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Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

A MORTA por Daniel Medeiros Valle



Mari dizia com orgulho ser uma pessoa cosmopolita. Não por ter viajado o mundo, mas porque era paulistana. Vivia numa quitinete, que chamava de loft. Amava café, Depeche Mode, a Martins Fontes da Paulista e beber gim no baixo Augusta. Falava do seu sangue francês na primeira oportunidade e gostava de filmes sem final. Ia a todas as exposições. Tinha mais seguidores no Instagram do que pessoas que ela seguia. Mari era bonita, se vestia bem, com roupas que imitavam roupas velhas, óculos de aros grandes, seu cabelo tinha um corte moderno. Ela também tinha visto uma mulher morrer recentemente na rua. E, aos mais próximos, confessava que não pensava ter muito carisma, que estava cansada do mundo, e do fim do mundo, que lhe parecia uma constante. Como se ele estivesse implodindo, ela dizia, mas a implosão nunca acabava. Os engenheiros, vendo a implosão à distância, nunca têm seu momento de celebração, ela continua para sempre.

Para ela mesma, Mari se dizia cansada. Estava cansada de tentar entender as pessoas. Mais cansada ainda de tentar entender a si própria. Não confessava nem aos mais próximos, mas não era satisfeita com a sua vida. Pensava que poderia ter crescido para se tornar outra coisa, que não fora uma criança feliz, que se encaixou bem na adolescência, mas não sabia por quê. Ela não falava que estava passando por mudanças. Lamentava não entender mais de política, mas ter que se posicionar. O que não era difícil, ela pensava. Mas Mari queria entender melhor porque algumas pessoas pensavam diferente. Queria tocar um instrumento – por que é tão difícil?, pensava. Além disso, seu emprego já não lhe satisfazia mais, e ela não se orgulhava mais dele, como no início. Foi a primeira faísca, o emprego. Foi quando se percebeu cansada, olhou-se para si mesma e percebeu: eu não sou mais definida por ele.


- Você já viu alguém morrer? – perguntou.


Vic nunca vira. Respondeu:


- Deve ser uma coisa difícil de ver.


Vic tinha uma relação próxima com a morte, mas nunca havia presenciado uma. Ela não via a morte dos outros com choque. Ela se lamentava pela vida, pelos planos, pelo futuro que os mortos nunca teriam. E pelo passado que desperdiçaram. Lamentava-se por eles. Mas acreditava que provavelmente pensava assim por que se lamentava por si mesma, pela própria vida. Vic não sabia o que fazer de diferente. E também tinha ideias que preferia não compartilhar. Ainda não.


- Você sabe quem ela era? – perguntou Vic – A moça que morreu.


- Quem ela era? – respondeu Mari, confusa com a questão. Legitimamente confusa.


- Sim. Nome, o que fazia... Era casada?


Mari pensou. Por um momento, focou na música tranquila que tocava no quarto de Vic – ela não sabia definir o estilo: se era jazz ou eletrônica, ou quê? Vic gostava de ouvir umas rádios no Youtube com umas imagens que pareciam de algum Anime no lugar do vídeo. Às vezes, tinham sons de chuva no fundo. Ouviu um trovão na distância e não soube se era parte da música ou se chovia em algum lugar remoto da grande São Paulo. Voltou a pensar na pergunta de Vic.

- Não, não sei nada – disse, – não quis saber.


Vic não falou mais, estava deitava olhando o teto, enquanto ouvia a música calma. Mari, depois de alguns segundos, falou:


- Eu não gosto do meu nome.


Ela estava sentada no chão ao lado da cama de Vic. Vic virou a cabeça agora para olhar para Mari. Não disse nada, só quis demonstrar o interesse com que, de fato, ficou. Mari seguia pensativa.


- Você perguntou quem ela era – prosseguiu. – E perguntou o nome dela.


- Sim... – respondeu Vic, tentando decifrar Mari.


- E o que ela fazia, se era casada.


- É o que eu quis dizer – disse Vic, pensando que começava a entender. – Tipo, o que essa mulher fazia da vida, como ela vivia, sei lá.


- Mas isso não é quem ela é – falou Mari, sem entonação na voz nem expressão no rosto. – Eu não sou meu trabalho, nem meu nome nem nada.


Vic não respondeu de imediato. Depois disse:


- Ela não era tão velha, eu fico imaginando que planos ela tinha.


O rosto de Mari se acendeu um pouco:


- A idade dela também não tem nada a ver com quem ela é. Vic, quem ela era? – perguntou, mas não só para Vic.


