucionariamente, aludindo aos enforcamentos em massa dos nobres durante a Revolução Francesa, que “os nobres pendurados em fileiras / nas ruas a humanidade iluminaria, / como das mansões do país fazer fogueiras” (XXVII). Com ironia acrescenta que se Diógenes não encontrasse em Londres seu “homem bom”, não seria por falta de lanterna. Na estrofe XXXVIII ironiza sua própria crítica à hipocrisia com “Mentiras, mentirosos, louvados sejam / todos! Quem minha Musa meiga ora taxa / de misantropa?”.
Outra prática que o autor via como mercenária no país onde nasceu, porém encontrável em diversos outros, é o casamento arranjado, tipo brando de prostituição, a qual aparece mencionada também no Canto X, nada mais que a venda do próprio corpo e da privacidade para um desconhecido por determinado tempo. O autor não critica diretamente essa prática, apenas a constata, porém obviamente o termo geral “prostituta” por vezes se acha como expressão ofensiva na obra. No fim do canto há um lamento pelos “santos mártires cinco por cento” e “cadê, oh cadê demos os rendimentos?” (XI, LXXVII). Conclui afirmando que “posso ficar só, no / mais, não troco minha livre ideia por trono” (XC).
O Canto XII inicia com uma ode à avareza, que pode passar por irônica, porém o próprio autor ciente, como visto, de sua condição contraditória, tornara-se vendedor de suas obras cada vez mais caras e economizava ao máximo seu capital enquanto escrevia esse Canto e os seguintes, acumulando verba a uma causa maior, a libertação da Grécia.
E dinheiro, a mais pura imaginação,
Reluz só á aurora de sua criação. (II).
Alguns dos versos mais eufônicos de toda a obra, alguns dos quais a rima em mosaico original estendem demasiadamente a métrica, encontram-se na estrofe em que Byron engrandece com alguma ironia os maiores banqueiros de seu tempo, tendo a consciência de que são eles quem definem até que ponto devem alcançar as liberdades, e estabelecem ou desmoronam monarquias a seu bel-prazer:
Quem segura a balança do mundo? pois,
Quem reina em congresso, monarquista ou liberal?
Quem anima patriotas descamisados espanhóis,
E faz jornais da velha Europa “chiar e palrar”? qual
Mantém o mundo, velho, novo, os dois,
Na dor ou prazer? E faz político falaz total?
A sombra de Bonaparte nobre e ousada?
Rothschild judeu e Baring cristão o camarada. (V)
Esses, e o verdadeiramente liberal Lafitte são
Verdadeiros senhores da Europa. Cada empréstimo
Não é mero golpe de especulação,
Mas firma nação ou trono apreste-o.
República envolveu seu quinhão:
Sabe-se quem os fundos da Colômbia investe-os
Na Bolsa, e o chão de prata teu,
Peru, é descontado por judeu. (VI).
O narrador chega ao ponto de afirmar que o avarento “é teu único poeta” (VIII).
E é na estrofe LIV do Canto XII que afirma que “agora iniciarei meu poema” e, referindo à quantidade de Cantos, que “com o apoio de Apolo, se / meu Pégaso não for tropeçando, / creio ir por mais cem num trote brando” (LV).
Encerrando o Canto, discorre-se, em uma espécie de balanço, o que foi prometido e o que foi narrado, e conclui-se com as expectativas de um próximo Canto, seu “melhor canto”, que devera tratar de economia rimada e metrificada, escancarando seu procedimento irônico a respeito dos temas de popularidade de seu tempo:
E se meu trovão nem sempre chocalha,
Lembre, leitor, que você teve atrás
A pior tempestade e a melhor batalha
Que elemento ou carnificina traz,
Além do mais sublime – o céu me valha.
Nem agiota esperaria mais,
Mas meu melhor canto, salvo um astronômico, há-
-de falar de política econômica. (LXXXVIII).
Não obstante, o narrador não possui muito de romantismo quando constata de modo pessimista que suas críticas e sátiras não alteram nada, e ele apenas está lutando contra moinhos de vento achando serem gigantes imaginários:
Meu amor ou ódio não é excessivo, e
Nem sempre foi assim. Se às vezes a rir-me
De escárnio, é que ficar sem não me é possível
E de vez em quando faz com que rime.
A emendar erros dos homens bem disponível
Estaria e antes reprimir que punir crimes,
Se Cervantes no conto verdadeiro onde passa
Quixote não mostrasse que esforços fracassam. (XIII, VIII).
As críticas ao poder, entretanto, proliferam-se, “E Juan, como verdadeiro andaluz, / monta cavalo igual déspotas os russos” (XXIII); enquanto compunha esses versos inconformistas, reitera-se, o autor estava preparando-se para desafiar o jugo turco por séculos vigente sobre os gregos.
Na metade do Canto XIII inicia-se a descrição da abadia Norman, onde Juan terá sua última aventura, e trata-se de uma lembrança à abadia de Newstead, herdade dos antepassados que Byron viu-se obrigado a vender para quitar seus enormes gastos oriundos de hábitos extravagantes, como dito. Em alguns momentos a descrição da abadia fraterna soa como uma ode à nobreza, contraposta à avareza, à burguesia, e também aos seus ideais libertários.
