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Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

Com ou sem Flip, precisamos conhecer Elizabeth Bishop melhor

ENSAIO VOLUME 5 NÚMERO 1


por Júlia Rodrigues


Bishop: uma flor rara


Em um Central Park calmo e um tanto melancólico, Robert Lowell e Elizabeth Bishop conversam sobre um poema em andamento. O poeta veterano acredita que falta fôlego ao que Bishop escreve, ele insiste que há mais para ser dito e que ela precisa seguir trabalhando. Bishop desabafa com o amigo, fala sobre sua necessidade de mudar de ares. Pouco depois, ela desembarca em um Brasil solar e vibrante. Daqui, não sairia tão cedo.

O filme “Flores raras”, de Bruno Barreto, sustenta-se em contrastes. Baseado na biografia romanceada de Carmen Oliveira[1], gira em torno da relação amorosa entre Bishop e Lota de Macedo Soares, arquiteta e urbanista carioca. Bishop ganha vida no corpo branco, esguio e delicado de Miranda Otto, enquanto Lota é vivida por uma Glória Pires morena, pequena e vigorosa. Bishop é antissocial, excêntrica e insegura. Comete gafes com frequência, como quando desconfia da qualidade da água brasileira ou se recusa a recitar um poema durante um jantar. Lota, ao contrário, é uma notável anfitriã, espirituosa e decisiva. Ela confessa que acha Bishop blasé. Foi apenas devido a uma intoxicação acidental, depois de comer caju, que Bishop permanece na casa de Lota e elas conseguem se conhecer e se apaixonar.

Não é difícil estender essas oposições para o seio do choque cultural vivido por Bishop: as cenas ambientadas nos Estados Unidos têm tons predominantemente escuros e se passam em ambientes fechados. Já as cenas no Brasil são carregadas de luz, cenários de inspiração modernista, belezas naturais. Assim como a exuberância dos corpos brasileiros, a paisagem carioca e os presentes privilegiados seduzem Bishop a permanecer no Brasil, “Flores raras” quer encantar o espectador com um banquete tropical.

Em seu escritório na região de Petrópolis, Bishop escreve inspirada por Lota, movida por cigarros e diante do jardim de sua companheira. Como é comum em cinebiografias, a poeta genial começa sendo mal compreendida, floresce quando vive uma paixão e passa então a desenvolver seus melhores trabalhos. Respeitada como poeta, ela agora transita com muito mais naturalidade entre a elite carioca enquanto Lota também conquista notoriedade ao projetar o aterro do Flamengo e coordenar sua construção.

Mas o amor de Lota e Bishop é trágico. Ele não resiste às tensões entre duas mulheres tão imersas em seus próprios trabalhos. Intrigas, ciúmes e até cartas extraviadas compõem uma ruptura definitiva. Bishop volta a seu país de origem e Lota não suporta sua ausência. Vai visitá-la no estrangeiro e se suicida. Ao final, vemos emergir uma Bishop triunfante, que finalmente consegue terminar o poema incompleto da cena inicial e, assim, traduzir sua dor em poesia.


Entendendo a polêmica da Flip


Com ares dramáticos, o nome de Elizabeth Bishop habitou as manchetes brasileiras desde o dia 25 de novembro de 2019, quando foi anunciada como a homenageada de 2020 da Festa Literária Internacional de Paraty[2]. A curadoria do evento organizou “uma apresentação de cartas e trechos da produção literária do homenageado” para a ocasião do anúncio. A apresentação, inédita ao longo dos 17 anos de existência da festa, não foi a única novidade. Em 2020, Elizabeth Bishop foi a primeira estrangeira escolhida para o tributo. Na cerimônia de anúncio, Mauro Munhoz, presidente da Casa Azul, declarou que o nome de Bishop era um desejo antigo da curadoria. Fernanda Diamant, também curadora, destacou a grandeza da estadunidense para a poesia global e sua importância como promotora da literatura brasileira no mundo.

