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Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

5 poemas de Marta Georgea

Atualizado: 17 de ago. de 2022




CONSUMO


sumimos perante a coisa

grande descomunal coisa

bruta baita coisa


num instante a coisa

num século ela nos tomou a coisa

nos fez mancar a coisa


o mar está afogado pela coisa

do carvão e do petróleo a coisa

a cozinhar o tempo a coisa


no jogo de azar da coisa

à luz da coisa

nossos semblantes agora de coisa


a nos ensinar a coisa

ver no espelho a coisa

o nonsense da coisa


inspirados pela coisa

a perseguir a coisa

dar a ninguém a coisa


fazer poesia em homenagem à coisa

seviciar-se pela coisa

ao rigor instintivo da coisa


mirar a coisa

penetrar a coisa

festejá-la & personificar a coisa


medir a si pela coisa

supor a coisa

libertar de nós a coisa


tomar o sumo da coisa

respirá-la & incorporar a coisa

apontar a coisa


desenhar a coisa

suicidar a coisa

dizê-la a coisa


zelar pela coisa

selar a coisa

zerar pela coisa

zé coisa


é, coisa

vencedora coisa

coesa coisa


coisa natural

adivinhá-la a coisa

só ficará em seu rastro coisa sobre coisa




GENUÍNO INTERESSE PELO INTERLOCUTOR


ele se despe envergonhado

bem devagar

está um pouco grogue

enquanto recita um poema

de Neruda sobre uma cebola

eu choro

nunca o abandono nos havia cercado

por todos os lados como naquela noite

a primeira


ele disse “garota, eles querem que você se odeie”


trocamos vocábulo por vocábulo

bem devagar

destituímos o vernáculo

de diversos estigmas

encadeamos aproximadamente

cem significantes caros a cada um

boquiaberta e sonâmbula

reconheci o corpo vivo da criatura tímida e nada arredia

a furar o meu plano de morar

num mosteiro na velhice


no olhar dele pousam aves raras

migram para a minha retina

o diamante-de-gould trina o colorido

destas horas brancas noivas

que passamos juntos


seu olhar segue adiante

para o dia futuro

na esgrima de bico

de uma harpia harpyja

comigo, coruja-das-torres

e dou as mãos a sua voz

e arrisco algum lirismo

ao fixar a minha atenção em ti


nidificas neologismos como fernar

palavras para se divertir

com efeitos lúcidos em face

do horror de conhecer

ao arrepio de tudo que é vago, hiato


são-no os que não aderem tolos

pois sois verdade tátil de minha crença

e adivinhas pois conheces


minúcias de sua história de vida

e todo o seu entendimento

são como palavras novas, virgens


deserto e refloresço perto do vulcão Eyjafjallajökull,

caminhas à beira dele

ao amanhecer de hoje e saberes algumas vírgulas

a mais a meu respeito

estridências de mim ecoam rumo

aos teus ouvidos forasteiros

por ti atravessam a cavalo esbelto inúmeros referentes,

és corrosivo e decantas o verbo, sujas e filtras

e ao teu sinal uma era se ergue


lado a lado em prosa caminhamos

conquanto haja finitude

assim a paisagem nos cercará o nexo

passaremos a cantos indeterminados

estupefatos ainda com o nascimento,

pasmos, atônitos, aturdidos,

num tempo futuro a dedução do presente

volátil impressão de saber

do homem de palavra até que

o magma nos recubra



A POESIA É UMA PERGUNTA


ponha na mesa a sua questão, rapsodo

o bardo jogará os dados

o firmamento de séculos de civilização curva-se

ante teu álibi

tua dor comparada

tua dor toda esquecida

dou um passo em tua direção

aproximo os galhos de macieiras

da tua fome, Tântalo


adoras a dor,

ponte da travessia em direção

a um novo estado de espírito


teu padecimento revela tua mundividência

o mal que te aflige inibe tua Voz

a palavra que escolhes no dicionário acolhe teu desejo

estás investido

tens uma carranca

teu navio está fabricado


a magra mão da metáfora

alcança a acepção de tua anedonia

és insosso e um fosso


dois condenados à morte

por hybris dormem dentro de ti


a maneira como o nome cavalga a tua dor

fará com que faças a pergunta lógica ao oráculo

o enunciado é símile ao teu estado de ânimo ábdito


o jogo da linguagem está perdido

para quem não arrisca




A IGNIÇÃO E A IGNESCÊNCIA


“puseram-se a olhar o animal que se deitara na palha, suspirando,

com os beiços sujos do próprio sangue”

José Saramago



I


ENCONTRO E PARTIDA


aquele centauro dos mais antigos

quando das duas partes

a que é máquina

a combustíveis ádvenas, adivinhas


lateja viril

arfa no asfalto o pressentimento

o ressentimento por não saber

drenar as cores o outdoor a notícia


quantas gerações perdidas multiplicaram-se até que

eu me perdesse

daquela que nunca fui

solapada pela hereditariedade

antes do inebriante ressonar


o tempo é uma espécie rara de flor

cujo odor degluto-morro


se mesmo assim somente tu me interpretavas,

o que direi aos poetas

tão absortos em seus tamanhos

que não lhes pareça desaforo?


