A primeira vanguarda russa é bem conhecida. Surge dentro do modernismo russo, a chamada Era de Prata, mais precisamente na década de 1910, sob a liderança de David Burliuk que agregou em torno de si poetas como Vielimir Khlébnikov e Aleksiéi Krutchônikh, num grupo que inicialmente foi chamado de “budetlyane”, tradução russa da palavra “futurista”. É o poeta Igor Sievieriânin o primeiro a termo ao fundar o “Ego-futurismo”, em 1911.
Mas é em torno da liderança Burliuk que a vanguarda russa se desenvolve. Em 1912, agrega-se ao grupo aquele que viria a ser a maior expressão vanguardista russa, Vladimir Maiakóvski. De “budetlyane” mudariam para “Gilea” e, finalmente, após a aproximação com a União da Juventude, agremiação que reunia artistas plásticos como Kazimir Malevich (1879-1935), quando passaram a ser chamados de “cubo-futuristas”. Cumpre lembrar ainda a existência do grupo Centrífuga, de Moscou, onde atuavam os poetas Nicolai Assiéiev e Boris Pasternak.
Com a instauração do novo regime, a partir da Revolução Russa, em 1917, vai sofrendo uma série de sucessivos baques até seu sufocamento pleno. O primeiro deles é o fim do NEP (Nova Política Econômica), em 1929, que ao impedir qualquer atividade privada, concentrou todos os meios de publicação nas mãos da burocracia do estado; suicídio de Vladimir Maiákovski, em 1930; prisão dos presos os representantes do último grupo de vanguarda em atividade, OBERIU (Associação para uma Arte Real), Aleksandr Vviediênski e poetas russos Daniil Kharms Igor Bakhtieriêv, em 1931; a proclamação do realismo socialista como estética de estado no I Congresso dos Escritores, em 1934.
Apesar de não ser publicada pelos meios oficiais, a vanguarda russa sobreviveu ativa e intensamente, nas décadas seguintes, até a abertura política promovida pela Perestroika, circulando nos subterrâneos por meio dos samizdat, fenômeno este que recebeu a denominação de “underground soviético”.
Com “degelo”, que se segue após a morte de Stalin, é realizado o VI Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, em 1957, com a presença de artistas de todo o mundo que expuseram seus trabalhos em Moscou, na oportunidade foram exibidos trabalhos do norte-americano Jackson Pollock, por exemplo.
Mas o “degelo” de Nikita Khrushchov logo recrudescer quando o líder soviético visitou uma exibição no qual já eram perceptíveis a influência da vanguarda. “Em matéria de arte eu sou stalinista”, falou.
Um dos marcos da vanguarda russa deste período foi a “Exposição dos tratores”, de 1974. Sem espaço nas galerias, Oscar Rabin organizou uma exposição ao ar livre, em cima da qual o governo mandou passar tratores por cima.
Oscar Rabin era discípulo de um artista multimídia, Ievguêni Kropivnítzki. Nascido no mesmo ano que Maiakóvski, era músico, artista plástico e poeta. Foi o guru intelectual de uma geração de artistas plásticos e poetas que se reuniam em torno dele. Como sua casa ficava localizada numa área que à época era nos arredores de Moscou, em Lianózovo, o grupo passou a receber esta denominação.
A escola ou grupo de Lianóvozo é a mais importante expressão da chamada segunda vanguarda russa. E dele fizeram parte os poetas Ian Satunóvski, Igor Khólin e Vsevolod Nekrássov, que traduzimos nesta edição.
Astier Basílio é poeta e dramaturgo. Mora em Moscou desde 2017. Mestre em literatura russa pelo Instituto Estatal Púchkin e atualmente doutorando pelo Instituto de Literatura Maksim Górki.
IAN SATUNÓVSKI
(1913-1982)
Iákov Abramovich Satunovski nasceu em 10 de fevereiro de 1913, na cidade de Yekaterinoslav, à época pertencente ao império russo. Atualmente, a cidade se chama Dnipro e está localizada na Ucrânia.
Em 1927, Satunovski foi estudar num ginásio técnico em Moscou, ocasião em que manteve contato com os poetas construtivistas e passou a escrever poemas. Satunovski esteve presente na exposição organizada por Maiakóvski poucos meses antes de sua morte, em 1930.
Em 1941, com o início da Grande Guerra Patriótica, Satunovski estava servindo ao exército e foi convocado a lutar. Ferido no peito, o poeta foi afastado para se tratar e , ao se recuperar, passou a escrever em um jornal armeno ligado ao Exército Vermelho. Satunovski escrevia poemas humorísticos que agradavam seus colegas de farda.