A repercussão sobre o homenageado é sempre movimentada, mas a proporção do que ocorreu com Bishop foi sem precedentes - em relação ao volume e à intensidade de reações sobre a escolha. O primeiro estranhamento foi em relação a sua nacionalidade[3]. O que justifica a escolha de uma autora estrangeira? Izaías Almada se rebelou nesse sentido, associando Bishop a um anticomunismo paranoico e ignorante em relação aos trópicos: “Mas esse é o velho e querido Brasil”, ele conclui “sempre a prestigiar os de fora. As marcas da colonização não desaparecem de uma hora para outra. Quinhentos anos não foram suficientes para criarmos vergonha na cara.”[4]

Mas provavelmente o que causou as reações mais intensas foi a divulgação de um trecho de carta de Bishop a Lowell, na qual Bishop caracterizou o golpe de 64 como uma “revolução rápida e bonita”. “Sinto uma vergonha tremenda, monstruosa, quase paralisante” escreveu Tadeu Braga, desculpando-se por abordar a Flip em momento de grave crise nacional. “Mas, ainda assim, quero escrever, porque os responsáveis por isso [curadoria] não demonstraram qualquer sinal de vergonha ou arrependimento pela indicação. Menos ainda parecem entender ou se incomodar com a íntima relação existente entre a louvação de uma artista apoiadora do golpe militar com as mais recentes cenas da tragédia nacional, tão marcada pela truculência”[5]. Essa posição, assim, combina dois níveis de insatisfação: um que diz respeito à manifestação política de Bishop; outro que destaca a incompatibilidade da escolha de seu nome esse ano, quando o Brasil é governado por uma presidência próxima da milícia, saudosa da ditadura militar e simpática à repressão policial.

Bernardo Carvalho e Angélica Freitas se destacaram como dois contrapontos a essa repercussão. No artigo “Roupa do bolsonarismo não cabe em Elizabeth Bishop”, Carvalho chega a afirmar que “a poeta representa o contrário de tudo o que quer e propõe o atual governo”[6]. Sem discutir o mérito da escolha em si, Carvalho se volta para a superficialidade das críticas à Bishop, associando o reducionismo extremo a um expediente fascista: “A grandeza da arte vem das ambiguidades e das contradições das obras, não do que dizem os artistas. É o fascismo que, ao contrário, não dispensa palavras de ordem”[7]. Freitas, em sua conta no Twitter, relativizou a escolha da Flip, mas enfatizou seu imenso apreço pela poeta: “amo a bishop em toda a sua complexidade. uma mulher desenraizada, lésbica, alcoólatra. teve uma vida trágica. apaixonou-se por uma brasileira e morou aqui (numa bolha de gente rica que hoje apoiaria borsalino). uma das maiores poetas do século XX. uma das minhas poetas favoritas”[8].

Aceitar a complexidade, no entanto, foi raridade na polêmica. Se, no filme de Bruno Barreto, Bishop frequentemente não consegue deixar de ser uma caricatura da estrangeira antissocial (deslumbrada com o Brasil, porém incapaz de compreendê-lo e habitá-lo naturalmente), a repercussão sobre a escolha da Flip conseguiu convertê-la em um esquematismo ainda mais carregado. Imperialista, preconceituosa, militarista. Ou cosmopolita, lésbica e apaixonada pelo Brasil.

Que mulher foi essa?


Uma poeta estadunidense no Brasil: entrevistas com Bishop


Na Fazenda em Samambaia, Lota Soares presenteou seu grande amor com um escritório único no mundo. A paisagem deslumbrante impressionava os convidados, que tinham certeza de que a beleza natural era o que inspirava Elizabeth Bishop a escrever poesia: “Todos que vêm aqui me perguntam sobre a vista”, disse ela em uma entrevista. “‘É muito inspirador?’ Acho que vou colocar uma plaquinha naqueles bambus dizendo: ‘Inspiração!’ Suponho que qualquer escritor prefira um quarto de hotel despido de distrações”[9]. Demonstrando que herdou o senso de humor da mestra Marianne Moore, Bishop habilmente contorna certos clichês sobre a rotina do poeta no exílio, dependente da inspiração pela via do exótico.