A contradição encontra-se presente também na vida de Menipo, filósofo cínico, cujas obras deram origem à sátira menipeia, gênero no qual se inclui Don Juan, e foi tratado em capítulo específico da tese supracitada. Menipo vangloriava-se de não precisar de bens em sua filosofia, porém quando perdeu suas posses, reza a lenda, suicidou-se.
Em seguida, o narrador passa a ironizar, claro, a nobreza inglesa, narrando seus banquetes faustuosos com a mesma minúcia com que o Homero descreve as naus atracando nas plagas troianas. Pouco após o narrador reconhece, de modo antirromântico, como na maioria das vezes o exterior importa mais que a essência, “mas boa aparência enfim dá mais / impressão que o melhor dos livros faz” (XV, LXXXIV).
O Canto XVI narra o caso do fantasma, o qual depois será descoberto a Fitz-Fulke disfarçada para seduzir Juan, em uma espécie de sedutora, a face feminina do mito de Don Juan. Nessa última aventura, Juan foi o convidado para jantar, e acabou sendo inesperadamente seduzido pelo disfarce do fantasma. Em determinado momento, o fantasma fica “parado feito pedra”, em alusão à versão original do mito.
O Canto XVII ficou inacabado. Das catorze estrofes que foram feitas, fala-se sobre orfandade, e também sobre como os sábios são tratados como tolos pela “escória”, embora ciente de seu firme renome na posteridade: “Pitágoras, Locke, Sócrates – volumes / se encheriam, tão à toa como outrora, / com os maus-tratos que dão aos grandes lumes, / sempre tidos por tolos pela escória.” (IX).
Longe do intuito de esgotar o assunto, explicita-se somente a quantidade de inúmeras outras relações a esse mesmo respeito no Don Juan de Byron. Mostrou-se aqui apenas um sucinto compêndio com alguns dos principais contornos. Há muita pesquisa ainda a ser feita nessa área, e a tradução disponível na citada tese busca facilitar o acesso à obra ao estudioso lusófono interessado no assunto.
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Ademais, além das possíveis pesquisas supracitadas, apontar-se-ão doravante de forma breve algumas outras análises carentes de estudo aprofundado acerca do tratamento do mito de Don Juan que Byron confere à sua obra.
Byron, como fizera Mozart anteriormente, subverte o mito ao apresentar o próprio “Don Juan” no título de sua obra, ao contrário do “burlador de Sevilha”, como era conhecido na versão original, o pecador acompanhado de seu “convidado de pedra”, na imagem materializada do peso na consciência renegado que o arrastará ao inferno.
Também por meio dessas circunstâncias, a imagem simplória de um sedutor vil que encontra sua punição no final da obra passa, ao longo dos séculos, a símbolo do individualismo moderno. E como Byron atestara em carta a Murray sobre o projeto de sua sátira épica, a estátua de pedra torna-se de fato só “uma alegoria para outro estado”.
Destarte, conforme se busca humanizar o mito, dando-lhe uma infância regrada, e pondo-lhe em peripécias independentes em geral de sua vontade, o autor opera com a famosa teoria do “bom selvagem” rousseauniana, de que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Tomando então o mito de Don Juan para corroborar sua tese, o autor constrói inúmeros argumentos a favor de seu ponto de vista.
Dentre outros fatores expostos ao longo da obra, destacam-se três, por se assemelharem com o que posteriormente viria a ser conhecido como o determinismo naturalista de Hippolyte Taine.
No início da obra, o narrador explicita que tanto o pai de Juan, Don José, tinha duas donzelas, ou seja, possuía a propensão ao adultério e ao jogo da sedução, quanto sua mãe, Donna Inez, tivera um caso com o marido de Júlia, Don Alfonso, caso conhecido por todos, incluindo Júlia. Está aí o que se poderia chamar atualmente algo como herança genética, embora nos tempos positivistas o termo fosse “influência de raça”.
Outro fator, o momento histórico, como foi visto, alargava espaço para o cultivo do individualismo e do acúmulo de conquistas, implicando no pleno desenvolvimento do capitalismo, do qual o mito de Don Juan pode ser visto como símbolo. No épico de Byron, a infância de Juan foi opressora por parte de sua mãe, seus estudos eram disciplinados e apenas sobre determinados assuntos, vetando-lhe ciência natural, porém os estudos dos clássicos com seus deuses causaram problemas. Com isso o autor insinua, de modo determinista, que um jovem com tal educação rigorosa em países católicos como a Espanha se tornará um sedutor maligno; porém essas conjecturas inferem os leitores, posto não se saber exatamente na obra incompleta de Byron o que se tornaria seu Don Juan quando envelhecesse mais uns anos.
O último fator, a influência do meio. Por diversos momentos em sua obra, Byron insinua como os países gélidos do norte possuem uma moral mais arraigada, enquanto o sol quente seja fundamental para os amantes mais calientes da península ibérica, Itália ou Grécia, por exemplo. “É tudo culpa desse sol canalha” (I, LXIII), “o nosso galanteio, aos céus pecado, / é bem mais comum num clima abafado” (idem). E no dia em que acontece o adultério de Juan com Júlia, era verão, a arremata – “o sol sempre é o motivo principal” (I, CII).