O escritor Ilya Ehrenburg, ao ler o caderno que Satunovski mantinha em segredo, o aconselhou a emigrar, pois, aquele tipo de poesia não seria editada na União Soviética, mas ele recusou, alegando razões familiares para regressar à Rússia. Quando terminou a Guerra, Satunovski transferiu sua família para Elektrostal, cidade localizada na grande Moscou.
Samuil Marshak, um dos maiores nomes da literatura infantil na Rússia, atendendo a uma carta de recomendação de Ehrenburg, passou a editar Satunókvski que, em toda a sua vida, chegou a publicar 14 coletâneas de poemas para crianças.
Ian Satunovski teve seu talento reconhecido por uma das figuras mais radicais da poesia de vanguarda russa, Aleksiéi Krutchônikh. Poucos meses antes de morrer, o veterano futurista recebeu uma ligação telefônica de Satunóvski. Sabendo que Krutchônikh não tinha muita paciência com os poetas contemporâneos, não disse nada: começou a ler seus poemas. Quando terminou a leitura, Satunóvski ouviu o velho poeta pedindo: “mais, leia mais”. Foi assim que teve início a amizade entre eles.
Naquele período, Satunóvski já estava próximo da Escola de Lianozovo. Por esta razão, Satunovski é tido por alguns críticos como uma ponte entre a primeira e a segunda vanguardas russas.
Ontem, me atrasando pro trabalho,
dei com uma mulher, no gelo engatinhando,
eu a levantei, depois pensei: lou-
co, vai que ela era inimiga do povo?
Vai que é! - mas vai que é o oposto?
Vai que ela era amiga? Ou, como se diz, hospedeira [1] ?
uma simples velhinha em algodão e um bobo
da corte a refazê-la.
(1939)
[1] No original ‘obyvatel'’ que significa “morador”, “residente”. Entretanto, a palavra passou a ter uma conotação negativa após a Revolução de 1917. Por esta razão, optamos pela palavra“hospedeira” .
Вчера, опаздывая на работу,
я встретил женщину, ползавшую по льду,
и поднял её, а потом подумал: – Ду-
рак, а вдруг она враг народа?
Вдруг! – а вдруг наоборот?
Вдруг она друг? Или, как сказать, обыватель?
Обыкновенная старуха на вате,
шут её разберёт.
Eu morri exatamente há 29 anos passados [2].
Passados -
há-
anos -
29-
exatamente -
não voltará.
(1966)
[2] Fazendo as contas, com a data do poema explicitamente posta entre parêntesis, chegamos ao ano de 1937, quando aconteceram os Grandes Expurgos, ápice do terror vermelho stalinista.
Я умер ровно 29 лет тому назад.
Назад –
тому –
лет –
29 –
ровно –
не вернуть.
(1966)
Crime e castigo?
Tudo na ordem! - tenente,
repita a missão pra gente:
- foi mandado pra fuzilar,
nem tolstices
dostoices,
acendeu a alma dos praças,
menções honrosas,
coragem
(Cruz pra eles,
nós, estrela) [3]
Minha é a vingança;
eu recompensarei [4]
[3] No túmulo dos soldados alemães era posta uma cruz, no dos soviéticos uma estrela
[4] Citação bíblica presente na Carta de São Paulo aos Romanos capítulo 12: 19
"Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor"
Преступление и наказание?
всё в порядке! — лейтенант,
повторите приказание:
— есть, приказано расстрелять;
ни толстовщины,
ни достоевщины,
освежила душу война-военщина:
наградные листы,
поощрения
(крест у них,
у нас звезда);
Мне отмщение
и Аз воздам.
IGOR KHÓLIN
(1920-1999)
Igor Serguêievitch Khólin nasceu em Moscou em 1920. Há duas versões sobre o destino de seu pai. A primeira: era um funcionário da tcheká, serviço secreto do império, que se bandeou para o lado os bolcheviques, vindo a ser eliminado posteriormente. A segunda: morreu de tifo. O fato é que Khólin foi recolhido para um orfanato, de onde fugiu e passou a viver como criança de rua até ser acolhido até ser acolhido pelo Exército, no regimento de música, em Novorossisk, no Krai de Krasnodar.
De 1940 a 1946, Igor Khólin integrou os quadros das forças armadas russas, tendo servido da Segunda Guerra, chegando a alcançar a patente de capitão do Exército Vermelho.
