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Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

4 poemas de José Couto




THERE’S NO SPOON


Uma verdade pode ser um feixe inexistente

Da primeira aurora, antes do vento cósmico

Soprar em longínquos desertos

Despropósitos e ilusões


Uma verdade forjada no contrapeso

Oscilando entre caleidoscópico

E estreita rispidez


Ah quão suaves e leves

São certos instantes

Que chegam e esvanecem

Sem definições, fora do tempo


Há liberdade maior

Que a imaginação?




O último tango em porto alegre


Sempre

Me comoveu

As sobras

Os restos

As migalhas

E ninharias


Nada mais pungente

E extasiante

Que sentir-se

Um cãozinho abandonado

À deriva

Na esquina


Na esperança de

Um osso ou carinho


Quanto maior

A areia movediça

Mais o pântano

No meu peito

Se precipita

Ao abismo

Sem titubear


No terreno baldio

Desabitado

Da minha anima

Encontro o fel

De minha paz


Se um lindo

E incomensurável

Sentimento de abandono

Entra com o sol

E se aconchega aos meus pés

No silêncio gélido da casa


Inesperadamente

Ganho no meu dia insosso

Essa diminuta

E inútil alegria


Quanto maior o desprezo

Mais meu coração

Se regozija

Apertado

Palpita e deseja

O que nunca me chegará


Ser o último

Depois do derradeiro

Aquele que ninguém lembra

Ou se importa

Uma meta árdua

A ser conquistada


A desimportância

Suprema

O esquecimento

Será eternamente

Meu amparo

Meu maior tesouro

Uma graça alcançada


A noite de bar em bar

A solidão de um tango

Em um salão vazio

Uma dádiva epifânica


Garçons recolhendo tristezas

Garrafas copos cinzeiros

Sementes de não memórias

Melancólicos e taciturnos


Não sou nem um estorvo

Apenas aquele vulto

Indefinido no canto

Rabiscando no guardanapo

Um poema que nunca

Será lido por outros

Não consigo imaginar

Felicidade maior que essa


Depois seguir indiferente

Na noite que nunca finda

No que transbordou

Na imensidão erma

Sem delicadezas

Ou compaixões


No caminho de casa

Encontro um pássaro ferido

Entre as gramíneas violetas

Da flora pampeana


Com as mãos em conchas

O recolho e nos abraçamos

Devotos das nossas fragilidades

Mostramos um ao outro

Como troféus

Nossas cicatrizes

Ainda pulsantes


Antes de beber

A primeira lágrima

Que verteu de suas asas

Alçamos voo


No éter topázio do céu

Nos transmutamos

Em tênues perfumes

De antigas auroras


Um sopro nos fundiu

Em partículas de fractais lilás

Se deslocando

Indeterminadamente na luz


Subitamente abro os olhos

E para meu espanto

Ainda me encontro

Sentado no bar


E o gerente da espelunca

Me perguntando:


Gato barbieri ou piazzolla?

Sirvo a saideira?




Ewé


A verdejante mata pertence

A osanyin e seus orixás


Ewé lá na Bahia

Se chama candomblé

Xangô em pernambuco

Tambor no maranhão

Na amazônia babaçuê

Batuque no sul

Macumba em sampa

Umbanda na cidade maravilhosa


Ewé aféefé folhas de ar

Oyá guia nuvens no céu

Osumaré o pote de ouro

No fim do arco íris


Ewé inón folhas de fogo

Pra girar esú ogun

Abrir caminhos criar equilíbrio

Purificar perfurmar o sombrio


Ewé inón águas correntes

Yemoaá nanã yewá

Pra lavar os chakras

No rio intermitente


Ewé ilé igbó raiz da terra

Ogun logun oxumarê

Joga a capoeira dança o maculelê

Rabo de arraia aú chapa de pé


Ewé lá na Bahia

Se chama candomblé

Xangô em pernambuco

Tambor no maranhão

Na amazônia babaçuê

Batuque no sul

Macumba em sampa

Umbanda na cidade maravilhosa




A criação do mundo


Era só água e pântano

O babalorixá dos orixás olorun

Chamou obatalá


O cosmo girava girava

O arché princípio de tudo

Vagava na paisagem sem pressa


Ordenou o criador


Recolhe seus imalés

Para além das fronteiras de orun

Pede permissão de eshu

Senhor dos caminhos

E das travessias


Só não esqueça das oferendas

Sete estrelas prateadas de aruanda

Sete raios dourados de xangô

Sete pedras do kilimanjaro

Perfume do obó e óleo de obí


Só não esqueça de beijar opaxorô

Cruzar sobre a cabeça o àdúràs

Beber a tempestade de ofós

Verter as enxurradas

Intermináveis de oríkìs

Nos poros da pele de ébano


Ilè nfè! iIè nfè! Eu vou eu vou parir!


Eu sou o umbigo do mundo

Eu sou mali eu sou benin


Ilè nfè! Ilè nfè! Eu vou eu vou bramir!


Eu sou ifé eu sou ifé de odudua


No orun obatalá despertará

Benze esse iorubá

Com vinho de palma

E azeite de dendê


Do barro obatalá

Modelou o homem

Mas foi meu pai olorun

Quem soprou quem soprou

Mas foi meu pai olorun

Quem soprou quem soprou


Eu sou de ilê ifé de obá


Oni é meu rei

Oraniã meu irmão

Gana meu lar


Do cristal fiz a flor a floresta

Seus riachos e cachoeiras


Bati o cajado e bichos

Céus planícies e ventos

Esparramaram para todos

Cantos e direções


Formado e habitado

O mundo fluindo no oráculo ifá

Vai lá mani congo nini-a-lukeni


Vai lá joga o sal na terra

Dança o xirê adoça o congá com mel

Na pétala da mão pimenta

Nos braços a festa de yabás


Vai lá entra no círculo de erês

Vai bater cabeça pra zambi

E depois sobe com oduduwa




José Couto (Porto Alegre/RS) é poeta e professor. Participou de diversas antologias de poesia, crônicas e contos em diversos livros e periódicos da imprensa cultural do país. Escreveu sobre poesia para o jornal O Alvoradense durante seis anos. É o autor de A impermanência da escrita (2010), O Soneto de Pandora (2017) e O unicórnio do sul e outras lendas poéticas (2019). Prepara os originais de “quase quasares”, poesia; Sete cânticos negros (poesia, arte e música) e Os cães ladram enquanto a caravana nos surrupia (prosa poética).

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