- Eu não conhecia ela, Mari – falou Vic, um pouco desorientada.


- Você não precisava conhecer!


Vic, que permanecera deitada de barriga para cima e com a cabeça voltada para Mari, tornou enfim a olhar para o teto. Suspirou:


- Não tô entendendo nada, Mariana – disse. – Do que você tá falando? – e virou de novo os olhos para Mari.


Mari não sabia o que dizer. Só queria dizer que não sabia quem era, mas não falava disso com ninguém. Queria e não queria. Queria dizer que não pensava que a mulher morta sabia quem era também, que provavelmente era ocupada demais para pensar sobre isso e que apenas se definia pelo nome, seu trabalho, seus gostos, vícios, amores e desafetos, pela cor da sua pele, pela genitália com que nasceu. Queria dizer para Vic que a mulher era infeliz, mesmo fazendo de tudo para evitar a infelicidade, procurando distrações a cada passo do caminho, até morrer subitamente, e triste. Frustrada e insatisfeita. E sem saber o que poderia ter feito diferente – sem talvez nem ter pensado nisso. Queria confessar o que vira: que a mulher morrera com lágrimas nos olhos, depois de uma vida vazia de sentido e plena de derrotas. Como todas. Queria dizer que o sentido da vida era mais uma arapuca capitalista, puro marketing. Para vender – sonhos, talvez. Talvez os planos de que Vic falava. E que morremos tristes.


- Morri triste – lhe escapou.


Vic lhe observava o tempo todo: o nem tão curto momento que Mari passou refletindo. Manteve-se impassível ao ouvir a confissão.


- Eu não morri – corrigiu-se Mari.


- Eu sei – Vic respondeu, sorrindo carinhosamente. – E não vá ter ideias!


Mari sorriu também. Triste, mas viva. Viva, pensou. Um pouco abalada, pensou alto:


- Eu tô viva?


- Você tá viva, Mari – Vic falou. – Você tá ouvindo a música? Você tá ouvindo os trovões? Você tá me vendo aqui?


Mari não conseguia mais parar de pensar em diferentes versões para todas aquelas questões. Disse:


- Não sei. Quem é você, Vic? Eu ouço e vejo tudo, sim. Mas não sei o que é nada.

Fez uma pausa. Em seguida:


- Eu tô enlouquecendo? – perguntou, desta vez para Vic, realmente, olhando-a dentro dos olhos.


- Provavelmente – respondeu Vic, em gracejo. Mas continuou. – Não, você não tá. Eu acho que tô entendendo.


Vic voltou os olhos mais uma vez para o teto branco.


- Olha – disse, indicando o teto com a cabeça. Mari olhou para cima.


- O quê?


- Você me perguntou quem eu sou – Vic falou. – Mas você sabe a resposta.


Mari continuou olhando para o teto branco. Pensou que o teto ainda era teto.


- Eu não sou o teto – Vic respondeu, sem ser perguntada. – O teto também não é. E a mulher que você viu morrer não era uma mulher.


Mari ouvia atenta. Vic prosseguiu:


- Sem ser mulher, sem o trabalho, o marido, a cerveja e a doença, o que ela era? – olhou para Mari, que também baixou os olhos para encarar Vic. – Ela não era nem “ela” – fez as aspas com os dedos no ar. – Eu também acho que ela morreu triste, porque sabia, no fundo, que não era isso. Não pôde nunca se satisfazer, com esse conhecimento básico, nunca pôde ser feliz assim. Nenhuma fuga jamais foi suficiente, e ela morreu planejando as próximas.


- O que nós somos? – Mari perguntou.


- Não sei – disse Vic. – Acho que somos idiotas que fazem perguntas desse tipo. Bichinhos burros, é isso.


- Então a vida não significa nada mesmo?


- Foi você que me perguntou se tava viva, Mari. O que você acha?


Sem hesitação, Mari respondeu:


- Acho que não faz sentido essa pergunta.


Vic concordou:


- Não, também acho que não faz.


As duas fizeram silêncio. A música ainda tocava calma e agora já chovia onde estavam, no loft de Vic em Perdizes.




Daniel Medeiros Valle nasceu em Juiz de Fora (MG), é autor do romance Mosca Volante (Penalux, 2013). Com passagens por diversos blogs ao longo dos anos, escreveu sobre cinema, futebol, filosofia, literatura entre outras coisas. É mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora, onde se dedicou aos estudos de gênero e sexualidade.

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