Em entrevistas, ela gostava de contar sobre sua intoxicação com caju em tom de anedota, destacando o acaso que a levara a permanecer no Brasil. Desterrada, era propensa a estar sempre viajando. Bishop não tem origem rica; ficou órfã muito cedo e, na sequência, privada de estabilidade emocional e financeira. Seu olhar era curioso, perspicaz para captar as singularidades dos locais por onde transitou. No Brasil, Bishop cultivou atenção ao que estava ao alcance dos seus olhos - por mais limitadores que tenham sido, no início, seu pobre domínio do português e a redoma privilegiada do círculo de Lota -, como é possível perceber em um poema de 1964 (traduzido por Paulo Henriques Britto):


Nos morros verdes do Rio

Há uma mancha a se espalhar:

São os pobres que vêm pro Rio

E não têm como voltar.


São milhares, são milhões,

São aves de arribação,

Que constroem ninhos frágeis

De madeira e papelão.

[...][10]


Os comentadores que querem ver em Bishop uma aferrada militarista ficariam confusos ao ler suas entrevistas. Numa delas, a poeta se diz socialista. Em muitas outras, demonstrou pelo pacifismo e pelos problemas sociais do Brasil e do mundo. Desde sempre teve atenção à vida das classes populares. Quando retorna aos Estados Unidos, acha seus alunos universitários mimados e preguiçosos demais em comparação aos brasileiros:


Você já viu os carrões que eles dirigem? Não sei de onde eles tiram tanto dinheiro; talvez os pais os ajudem. O que eles tanto escrevem nos poemas? Sofrimento! De todos os tipos. Não creio que a maioria deles saiba algo sobre sofrimento, mas seus poemas são repletos dele// Aqui os estudantes vivem na moleza. Recomendaria a toda a juventude norte-americana uma viagem a um país subdesenvolvido. Quando penso nos estudantes pobres que conheço no Brasil.[11];


Por escolha própria, Bishop não cultivou uma formação política e jamais expressou sua visão de mundo em termos de uma ótica coerente: “Sempre me opus a um pensamento político nesses termos [restritos e bem delimitados] para escritores”[12]. Essa recusa se relaciona também com uma rebeldia literária, que incluiu a negação de diretrizes e manifestos nos moldes modernistas da geração anterior a sua: “Não acredito que alguém jamais tenha sentado e escrito um poema de acordo com alguma teoria”, disse ela em outra ocasião, já professora em Seattle. “Se escreveu, provavelmente não era nada bom”[13]. As certezas de Bishop eram, com frequência, de natureza antidogmática.

Essa posição, é claro, tem muitas contradições. Por exemplo, hoje nos parecerá demasiado ingênuo que Bishop tenha acreditado no mito da democracia racial brasileira: “Sente-se como que um alívio pela ausência de tensões, de conflitos entre as raças. Acredito que no meu país essa situação grave será solucionada pacificamente [...]”[14]. No entanto, mesmo nesse caso é relevante que Bishop, contrária às opressões, não tenha ficado indiferente à constatação de que o Brasil não cultivava a segregação nos moldes americanos. Ao contrário, ela viu no Brasil, mesmo que de forma limitada, uma possibilidade inspiradora para que seu país de origem pudesse ser menos desigual. E simpatizava com a luta pelos direitos civis de lá: “Sua atitude em relação às questões raciais”, resumiu a biógrafa Brett Miller, “pode ser considerada típica dos liberais americanos brancos de sua geração”[15]. Ou seja, condescendente, frequentemente ingênua, mas muito distante do ódio fascista.

Bishop, certamente, não foi uma militante. Ela própria insistia nesse ponto. Tampouco foi brasilianista. Mas soube erguer os olhos de sua máquina de escrever para observar o que a cercava e tinha sensibilidade para relatar o que notava - sobretudo em poesia. Em 1969, quando residia em Ouro Preto, mencionou em uma entrevista que, enquanto ela tinha uma fossa séptica em sua casa, o problema de saneamento e a falta de assistência médica atingiam a população da cidade mineira. O entrevistador pergunta a ela o que faria se tivesse muito dinheiro ou se fosse do governo. “Que governo?”, interrompeu Bishop rindo divertidamente da pergunta[16].


