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7 poemas de Fernando Karl



RÉQUIEM AOS MORTOS

PELO CORONAVÍRUS


O homem que acaba de morrer,

deixou o copo d'água

sobre a toalha de linho,

não acabou de comer o caqui,

não recolheu a roupa no varal,

não teve tempo de se despedir

da mulher que ama.

Foi diagnosticado com coronavírus:

nem por isso as ondas do mar

estancaram seu fluxo,

nem por isso as noites

ficaram menos negras,

nem por isso amanhã a brisa

deixará de soprar as cortinas.

Agora,

encolhido na cicatriz de seu túmulo,

ele nunca mais dirá uma palavra.

O homem está morto,

menos sua foto

na praia de Sabalquivir,

menos a mancha que deixou,

quando limpou a boca no guardanapo.




A POESIA


como que se abandona

à densidade que a palavra traz em si:

cascalho

séptuor

cacimba

refrigério

jarra:

o poeta não pensa

ele diz o real

mesmo quando o real

se recusa a ser simbolizado:

a palavra dá consistência ao pensamento:

sem a palavra o pensamento esboroa:

a pele das palavras guarda

une absence: uma ausência

mais musical que a música:

ventarola

fúcsia

canoa

quibungo

garganta:

o poeta não esta no invisível

ele é a pulsação do invisível:

as finas camadas das coisas transbordam no poema:

o poeta não está no vazio

ele é a pulsação do vazio:

o poeta é aquele que restitui

o rito do olhar assombrado

do primeiro homem

quando

abriu

suas asas

tornou o mundo mais leve




se tudo o que nos circunda

nessa praia do Calixto

se torna imagem em nossa cabeça:

céu

areia branca

canoa

albatroz:

qual a diferença

entre o sonho e a vigília?

talvez não haja diferença.

o que acontece é que

durante o sono

sonhamos dormindo:

céu

areia branca

canoa

albatroz:

já durante a vigília

sonhamos acordados:

céu

areia branca

canoa

albatroz.




LIMESTONE LANDSCAPE:

PAISAGEM DE CALCÁRIO

(Réquiem para meu pai:

Franz Joseph Karl: 1933-2005)


Neste sábado,

os transatlânticos entoam,

entre as hélices de ferro,

a cavatina escura e as víboras,

agarradas à cica oceânica,

se arrastam in the limestone landscape

(na paisagem de calcário).

Nesta hora,

quando a noite é mais escura,

a chuva lava as venezianas,

depois a noite torna-se clara,

os dedos negros de Thelonius Monk tecem

o cheiro molhado de um blues

nas teclas do piano.

Mas tudo é inútil,

porque agora

os teus pulmões se calaram,

e os teus tímpanos

estão como conchas vazias,

que não recebem mais os augúrios

da brisa que bate as asas

entre as laranjeiras em flor.




desconfio que

depois que eu morrer

serei apenas uma

voz sem som

voz do silêncio

voz do (sol)êncio

esta mesma que eu escuto

não com os tímpanos

mas com minha presença

que

neste milésimo de segundo

é

incorpórea

vazia

invisível




IMPROPTUS


A língua é um sistema

em contínuo desequilíbrio.

Se levada ao extremo,

alucina o adágio fugace,

encontra o estame do som.


Enxugar o gelo com a língua:

inútil.

Enxugar as águas da praia do Cocal

com a língua:

inútil.


Como explicar a língua de frauta ruda,

a língua de agreste avena,

a língua de Ur

a uma tartaruga morta?

a um ventilador quebrado?

a um sovaco na carniça da cárie?


Cala-te, ó língua putrefata.

Cala-te, ó pó da língua.


Mas se eu trouxer a caldeirada de enguia para a única terrina na mesa,

então queime,

ó língua,

queime beatos e quiabos:

queime, ó língua,

queime hóstias e crucifixos,

depois escute, com a língua do tímpano:

o “Tchibum”, de David Hockney;

o “Whaam”, de Lichtenstein;

os “Linguarudos”, de Schawnke.

Com a cabeça envolta em mel,

com a cabeça envolta em tempestade,

o linguarudo atiça a torre de Babel,

o linguarudo baba

a planta venenosa no pulmão do óbvio,

e, com a espinha do peixe Capelo (Synaptura lusitanica),

engasga os que não escutam

a chuva na vidraça,

os que abominam Georg Trakl,

os que apedrejam as finas linhas de Klee,

os que consideram

os mantras de Aruanda um delito.


O linguarudo Schwanke,

linguarudo Pop,

eleva a ícones

os mais crassos objetos de consumo: hambúrguer,

louça sanitária, cortador de grama, estojo de batom,

pacote de espaguete, grampo de roupa;

ajoelha, o doce bárbaro linguarudo,

ante o altar

de uma lata de sopa Campbell,

chuta o balde se a língua

insiste em praticar

uma caspa

na sobrancelha da barata leprosa,

mas,

se a língua for um nó de fogo coroado,

aí Schwanke cava uma língua estrangeira na própria língua,

deforma a sintaxe e vocifera:

no Anno de 1870,

30 milhões de hindus morreram de fome

em nome do darwinismo social

ou da higiene da raça:

e adivinhe quem deu a ordem

para que não se fornecesse

alimento à legião desossada?

A Rainha Vitória,

da Inglaterra.




Morrer é a única coisa que darei à morte,


mas não confessarei a ela onde escondi o menino:


aquele que sonha mistura-se ao ar.

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