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Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

SEIS SONETOS EXTEMPORÂNEOS DE CONTADOR BORGES

"A Bússola de Ulisses" por Jeannetti Priolli



A MUSA DOENTE


Morrer eu morro; mas, se és tu morrendo,

Meu cálamo bem depressa vai à míngua,

Pois não posso mais fazer da arte vida,

Nem tirar da vida meu contentamento.

 

Bem sabes que só escrevo com esmero,

Renovando a ponta do caniço ou pena

Com a pedra-pomes da orla marítima:

Sou Kallimenes, seu servidor copista.

 

Não morras ainda, peço, até que velho

E exausto deixe minha ferramenta

De ofício em teu altar e morra eu mesmo.

 

Tantas horas gastei copiando o que não

Era meu que me tornei do verso alheio

Banhado em cedro, livro, fiel guardião.


 

AS SEREIAS DE ULISSES


Cantam o que no silêncio permanece

Incógnito, presciente, e que no canto

Soa escuro, à deriva, como prece

Nos lábios imensos do mais-que-humano.

 

Mas por que esse canto é tão estranho

Se tanto encanta as orelhas de abano

De Ulisses? É que o belo em seu íntimo

Faz soar a harpa eólica do mito.

 

As que não são aves se cobrem de escamas

E as pernas escondem por baixo do rabo

De peixe para não parecer humanas,

 

Como se para transmitir seu legado

Elas tivessem que travestir o lado

Mais real humano com o inumano.



 

 

SOBRE CINZAS (PROPÉRCIO, II, XI)


Escrevam outros a teu respeito ou traço

Não deixarás. Eu é que não vou fazê-lo

Nem por decreto e muito menos por zelo:

Louvado é quem semeia um solo árido.

 

Num só leito, creia-me, o dia negro

De teu sepulcro levará junto os dotes

Todos que em tua vida tiveram empenho

E agora só perseveram na morte.

 

Com isso cada viajante que passar

Diante de teu túmulo irá dizer

Algo que é melhor esquecer do que lembrar,

 

Mas se o fizer fará a fama de teu ser

Que se valeu menos de um vintém em vida,

Dele nada mais restou que esta cinza.


 

PARAÍSO, XIV

 

O que na luz transluz como que a dissolver

Cristal no cristal, nimbo, fluorescência,

Mais do que radia: expande a vidência

Do que alumbra constelando todo o ver

 

Que ombreia e salta a treva das estrelas

Para a carne etérea: teu colo, Beatriz.

Pois embebendo o íris a luz me eleva,

Asa jubilosa de pupila, nutriz.

 

De quantos céus se estira o paraíso,

Quantas luas polidas, ensolaradas

Cabem em teu íris, corpo cristalino?

 

Se a luz da luz, iridescente sentido,

E o céu do céu saem como o som da harpa

Multicor de tuas mãos em doce trino?


 

AS AMANTES DE COURBET


Com a mão e a boca visitamos a toca

Úmida da outra como a nossa casa;

Lambemos o tapete mútuo e lavamos

Com saliva as paredes da alcova.

 

E após esmerar ladrilhos e escada,

Nos deitamos fatigadas sobre o branco

Lençol do sono: por baixo, a minha dona,

Por cima eu mesma, escrava afoita e loba.

 

Se alguma hostilidade nos desperta,

Respondemos com o enlevo do desprezo

E as pernas luminosas bem abertas:

 

Somos duas galáxias espiraladas

Muito longe dos homens e muito perto

Dos deuses girando nuas abraçadas.



 

 

A MUSA INTRIGANTE


Ofender-te? Longe de mim, por mais que me

Confundas com um ofídio, minha função é

Nobre: seria mais perfeita ainda se

Eu fosse santo; contudo não tenho pé

 

De barro, pedra-sabão, e nem defeco                                                          

Cinzas, minha querida, por isso calma!

Se eu morrer antes não terás meu espectro

Na tua cama: não, não sou dessa laia.

 

E se contigo é só oito ou oitenta,

Meios-termos são comigo e esbanjo.

Convenhamos: isso em nada te contenta.

 

Sou generoso até, mas não adivinho;

Paciência, sim, tem limites, insisto:

Posso ser Augusto, mas não sou dos Anjos.



 

 

Contador Borges, poeta, ensaísta e dramaturgo tem vários livros publicados. Seus títulos mais recentes são: O Fim da Beleza (ensaio, 2018), e Jeane Birkin no Purgatório (teatro, 2019).

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