CONSUMO
sumimos perante a coisa
grande descomunal coisa
bruta baita coisa
num instante a coisa
num século ela nos tomou a coisa
nos fez mancar a coisa
o mar está afogado pela coisa
do carvão e do petróleo a coisa
a cozinhar o tempo a coisa
no jogo de azar da coisa
à luz da coisa
nossos semblantes agora de coisa
a nos ensinar a coisa
ver no espelho a coisa
o nonsense da coisa
inspirados pela coisa
a perseguir a coisa
dar a ninguém a coisa
fazer poesia em homenagem à coisa
seviciar-se pela coisa
ao rigor instintivo da coisa
mirar a coisa
penetrar a coisa
festejá-la & personificar a coisa
medir a si pela coisa
supor a coisa
libertar de nós a coisa
tomar o sumo da coisa
respirá-la & incorporar a coisa
apontar a coisa
desenhar a coisa
suicidar a coisa
dizê-la a coisa
zelar pela coisa
selar a coisa
zerar pela coisa
zé coisa
é, coisa
vencedora coisa
coesa coisa
coisa natural
adivinhá-la a coisa
só ficará em seu rastro coisa sobre coisa
GENUÍNO INTERESSE PELO INTERLOCUTOR
ele se despe envergonhado
bem devagar
está um pouco grogue
enquanto recita um poema
de Neruda sobre uma cebola
eu choro
nunca o abandono nos havia cercado
por todos os lados como naquela noite
a primeira
ele disse “garota, eles querem que você se odeie”
trocamos vocábulo por vocábulo
bem devagar
destituímos o vernáculo
de diversos estigmas
encadeamos aproximadamente
cem significantes caros a cada um
boquiaberta e sonâmbula
reconheci o corpo vivo da criatura tímida e nada arredia
a furar o meu plano de morar
num mosteiro na velhice
no olhar dele pousam aves raras
migram para a minha retina
o diamante-de-gould trina o colorido
destas horas brancas noivas
que passamos juntos
seu olhar segue adiante
para o dia futuro
na esgrima de bico
de uma harpia harpyja
comigo, coruja-das-torres
e dou as mãos a sua voz
e arrisco algum lirismo
ao fixar a minha atenção em ti
nidificas neologismos como fernar
palavras para se divertir
com efeitos lúcidos em face
do horror de conhecer
ao arrepio de tudo que é vago, hiato
são-no os que não aderem tolos
pois sois verdade tátil de minha crença
e adivinhas pois conheces
minúcias de sua história de vida
e todo o seu entendimento
são como palavras novas, virgens
deserto e refloresço perto do vulcão Eyjafjallajökull,
caminhas à beira dele
ao amanhecer de hoje e saberes algumas vírgulas
a mais a meu respeito
estridências de mim ecoam rumo
aos teus ouvidos forasteiros
por ti atravessam a cavalo esbelto inúmeros referentes,
és corrosivo e decantas o verbo, sujas e filtras
e ao teu sinal uma era se ergue
lado a lado em prosa caminhamos
conquanto haja finitude
assim a paisagem nos cercará o nexo
passaremos a cantos indeterminados
estupefatos ainda com o nascimento,
pasmos, atônitos, aturdidos,
num tempo futuro a dedução do presente
volátil impressão de saber
do homem de palavra até que
o magma nos recubra
A POESIA É UMA PERGUNTA
ponha na mesa a sua questão, rapsodo
o bardo jogará os dados
o firmamento de séculos de civilização curva-se
ante teu álibi
tua dor comparada
tua dor toda esquecida
dou um passo em tua direção
aproximo os galhos de macieiras
da tua fome, Tântalo
adoras a dor,
ponte da travessia em direção
a um novo estado de espírito
teu padecimento revela tua mundividência
o mal que te aflige inibe tua Voz
a palavra que escolhes no dicionário acolhe teu desejo
estás investido
tens uma carranca
teu navio está fabricado
a magra mão da metáfora
alcança a acepção de tua anedonia
és insosso e um fosso
dois condenados à morte
por hybris dormem dentro de ti
a maneira como o nome cavalga a tua dor
fará com que faças a pergunta lógica ao oráculo
o enunciado é símile ao teu estado de ânimo ábdito
o jogo da linguagem está perdido
para quem não arrisca
A IGNIÇÃO E A IGNESCÊNCIA
“puseram-se a olhar o animal que se deitara na palha, suspirando,
com os beiços sujos do próprio sangue”
José Saramago
I
ENCONTRO E PARTIDA
aquele centauro dos mais antigos
quando das duas partes
a que é máquina
a combustíveis ádvenas, adivinhas
lateja viril
arfa no asfalto o pressentimento
o ressentimento por não saber
drenar as cores o outdoor a notícia
quantas gerações perdidas multiplicaram-se até que
eu me perdesse
daquela que nunca fui
solapada pela hereditariedade
antes do inebriante ressonar
o tempo é uma espécie rara de flor
cujo odor degluto-morro
se mesmo assim somente tu me interpretavas,
o que direi aos poetas
tão absortos em seus tamanhos
que não lhes pareça desaforo?
