A CARNADURA DO MAL
Disseca-se
o corpo vivo
em praça pública.
O que se vê:
matéria fétida,
antes oculta.
Uns observam,
paralisados,
como num transe.
Outros escarram
seu gozo-bílis
verdeamarelo.
O que fazer
com a carne pútrida
que se fez verbo?
LABIRINTO DE SOFISMAS
Sangue mineral coagulado
na ferida aberta pela palavra:
esta angústia que lateja o corpo
e faz de mim um animal revolto,
a colher nos livros flores de defuntos.
[Um poema de Nicanor Parra,
como um pássaro de asa quebrada,
entra, em voo penso, pela janela,
e me perfura os olhos semimortos,
mostrando-me o que de fato importa.]
De que outra forma pode resistir
um homem, com sua metafísica,
ao esfacelar de um céu de granito?
[Os destroços a soterrar-lhe o ser,
num teatro de dores e abandonos.]
O que fazer, ao se saber inerme
ante os escombros de um arcabouço
erguido sobre areia movediça,
se o que de fato importa, permanece,
é a certeza de que nada é certo?
Salva-se o poema ou nada se salva!
Há sinais confusos, por toda parte,
que apontam para o caos e o declínio.
E manter o mínimo de sensatez
é equilibrar-se no lodo das pedras.
[O poema alado, janela adentro,
revira todo o interior da sala.
Seu bico fino me transpassa o peito.
Agora sangro palavras vivas,
neste labirinto de sofismas.]
UM POEMA-MONTAGEM:
LOMBADAS E OUTRASV VERDADES
A oração do carrasco,
Nessa boca que te beija
:
O peso do pássaro morto.
Na casamata de si,
Tudo que morde pede socorro.
A voz do ventríloquo:
Cantigas para ninar dragões,
Palavras para estrangular silêncios.
Abaixo as verdades sagradas!
Amálgama
Do abandono:
Nenhum espelho reflete seu rosto.
Contradança:
Incompleto movimento.
Fissuras,
Vícios de imanência
[Caixa de guardar vontades].
[Manual não injuntivo de como criar um monstro.]
Última hora:
O tempo em estado sólido,
Às vésperas do incêndio.
Mecânica aplicada –
O mundo fora dos eixos
[Três vírgula quatro na escala Richter]:
As ilusões da modernidade,
A arte da ficção,
Guerras híbridas,
Xadrez.
Terra sonâmbula:
Babelical
Inaudito.
[Um carro capota na lua.]
As armas secretas:
Lâmina,
Cata-vento imóvel,
Poemas canhotos,
Um copo de cólera
[O metal de que somos feitos].
Atlas do impossível
[Exercício do olhar.
Intervalos do delírio]:
A passagem invisível –
Enclave.
Aurora de cedro.
Horas partidas:
A liturgia do tempo e outros silêncios.
Tudo que não cabe no poema
[Grande depósito de bugigangas].
Sapiens,
Somos pedras que se consomem.
(Poema-montagem a partir dos títulos de livros dos seguintes autores, na ordem [cada título é um verso]: Itamar Vieira Junior, Leonardo Almeida Filho, Guilherme Delgado, Aline Bei, Pedro Tostes, Cinthia Kriemler, Ademir Assunção, Rogério Bernardes, Edelson Nagues, Harold Bloom, Rubem Fonseca, Tatiana Alves, Rosângela Vieira Rocha, José Vecchi de Carvalho, Alberto Bresciani, Henriette Effenberger, Paulo Ferraz, Emir Rossoni, José Ronaldo Siqueira, José Almeida Júnior, Tércia Montenegro, Edmar Monteiro Filho, Nuno Rau, Bernardo Carvalho, Éder Rodrigues, João Alexandre Barbosa, David Lodge, Andrew Korybko, Luiz Eduardo de Carvalho, Mia Couto, Leonardo Almeida Filho, Flávio Castro, Tadeu Sarmento, Julio Cortázar, Marcia Friggi, Vitor Eduardo Simon, Herberto Helder, Raduan Nassar, Walther Moreira Santos, Edmar Monteiro Filho, Tanussi Cardoso, Teofilo Tostes Daniel, Chico Lopes, Marcelo Labes, Tito Leite, Henriette Effenberguer [org.], Wanda Monteiro, Wélcio Toledo, Divanize Carbonieri, Yuval Noah Harari, Raimundo Carrero.)
TRÊS CHERITAS*
NA MATA
O curumim, com sua arapuca,
embrenha-se na mata espessa
atrás de passarinho.
A onça vê o pequeno vulto.
Na entrada da oca,
a mãe espera, espera.
ANTÍDOTO
O encantador de serpentes.
A naja parece nervosa,
mais do que nos outros dias.
O médico diz ao amigo
que o soro antiofídico
está em falta faz tempo.
PAIXÃO DE ADOLESCENTE
O garoto beija a amada.
O gosto de pitanga madura
explode em sua boca.
Quando abre os olhos,
o sol lhe fere as retinas.
Começo de um novo dia.
*Cherita é uma palavra malaia para “história” ou “conto”. O poema, constituído de seis versos – distribuídos em estrofes de um, dois e três versos –, é uma forma derivada do haicai e deve contar uma pequena história.
Edelson Nagues é mato-grossense radicado em Brasília. Tem textos publicados em diversas antologias e revistas literárias, como Mallarmargens, Musa Rara, Germina, Zunái, Ruído Manifesto e Escrita Droide, entre outras. Publicou os livros Humanos (contos), Águas de clausura (poesia), pela Editora Scortecci, e Palavras para estrangular silêncios (poesia), pela Editora Patuá. Organizou a antologia de contos Respeitável público: histórias de circo e outras tragédias (Ed. Penalux).
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