como a palpitação está para o palpite

eu para ele duplamente

herdada:


- "OBJETO QUASE" DO DESEJO -

* * *


ao passo que de seu colo

soltei os braços: o mundo


entre pendores dores escrituras

estive à deriva em queda livre

até perceber outros rostos

catálogo de feições e afeições

olhos olhados driblados permutados

um deles adaga o outro a draga

para cerrar os cílios

e a corrente de ar de ardil

para retirar detritos do semblante


desenhei no meu rosto os seus olhos

sim os teus


há de ser dita a coragem de mirar

bispar divisar lobrigar desfrutar


fiz do teu olhar gigante questão metafísica, ao debulhar dediquei


quando velo o teu sono na memória

tu acordas o Sol e o Aleph

e o tempo do verbo altera-se, educa, conspectivo,

até aonde a vista alcança

o que o senhor das moscas promete




ASSIM É O AMOR: CEMITÉRIO, MAR & FLORESTA & MAR

o amo do amor forja o elmo do amor

para proteger-se do pensar e do pesar da entrega


ontem forjamos um novo cristal

para burilar uma abertura

na torre de guarda


avistamos uma estátua

com a mão estendida sobre um túmulo

implorava perdão

pedinte fúnebre do amor perdido

solitária no jardim

entre salgueiros tristes


o epitáfio dizia: não soube falar

da passionalidade do crime de amar


não sei pensar o amor para além do ágape

o que desperta o meu interesse

é o estado de amar

para estimular a fé extensiva

para aprazer o sentido de aprender, tocar com as mãos

o conhecimento, a cultura

e assim tocar-te o rosto


na posição de Galateia incorporo

o gesto engessado,

o adeus da finalização da obra

com suas minudências encerradas


assombrosa a noite no mar que dele amanhecem na praia

águas-vivas de diversas espécies

e um bernardo-eremita

para ser devorado


coberto por algas um cemitério marinho dança com a água

do amor, e da água rasa recifes erguem-se como se

os amantes não houvessem nascido


eu te amo como se

todos os bichos marinhos

tivessem amanhecido

nas praias do mundo nesta manhã


como se dominasses o lirismo do mar

e de seus mil nomes geográficos


procure algum ponto em mim no mar

tâmara, tartaruga-sete-quilhas,

a minha casa na praia

talvez o meu sorriso

para ouvir um som, uma palavra sorrida, o marulhar


sou uma caixa, um objeto sem uso

uma escrivaninha onde deitas poemas

sou aspiração, maçã, o rosa,

o botão de tua camisa

com quem conversas


a disparada de uma égua,

a rodada de uma saia, um giro sufi,

um aviso,

um susto e o jorro

de tua mais límpida água,

o peixe mandarim, uma tunicata


o ano está passando convulso

soluçado, chovido, astuto

sinto em meus pés o frio

da terra molhada

repisada,

sinto as uvas

do cortejo de Dionísio


ele vagou ontem, no domingo,

por essa vereda

um caminho de pinot noir

pelo chão

ainda sinto o calor da festa,

o cheiro da insânia,

as pegadas das bacantes e dos sátiros

que não foram apagadas

sob as ameixeiras

pela chuva de hoje


fui mais adentro da floresta

o que poderia encontrar além

de um pequeno índio:

William Blake

agachado chorando à beira de um lago

até então somente avistado por ele

o lago da água preta

ele vira Eco ao lado de Cloto

porque pudera ver


entrar no ádito da tua mente pela mata

a recobrir o templo de tua mãe, Eros

(com suas flechas de ouro e de chumbo)

e avistar o que desejo:

as personagens, a paisagem,

o íntimo imaginário mítico nomeado

pelo que somente

posso eu ver em ti


adentrar ad infinitum num itinerário

perigoso, noturno, desafiador

ter paciência e coragem e resiliência

para não desistir da tua estrada


não sei dizer o amor

a não ser que seja ao mar

nele mergulho à procura de corais

suas formas e cores

pelo sentido da poesia


no leito do oceano estás lá, vivo

e emerges luminoso ao me encontrar

com um poema escrito nas guelras


idolatro a tua ascensão como que

aos céus, um Jesus em reconciliação com Deus


és puro, areia, estrela-do-mar e brisingida

escreves, prolixo, com jatos fugazes

tu és o tubarão-baleia


eu sou a água que atravessa

pelas tuas brânquias,

tubarão perfeito,

eu tua nereida


és o insumo de meu versar

quando neste instante imagino ter intuído

um poema de amor



Marta Georgea (PA) reside em Belém. Tem formação em artes, antropologia e psicanálise.

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