como a palpitação está para o palpite
eu para ele duplamente
herdada:
- "OBJETO QUASE" DO DESEJO -
* * *
ao passo que de seu colo
soltei os braços: o mundo
entre pendores dores escrituras
estive à deriva em queda livre
até perceber outros rostos
catálogo de feições e afeições
olhos olhados driblados permutados
um deles adaga o outro a draga
para cerrar os cílios
e a corrente de ar de ardil
para retirar detritos do semblante
desenhei no meu rosto os seus olhos
sim os teus
há de ser dita a coragem de mirar
bispar divisar lobrigar desfrutar
fiz do teu olhar gigante questão metafísica, ao debulhar dediquei
quando velo o teu sono na memória
tu acordas o Sol e o Aleph
e o tempo do verbo altera-se, educa, conspectivo,
até aonde a vista alcança
o que o senhor das moscas promete
ASSIM É O AMOR: CEMITÉRIO, MAR & FLORESTA & MAR
o amo do amor forja o elmo do amor
para proteger-se do pensar e do pesar da entrega
ontem forjamos um novo cristal
para burilar uma abertura
na torre de guarda
avistamos uma estátua
com a mão estendida sobre um túmulo
implorava perdão
pedinte fúnebre do amor perdido
solitária no jardim
entre salgueiros tristes
o epitáfio dizia: não soube falar
da passionalidade do crime de amar
não sei pensar o amor para além do ágape
o que desperta o meu interesse
é o estado de amar
para estimular a fé extensiva
para aprazer o sentido de aprender, tocar com as mãos
o conhecimento, a cultura
e assim tocar-te o rosto
na posição de Galateia incorporo
o gesto engessado,
o adeus da finalização da obra
com suas minudências encerradas
assombrosa a noite no mar que dele amanhecem na praia
águas-vivas de diversas espécies
e um bernardo-eremita
para ser devorado
coberto por algas um cemitério marinho dança com a água
do amor, e da água rasa recifes erguem-se como se
os amantes não houvessem nascido
eu te amo como se
todos os bichos marinhos
tivessem amanhecido
nas praias do mundo nesta manhã
como se dominasses o lirismo do mar
e de seus mil nomes geográficos
procure algum ponto em mim no mar
tâmara, tartaruga-sete-quilhas,
a minha casa na praia
talvez o meu sorriso
para ouvir um som, uma palavra sorrida, o marulhar
sou uma caixa, um objeto sem uso
uma escrivaninha onde deitas poemas
sou aspiração, maçã, o rosa,
o botão de tua camisa
com quem conversas
a disparada de uma égua,
a rodada de uma saia, um giro sufi,
um aviso,
um susto e o jorro
de tua mais límpida água,
o peixe mandarim, uma tunicata
o ano está passando convulso
soluçado, chovido, astuto
sinto em meus pés o frio
da terra molhada
repisada,
sinto as uvas
do cortejo de Dionísio
ele vagou ontem, no domingo,
por essa vereda
um caminho de pinot noir
pelo chão
ainda sinto o calor da festa,
o cheiro da insânia,
as pegadas das bacantes e dos sátiros
que não foram apagadas
sob as ameixeiras
pela chuva de hoje
fui mais adentro da floresta
o que poderia encontrar além
de um pequeno índio:
William Blake
agachado chorando à beira de um lago
até então somente avistado por ele
o lago da água preta
ele vira Eco ao lado de Cloto
porque pudera ver
entrar no ádito da tua mente pela mata
a recobrir o templo de tua mãe, Eros
(com suas flechas de ouro e de chumbo)
e avistar o que desejo:
as personagens, a paisagem,
o íntimo imaginário mítico nomeado
pelo que somente
posso eu ver em ti
adentrar ad infinitum num itinerário
perigoso, noturno, desafiador
ter paciência e coragem e resiliência
para não desistir da tua estrada
não sei dizer o amor
a não ser que seja ao mar
nele mergulho à procura de corais
suas formas e cores
pelo sentido da poesia
no leito do oceano estás lá, vivo
e emerges luminoso ao me encontrar
com um poema escrito nas guelras
idolatro a tua ascensão como que
aos céus, um Jesus em reconciliação com Deus
és puro, areia, estrela-do-mar e brisingida
escreves, prolixo, com jatos fugazes
tu és o tubarão-baleia
eu sou a água que atravessa
pelas tuas brânquias,
tubarão perfeito,
eu tua nereida
és o insumo de meu versar
quando neste instante imagino ter intuído
um poema de amor
Marta Georgea (PA) reside em Belém. Tem formação em artes, antropologia e psicanálise.
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