***

“Ela escreve poesia com olhos de pintor”, teria dito Meyer Shapiro sobre Bishop. Ela, de fato, insistia na importância da visão para a poesia: “Vocês deveriam usar mais objetos em seus poemas - aquilo que vocês usam todos os dias…as coisas que nos cercam”, disse a seus alunos americanos. “A pop art chama a nossa atenção para várias coisas, gostemos ou não. Pode-se escrever uma poesia muito boa sem imagens vívidas, mas, particularmente, prefiro a observação” [17]. Como destaca Paulo Henriques Britto, esse olhar é uma herança modernista. Bishop exercia observação curiosa e atenta, muito inspirada por Moore, buscando a precisão sem deixar de lado o que é inapreensível e surpreendente.

Bishop escreveria também poemas considerados “surrealistas”, ou de ambientação mais intimista, com tendência a ser declaradamente mais pessoal. “Close, close all night”, ao lado de “The Shampoo”, é um lindo e justamente celebrado poema lírico.


Juntinhas a noite toda

as amantes ficam.

Em seu sono

juntas se viram,


juntas como páginas

de um livro

que se lêem

no escuro


Tudo sabe a outra

o que sabe uma,

de cor, do fio de cabelo

à ponta da unha[18]


Na verdade, é um desafio distinguir precisamente tantas nuances em sua poesia - ainda mais quando consideramos que muitos cadernos de escrita não foram catalogados ou publicados (ao que tudo indica, alguns foram perdidos mesmo)[19].

Contrariando certas narrativas sobre ela, Bishop, segundo seus amigos e alunos, era discreta, dona de humor e inteligência singulares. A poeta era uma ávida leitora de poesia, conhecia diversos poemas de cor e cobrava de seus alunos algum conhecimento da tradição inglesa. Em entrevistas, ela citava os poetas brasileiros que havia lido, demonstrando interesse pela literatura e pintura nacionais. Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Helena Morley e Cândido Portinari estão entre seus favoritos.

Mas Bishop não costumava inflar seu conhecimento sobre a arte brasileira. “Para resumir”, disse ela certa vez “acabei vindo pra cá e certamente sou influenciada pelo Brasil. No entanto sou, por completo, uma poeta norte-americana”[20]. Não é fácil resumir sua relação com o país. Por um lado, como bem destaca Paulo Henriques Britto, amparada por Lota ela encontra uma casa como poucas vezes tivera na vida e opta por viver no país ainda algum tempo após a morte de ex-companheira. Um de seus principais livros, Questions of Travel, se divide em duas seções: “Brazil” e “Elsewhere” (“Brasil” e “Outros lugares”), sendo, portanto, centralmente ambientado aqui. Ela traduziu, quase que exclusivamente, poetas brasileiros. Muitos de seus poemas foram escritos aqui, muitos falam daqui. A experiência brasileira a marcaria profundamente e ela jamais deixaria de mencionar, nos contextos mais diversos, o tempo que aqui passou.

Por outro, Bishop não reivindicaria o Brasil como um lar, nem mesmo um segundo, e sempre se considerou uma estrangeira no país. Essa recusa tem menos a ver com algum tipo de menosprezo do que com uma insistência na estrangeiridade em diversos níveis: enquanto outros poetas de seu tempo ansiavam por algum tipo de unidade, Bishop é a poeta do deslocamento. A viagem não é somente um tema, mas uma espécie de metáfora de sua poesia. Condição dolorosa: em uma carta famosa, Bishop escreve ao amigo Lowell que gostaria de ser lembrada como a pessoa mais solitária que já existiu, e de certa forma, ela é uma poeta só. Mais do que sua paleta, foi a singularidade de seu olhar inquieto que fez sua fama. Ela incorpora às imagens vivas de seus poemas indagações constantes sobre a observação em si e os processos de construção do saber. Um poema paradigmático nesse sentido é “O Iceberg Imaginário”, que aparece ainda em North and South. Não é a toa que foi destacado por Paulo Henriques Britto na seleção O iceberg imaginário e outros poemas (a tradução que segue é dele):


O iceberg nos atrai mais que o navio,

mesmo acabando com a viagem.