Outra interessante leitura possível seria da representação da situação da mulher ao longo dos séculos através do mito de Don Juan, ao qual se pode chamar de “criação literária coletiva”.
No mito original, desde o século XIII até o XVIII, na maioria das vezes as mulheres burladas pelo sedutor caíam em desgraça, isto é, perdiam seu status na sociedade, ninguém se casaria com elas e teriam de finar seus dias em um convento, expiando seus pecados, como Donna Júlia.
Na versão de Byron, Juan vai deparando-se com mulheres cada vez mais fortes, em situações privilegiadas, como a sultana, a czarina Catarina, depois lady Adelina, Aurora Raby e a duquesa Fitz-Fulke. Para essas mulheres “empoderadas”, não apenas não se aplica essas questões de perdição, como muitas vezes elas mesmas escolhem seus inúmeros preferidos, como Catarina, ou praticam adultério por diversão, como a duquesa. Perante tais mulheres, Juan não passa de um objeto cobiçado, elas tomam parte ativa no jogo da sedução, repete-se. Don Juan transforma-se na fantasia de sedução das mulheres, como Caroline Lamb vestida de Don Juan cercada por uma legião de diabinhos no baile de máscaras em Londres.
Portanto, de um modo intrínseco e simultâneo, a figura de Don Juan passa de vil sedutor a seduzido bonzinho, o amante perfeito para as mulheres, como se observa na versão do mito tratada no filme Don Juan de Marco, de 1994, com o protagonista interpretado por Johnny Depp, e Marlon Brando no papel de psiquiatra de Don Juan; e as mulheres vão se “empoderando”, isto é, conquistando direitos e igualdade, principalmente a partir dos últimos dois séculos. Por isso, crê-se que o Romantismo e a releitura de Byron são momentos-chave nessa guinada do mito.
Finalmente, um estudo ainda a ser feito é a respeito das inserções byronianas na versão original do mito. O episódio do naufrágio, embora não muito detalhado, já existia, o de Haidée e do harém praticamente não. Os acréscimos históricos do cerco de Ismail, depois da temporada russa com a czarina e os périplos em companhia da nobreza da Inglaterra, que ocorriam no período imediatamente anterior à Revolução Francesa, foram inseridos pelo poeta, bem como as cenas de canibalismo, escravidão sexual, o massacre de guerra e a missão diplomática “secreta”.
Expressões como “iniciar do início” também ocorriam em versões anteriores a de Byron. No entanto, como visto anteriormente, vários acréscimos e alterações foram feitas, também a nível frasal.
Assim, se perguntam ao Don Juan de Molière, como Leporello, em que acredita, ele responde “acredito que dois e dois são quatro e que quatro e quatro são oito”.
Byron ironiza bastante a aritmética em seu Don Juan, o que inclui alguma farpa à sua ex-esposa. Então, aproveitando o mote do mito, estende também sua sátira à economia capitalista, como nos versos a seguir, encerrando este estudo:
Poetas da aritmética são os
Que, sem provar que a soma de dois dois fez
Cinco, e poderiam, na humildade, pois,
Abertamente expõem que quatro é três,
Se o que ganham e pagam se supôs.
O Fundo afunda em mar sem fundo, liquidez
Da mais iliquidável, que bem bebe
Sua dívida sugando o que recebe. (XVI, XCIX).
Isto é, a conta não fecha para os pobres poetas, a beleza – também da poesia – não põe mesa, na expressão do vulgo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS::
AGUSTINI, Lucas de Lacerda Zaparolli de. Don Juan de Lord Byron – Tradução Integral, Comentários e Notas. 2020. 1323 p. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.
BARBOZA, Onédia Célia de Carvalho. Byron no Brasil: Traduções. São Paulo, Ática, 1975.
BERMAN, Antoine. A Tradução e a Letra ou O Albergue do Longínquo. Trad. Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan, Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2016.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Trad. Órizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imagon, 2005.
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
MACCARTHY, Fiona. Byron – Life and Legend. London: Faber and Faber, 2003.
PRAZ, Mario. A Carne, a Morte e o Diabo na Literatura Romântica. Trad. Philadelpho Menezes. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
RIBEIRO, Renato Janine (org.). A Sedução e suas máscaras – ensaios sobre Don Juan. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental. Trad. Brenno Silveira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
Lucas Zaparolli de Agustini é doutor em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo (USP). Esse artigo é parte integrante da tese Don Juan de Lord Byron – Tradução Integral, Comentários e Notas. Traduções do autor: Don Juan, de Byron (inédito); Obras Completas de Delmira Agustini (2014);A Burocracia Mandarina, de Pablo Baler, trad. com Adriana Zapparoli (2017); Gravuras Japonesas, de John Gould Fletcher, trad. com Anderson Lucarezi (2017); A arara (adaptação de The Raven, de E. Allan Poe) (lumme, 2019).
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