Devido a uma agressão a um colega de farda, Khólin foi sentenciado a dois anos de prisão numa área administrativa, nos arrabaldes de Moscou, chamada Lianózovo. O responsável pela administração da prisão era um amigo seu que facilitou o trânsito de Khólin para fora da zona. Em uma de suas saídas, foi à uma biblioteca próxima e pediu um livro de Aleksandr Blok. A bibliotecária admirou-se do pedido e perguntou se Khólin era poeta, o que ele confirmou, com orgulho. A pergunta havia sido feita por Olga Ananyevna Potapova (1892-1971), artista plástica e esposa do multimídia Ievguêni Kropivnótzki (1893-1979).
Khólin fixou residência em uma das barracas do alojamento comunitário de Lianózovo e encontrou ali, na vida dura das pessoas de baixa extração social, a matéria prima de seus poemas.
A crítica literária russa, identifica uma influência da escola concretista na sua obra, pelo despojamento das formas, a valorização da palavra, bem como uma preferência pela linguagem simples das ruas. Khólin foi uma espécie de cronista do cotidiano soviético, muitas vezes valendo do humor ácido e de um realismo que beirava o absurdo.
Igor Khólin prezava por liberdade e sequer tentou ser publicado pelos meios oficiais, confeccionando seus samizdats em tiragens mínimas, vendidas a amigos e oferecidas a outros poetas. Foi publicado no exterior, nos centros de imigração russa. Escreveu, entretanto, 25 livros infantis. Sua primeira publicação aconteceu em 1989, já no período da abertura, proporcionado pela Perestroika.
Por esses dias em Sókol [5]
Uma moça
Matou a mãe a socos
A razão do escândalo
Divisão de bens
Agora é normal fazer isso
E tudo bem.
[5] Sókol, cidade localizada no oblast de Vologda, norte da Rússia.
На днях у Сокола
Дочь
Мать укокала
Причина скандала
Дележ вещей
Теперь это стало
В порядке вещей.
Na janela, florezinhas,
o quarto é um aconchego,
no celeiro, uma barrica:
vodca, ao lado, estão bebendo,
o vizinho tem uma filha
em quem bate agora mesmo.
На окне цветочки,
В комнате уют,
У сарая — бочка,
Рядом — водку пьют,
У соседа дочку
В это время бьют.
A Y.Vasiliev
Peixe. Caviar. Vinho.
A vendedora Ina está atrás da vitrine.
À noite outra coisa pinta:
quarto,
mesa,
sofá.
Marido bêbado.
Muge:
- Somos uns fudiiidos!...
Grunhe como um porco.
Ronca.
Irina perde o sono.
De manhã de novo vitrine:
Peixe. Caviar. Vinho.
Ю.Васильеву
Рыба. Икра. Вина.
За витриной продавщица Инна.
Вечером иная картина:
Комната,
Стол,
Диван.
Муж пьян.
Мычит:
— Мы-бля-я!..
Хрюкает, как свинья,
Храпит.
Инна не спит.
Утром снова витрина:
Рыба. Икра. Вина.
ADÃO E EVA
Adão
Torneiro-mecânico
Eva
Serralheiro modelista
Local de trabalho
Fábrica “Concrexcremento”
Local de morada
Alojamento
Barraca
Pior que a casa do Satanás
Sem água encanada
sem gás
O responsável infecção
Fechou o canto vermelho [6]
Falou
Virou a maior bagunça por lá
Ela tem falta
Ele raiva
Não têm mais onde se encontrar.
(anos 1950)
[6] Nos países soviéticos, lugar reservado, em qualquer empresa ou instituição, para atender às necessidades de doutrinação política. Na tradição ortodoxa, é local da casa destino ao ícone.
Адам и Ева
Адам
Токарь-инструментальщик
Ева
Слесарь-лекальщик
Место работы
Завод «Пеношлак»
Место жительства
Общежитье
Барак
Хуже Ада
Ни водопровода
Ни газа
Комендант зараза
Закрыл красный уголок
Заявил
Превратили в бардак
Она скучает
Он злится
Негде встречаться
Voou o verão
Chegou o outono
Na barraca apagão
Vamos nos deitar às oito.
Voou o outono,
Chegou o verão
Vamos nos deitar às oito:
Na barraca apagão.
Пролетело лето,
Наступила осень,
Нет в бараке света,
Спать ложимся в восемь.
Пролетела осень,
Наступило лето,
Спать ложимся в восемь —
Нет в бараке света.
Enforcou-se. Tudo simples.
Perdeu seu canto no serviço.
No apartamento, pandemônio:
Paletó amarfanhado,
porcelana em mil pedaços...
De repente,
som de sirenes.
Lanternas nas paredes.
Entrou um polícia possesso
e atrás dele um jaleco.
Além da janela
o asfalto a chuva refresca
e o esgoto pelo tubo
buzina
como o bronze de uma tuba...
falou o vizinho:
foi sina!
