THERE’S NO SPOON
Uma verdade pode ser um feixe inexistente
Da primeira aurora, antes do vento cósmico
Soprar em longínquos desertos
Despropósitos e ilusões
Uma verdade forjada no contrapeso
Oscilando entre caleidoscópico
E estreita rispidez
Ah quão suaves e leves
São certos instantes
Que chegam e esvanecem
Sem definições, fora do tempo
Há liberdade maior
Que a imaginação?
O último tango em porto alegre
Sempre
Me comoveu
As sobras
Os restos
As migalhas
E ninharias
Nada mais pungente
E extasiante
Que sentir-se
Um cãozinho abandonado
À deriva
Na esquina
Na esperança de
Um osso ou carinho
Quanto maior
A areia movediça
Mais o pântano
No meu peito
Se precipita
Ao abismo
Sem titubear
No terreno baldio
Desabitado
Da minha anima
Encontro o fel
De minha paz
Se um lindo
E incomensurável
Sentimento de abandono
Entra com o sol
E se aconchega aos meus pés
No silêncio gélido da casa
Inesperadamente
Ganho no meu dia insosso
Essa diminuta
E inútil alegria
Quanto maior o desprezo
Mais meu coração
Se regozija
Apertado
Palpita e deseja
O que nunca me chegará
Ser o último
Depois do derradeiro
Aquele que ninguém lembra
Ou se importa
Uma meta árdua
A ser conquistada
A desimportância
Suprema
O esquecimento
Será eternamente
Meu amparo
Meu maior tesouro
Uma graça alcançada
A noite de bar em bar
A solidão de um tango
Em um salão vazio
Uma dádiva epifânica
Garçons recolhendo tristezas
Garrafas copos cinzeiros
Sementes de não memórias
Melancólicos e taciturnos
Não sou nem um estorvo
Apenas aquele vulto
Indefinido no canto
Rabiscando no guardanapo
Um poema que nunca
Será lido por outros
Não consigo imaginar
Felicidade maior que essa
Depois seguir indiferente
Na noite que nunca finda
No que transbordou
Na imensidão erma
Sem delicadezas
Ou compaixões
No caminho de casa
Encontro um pássaro ferido
Entre as gramíneas violetas
Da flora pampeana
Com as mãos em conchas
O recolho e nos abraçamos
Devotos das nossas fragilidades
Mostramos um ao outro
Como troféus
Nossas cicatrizes
Ainda pulsantes
Antes de beber
A primeira lágrima
Que verteu de suas asas
Alçamos voo
No éter topázio do céu
Nos transmutamos
Em tênues perfumes
De antigas auroras
Um sopro nos fundiu
Em partículas de fractais lilás
Se deslocando
Indeterminadamente na luz
Subitamente abro os olhos
E para meu espanto
Ainda me encontro
Sentado no bar
E o gerente da espelunca
Me perguntando:
Gato barbieri ou piazzolla?
Sirvo a saideira?
Ewé
A verdejante mata pertence
A osanyin e seus orixás
Ewé lá na Bahia
Se chama candomblé
Xangô em pernambuco
Tambor no maranhão
Na amazônia babaçuê
Batuque no sul
Macumba em sampa
Umbanda na cidade maravilhosa
Ewé aféefé folhas de ar
Oyá guia nuvens no céu
Osumaré o pote de ouro
No fim do arco íris
Ewé inón folhas de fogo
Pra girar esú ogun
Abrir caminhos criar equilíbrio
Purificar perfurmar o sombrio
Ewé inón águas correntes
Yemoaá nanã yewá
Pra lavar os chakras
No rio intermitente
Ewé ilé igbó raiz da terra
Ogun logun oxumarê
Joga a capoeira dança o maculelê
Rabo de arraia aú chapa de pé
Ewé lá na Bahia
Se chama candomblé
Xangô em pernambuco
Tambor no maranhão
Na amazônia babaçuê
Batuque no sul
Macumba em sampa
Umbanda na cidade maravilhosa
A criação do mundo
Era só água e pântano
O babalorixá dos orixás olorun
Chamou obatalá
O cosmo girava girava
O arché princípio de tudo
Vagava na paisagem sem pressa
Ordenou o criador
Recolhe seus imalés
Para além das fronteiras de orun
Pede permissão de eshu
Senhor dos caminhos
E das travessias
Só não esqueça das oferendas
Sete estrelas prateadas de aruanda
Sete raios dourados de xangô
Sete pedras do kilimanjaro
Perfume do obó e óleo de obí
Só não esqueça de beijar opaxorô
Cruzar sobre a cabeça o àdúràs
Beber a tempestade de ofós
Verter as enxurradas
Intermináveis de oríkìs
Nos poros da pele de ébano
Ilè nfè! iIè nfè! Eu vou eu vou parir!
Eu sou o umbigo do mundo
Eu sou mali eu sou benin
Ilè nfè! Ilè nfè! Eu vou eu vou bramir!
Eu sou ifé eu sou ifé de odudua
No orun obatalá despertará
Benze esse iorubá
Com vinho de palma
E azeite de dendê
Do barro obatalá
Modelou o homem
Mas foi meu pai olorun
Quem soprou quem soprou
Mas foi meu pai olorun
Quem soprou quem soprou
Eu sou de ilê ifé de obá
Oni é meu rei
Oraniã meu irmão
Gana meu lar
Do cristal fiz a flor a floresta
Seus riachos e cachoeiras
Bati o cajado e bichos
Céus planícies e ventos
Esparramaram para todos
Cantos e direções
Formado e habitado
O mundo fluindo no oráculo ifá
Vai lá mani congo nini-a-lukeni
Vai lá joga o sal na terra
Dança o xirê adoça o congá com mel
Na pétala da mão pimenta
Nos braços a festa de yabás
Vai lá entra no círculo de erês
Vai bater cabeça pra zambi
E depois sobe com oduduwa
José Couto (Porto Alegre/RS) é poeta e professor. Participou de diversas antologias de poesia, crônicas e contos em diversos livros e periódicos da imprensa cultural do país. Escreveu sobre poesia para o jornal O Alvoradense durante seis anos. É o autor de A impermanência da escrita (2010), O Soneto de Pandora (2017) e O unicórnio do sul e outras lendas poéticas (2019). Prepara os originais de “quase quasares”, poesia; Sete cânticos negros (poesia, arte e música) e Os cães ladram enquanto a caravana nos surrupia (prosa poética).
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