Mesmo pairando imóvel, nuvem pétrea,

e o mar um mármore revolto.

O iceberg nos atrai mais que o navio:

queremos esse chão vivo de neve,

mesmo com as velas do navio tombadas

qual neve indissoluta sobre a água.

Ó calmo campo flutuante,

sabes que um iceberg dorme em ti, e em breve

vai despertar e talvez pastar na tua neve?


Esta cena um marujo daria os olhos

pra ver. Esquece-se o navio. O iceberg

sobe e desce; seus píncaros de vidro

corrigem elípticas no céu.

Este cenário empresta a quem o pisa

uma retórica fácil. O pano leve

é levantado por cordas finíssimas

de aéreas espirais de neve.

Duelo de argúcia entre as alvas agulhas

e o sol. O seu peso o iceberg enfrenta

no palco instável e incerto onde se assenta.


É por dentro que o iceberg se faceta.

Tal como joias numa tumba

ele se salva para sempre, e adorna

só a si, talvez também as neves

que nos assombram tanto sobre o mar.

Adeus, adeus, dizemos, e o navio

segue viagem, e as ondas se sucedem,

e as nuvens buscam um céu mais quente.

O iceberg seduz a alma

(pois os dois se inventam do quase invisível)

a vê-lo assim: concreto, ereto, indivisível.


“Nuvem pétrea”, “mármore revolto”, “chão vivo de neve”: são várias as imagens oníricas que rodeiam o iceberg imaginário e o sustentam. Até o marujo prefere o iceberg ao navio, o indócil ao rotineiro, mesmo que o encontro com o iceberg possa significar o final da viagem. Bishop parece nos perguntar: o encontro com essa aparição tão fantástica, quase viva, não valeria a pena uma mudança de percurso? Esse misterioso iceberg, que afinal de contas por si só desafia a definição (o que é um iceberg: montanha, território, objeto? pode ser localizado?), é uma imagem privilegiada do terreno do imaginário. Como se sabe, boa parte de sua composição se esconde no mar: o que emerge é uma parte pequena de sua totalidade (é conhecida a expressão popular “a ponta do iceberg” se refere a um problema de uma complexidade maior do que conseguimos compreender). Bishop sugere que a imaginação tem algo de incontrolável (ela se dirige ao mar como se a irrupção do iceberg não pudesse ser domada, apenas sentida), ocorrendo em tempo próprio. Tão súbita quanto sua chegada é sua partida. O navio segue viagem e o viajante parte seduzido pelo iceberg que fica para trás.

Há algo muito definidor que a alma e o iceberg compartilham: embora o bloco de gelo tenha uma concretude convincente, ambos são compostos mais do que não pode ser visto do que pelo visível. Essas tensão entre o que está diante dos olhos ou oculto ao olhar atravessa a obra de Bishop. Como resumiu bem Harold Bloom, “com muita frequência ela é elogiada pelo seu ‘olho’ como se fosse uma mestra da ótica. Mas na verdade seu trunfo é ver o que não pode muito bem ser visto, dizer o que não pode muito bem ser dito”[21].