Повесился. Всё было просто.
На службе потерял он место.
В квартире кавардак:
Валяется пиджак,
Расколотый фарфор...
Вдруг
Сирены звук.
На стенке блики фар.
Вошёл милиционер ворча,
За ним халат врача.
А за окном
Асфальт умыт дождём,
И водосточная труба
Гудит
Как медная труба...
Сосед сказал:
Судьба!
Morreu na barraca aos 47.
Sem descendentes.
Num banheiro de homens foi servente.
Pra que veio ao mundo esta vivente ?
Умерла в бараке 47 лет.
Детей нет.
Работала в мужском туалете.
Для чего жила на свете?
VSEVOLOD NEKRÁSSOV
Vsevolod Nikolaevich Nekrássov nasceu em 24 de março de 1934, em Moscou. Estudou no Instituto Estatal de Pedagogia de Moscou. Estreou na literatura em 1959, na revista Sintaksis, editada em forma de samizdat. Naquela mesma edição, foram publicados poemas de Genrikh Sapgir e Igor Khólin, dos quais Nekrássov gostou imensamente, vindo a juntar a eles no grupo de Lianózovo.
Nos anos 1960, Nekrássov continuou publicado seus poemas em almanaques e revistas editadas em samizdat. Em 1966, alguns poemas de Vsevolod Nekrasov foram publicados em um jornal da antiga Tchecoslováquia. O autor do artigo foi o dramaturgo Premysl Veverka (1940-2016) que ao apresentar Nekrássov, prestou atenção na herança futurista, sobretudo de Velimir Khlébnikov, “de quem aprendeu e está aprendendo a dividir a língua, a abrir a língua, abri-la infinitamente. Nekrássov confirma que por aqui se estendem ainda possibilidades infinitas”.
Nos anos 1970, Vsevolod Nekrássov trabalhou numa editora de livros infantis. Passou a atuar na área do teatro, escrevendo críticas, com sua esposa Anna Juravliova (1938-2009).
A crítica costuma citá-lo como um dos principais nomes da Segunda Vanguarda Russa, além de fundador do conceptualismo moscovita e como um artista influenciado pela poesia concreta.
fala
madrugada
pode por assim dizer dizendo o oposto
fala fala
como ela é o que ela quiser
речь
ночью
можно так сказать иначе говоря
речь речь
как она есть чего она хочет
O cachorro late *
o vento leva
toda noite
O cachorro late *
o vento leva
* como ele late
- Vsevolov Nikolaich [1]
- Vsevolov Nikolaich
- Vsevolov Nikolaich
(o cachorro late
o vento traz
o país chama
o demo sabe)
***
[1] “Nikolaich” forma reduzida do patronímico Nikolaevich, de Vsevolod Nekrássov.
Собака лает *
Ветер носит
Всю ночь
Собака лает
Ветер носит
* как это она лает
- Всеволод Николаич
- Всеволод Николаич
- Всеволод Николаич
(собака лает
ветер носит
страна зовет
черт знает)
vivo e vejo vive
que não o povo
algo que não e naquela mesma
é principal nação nossa
vivemos*
vivo
além
*(também
mas nem tudo)
viva horrível viva incrível
mas dá pra viver*
visto isto que sImples assim
não o que é possível vida
mas pelo que precisa incrível
não pelo que precisa poemas
mas porque já de nekrássov
*(e nem dá tudo
mas nos demos bem) nem tão terrível
живу и вижу живут
что нет люди
что-то это и на той же самой
непринципиально нашей родине
живем*
живу
дальше
*(тоже
но не все)
жизнь ужасна жизнь прекрасна
но жить можно*
вроде того что тАк просто
не то что можно жизнь
но потому что нужно прекрасна
не потому что нужно стихи
а потому что уже некрасова
самому смешно
всё
*(и нельзя может не так страшно
но нам повезло)
Tu
eu
e nós dois
e um conosco rato
vivíamos
tão engraçado
ты
я
и мы с тобой
и мышь с нами
жили
смешно
saída
mais aqui em todo canto
saída *
no ar ido há ar
há
ar
há Nosso Senhor **
* saída aqui
mas tão logo nós
nos desacostumamos
saída aqui
mas cadê nós cadê vocês
** mas Nosso Senhor
aqui nos é raro
assim eu diria
Выход
да здесь везде
выход *
в воздух
воздух есть воздух
есть
воздух
есть Господь Бог **
* выход здесь
а только мы
так отвыкли
выход здесь
а где мы где вы
** а Господь Бог
у нас здесь редкость
как бы это сказать
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