O problema da homenagem


Que Bishop, afinal de contas, estamos vendo? “Às vezes penso que o problema está na ideia de ‘homenagem’”[22], escreveu ainda Angélica Freitas. Não é raro encontrar, no passado e no presente, artistas que problematizam, recusam e sabotam tributos de toda ordem. De certa forma, a arte consegue se manter viva por essa inquietude em relação a tudo que está, supostamente, estabelecido. Mas vem com espinhos muito específicos o desafio de definir (e mesmo questionar) o que significa homenagear um autor no caso da Flip. Surgiram interessantes defesas da escolha de um nome estrangeiro, mas a própria curadoria da festa não conseguiu sustentar uma justificativa convincente em relação a Bishop, a começar por sua estrangeiridade. No página do histórico da Flip consta o compromisso em homenagear um “autor brasileiro” a cada ano[23]. Mauro Munhoz respondeu à imprensa que literatura brasileira é aquela produzida no Brasil - mas, parece evidente, “autor brasileiro” significa um autor de nacionalidade brasileira (ou seja, alguém que nasceu ou se naturalizou aqui). Ainda no site da Flip, apresentaram o vídeo que anunciou o nome de Bishop como um apanhado de sua obra ao lado de temas caros ao evento, “como o entrelaçamento de linguagens e manifestações artísticas, o processo de fixação das raízes culturais no território – em Paraty, no Brasil e no mundo – e o papel das artes em geral na revitalização do espaço urbano”. Essa apresentação, por demais genérica, não carrega consigo uma leitura de sua obra, em nada esclarece a importância do legado da poeta e sua participação em nossa cena cultural.

Em suas falas, Fernanda Diamant parece ter confiado demais no renome da poesia de Bishop - e apostado que seu reconhecimento, ao lado da lesbianismo da autora, seriam por si só elementos que sustentariam sua indicação. “A programação não vai abandonar o que está sendo feito, independentemente do homenageado”, declarou Diamant, a respeito de uma proposta mais diversificada para a Flip como um todo. “No caso de Bishop, ela é uma poeta homossexual, embora isso não tenha sido a razão central da escolha”. Cabe destacar, nesse ponto, que Bishop detestava que sua poesia fosse rotulada. Recusou mais de uma vez compor antologias feministas, mesmo quando mais simpatizava com movimentos de mulheres. “Há críticos que me classificam como o maior poeta feminino da década. Isso é simplesmente ridículo! O que tem a ver o que eu faço com o termo feminino? Homens e mulheres não escrevem de maneiras diferentes” [24]. Bishop acreditava que equiparar uma obra, sua ou de qualquer outra poeta, apenas à poesia escrita por mulheres (em frases como, “o melhor livro do ano escrito por uma mulher”), era uma forma condescendente de tratar o trabalho artístico, como se ele apenas pudesse ser apreciado no seio de um nicho restrito, e não em relação a tudo o que entendemos por literatura. Por mais que seja possível argumentar que o olhar de muitos poemas dela (como “Pela janela: Ouro Preto”) tenha sido moldado por um universo feminino, o nome de Bishop não consegue evocar, mesmo que incidentalmente, a pluralidade pretendida por Diamant. Sempre discreta em relação a sua vida privada, dentro e fora da poesia, é duvidosa a promoção de Bishop como uma “poeta homossexual”. E há outro ponto da fala de Diamant que merece atenção: se a programação é, em certa medida, independente do homenageado, qual é sua função? Quais debates a obra do homenageado suscita e de que forma a Flip os conduz?

O que está em jogo não é apenas nossa relação com Bishop e a homenagem, mas nossa relação com a Flip e a política cultural. Muitas das opiniões que surgiram durante a polêmica revelam um desconhecimento estrondoso de Bishop. Essa lacuna permite que mitos e distorções, como o da poeta ditatorial, ganhem força. Paralelamente, a fragilidade da proposta da Flip também permite que projetemos demandas bastante diversas sobre um evento que parece não ter vocação para atendê-las. Se a festa vem buscando incorporar cordel, slam, performances e editoras independentes, as prioridades são diferentes no momento de escolher o autor homenageado - nesse aspecto específico, não pode ser considerada plural e inclusiva uma lista de 18 nomes nos quais, por exemplo, figuram apenas quatro mulheres, nenhuma delas negra. Cabe perguntar se de fato é o homenageado que evoca o dinamismo do contemporâneo ou se, ao contrário, a festa depende de uma pluralidade compartimentada, que serve ao intuito de assegurar a presença de um centro que não é implodido. Talvez valesse a pena debater porque encaramos a homenagem, em especial da Flip, como uma espécie de validação tão necessária.

Bishop já foi protagonista no Brasil em outras situações: seu centenário, em 2011, foi celebrado com um seminário internacional em Ouro Preto[25]. A peça “Um porto para Elizabeth Bishop”, de Marta Góes, fez história. Seus poemas, entrevistas e cartas foram traduzidos em diversas edições. Paulo Henriques Britto já havia comentado a cegueira do elogio à ditadura militar em 1999, numa seleção de sua poesia[26]. Ela, portanto, não é uma ilustre desconhecida entre nós. Ao que tudo indica, a Flip abandonou sua proposta de homenagear um autor nacional com uma justificativa rasa - e sacrificando, assim, a oportunidade de homenagear João Cabral de Melo Neto no ano de seu centenário; ou autoras vivas como Conceição Evaristo e Lygia Fagundes Telles[27]. Mas dizer que a homenagem da Flip não foi bem fundamentada não quer dizer que falar de Bishop, em 2019 ou em qualquer outro ano, seja algo sem fundamento. É uma perda imensa, para ela e para nós, insistir em uma caricatura que só existe na polêmica.

Por um lado, muitas falas de Bishop parecem simplistas e datadas. Por outro, em muitos momentos ela continua nos alertando de forma pertinente para o perigo de certas ideias feitas. Em 1969, Bishop foi entrevistada durante o Festival de Inverno de Ouro Preto. “Muitos dizem que gostariam de construir uma cidade-satélite para o povo”, afirma o repórter, “e entregar Ouro Preto aos artistas”. O que ela pensa disso? Bishop responde:


Acho uma besteira. Em primeiro lugar, não há muitos artistas, seria uma cidade fantasma. Uma das coisas que eu gosto é porque ela ainda é uma cidade, não uma coisa morta. Uma das raras cidades do mundo em que até os ‘birutas’ ainda podem viver soltos e até ganhar a vida. Além do mais, eu detestaria viver numa cidade só de artistas, ia-me embora correndo. Um em cada quarteirão é mais do que bastante. Os artistas não devem se aproximar, se amontoar demais[28].


Sendo uma poeta tão atenta à alteridade, não surpreende que Bishop prefira Ouro Preto em sua dinâmica rotineira: a cidade por si mesma, viva e imprevisível, entre trabalhadores, loucos e artistas. “Há alguma coisa no caráter dessa cidade que combina comigo”, ela disse na mesma ocasião. Se é demais esperar encontrar em sua obra um retrato abrangente e complexo do Brasil, parece sensato dizer que Bishop dificilmente teria passado aqui tanto tempo se não tivesse alguma conexão com o país, que atravessa sua criação. Que bom que ela existe, mesmo se não for celebrada na agitação dos festivais. Há muitas outras formas, críticas e instigantes, de acessá-la. Sua obra, não resta dúvida, é estrangeira. Mas há, afinal, alguma coisa em sua poesia, alguma coisa excitante e extraordinária, que vale a viagem - e que pode até combinar conosco.



[1] Nas palavras da própria autora: “Este livro é fundamentado em relatos orais e escritos. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é intencional”. É de importância histórica o livro Flores raras e banalíssimas, pois trouxe à tona a relação amorosa entre Lota e Bishop, travestida de “amizade” para a opinião pública da época. Está disponível no Brasil em edição da Rocco.







[7] Idem



[9] MONTEIRO, George. Conversas com Elizabeth Bishop. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 41-42


[10] Ibid, p. 40


[11] Ibid p. 56/ p. 63


[12] Ibid p. 45


[13] Ibid p. 55


[14] Ibid, p. 39



[16] Ibid, p. 71


[17] Ibid, p. 62



[19] Tornou-se famoso o caso contado por Lloyd Schwartz (amigo de Bishop e, posteriormente, seu editor) sobre um poema que ele conseguiu registrar antes que seu caderno desaparecesse. Conto o caso e traduzo o poema aqui: https://conversaentreruinas.wordpress.com/2016/01/29/uma-cancao-de-elizabeth-bishop/


[20] Ibid, p. 43


[21] BLOOM, p. 11




[24] MONTEIRO, 2013, p. 76.




[27] Agradeço aos amigos que comentaram uma pergunta feita em minha página do Facebook. Suas sugestões foram valiosas para esse ponto da reflexão.


[28] Ibid, p. 71

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