água suja, as chagas vermelhas de Cristo, um prato de plástico amarelo com arroz, feijão e farinha sem bife e uma vela branca acesa no banheiro perfumado com alfazema. uma jangada partiu comigo da praia em direção ao mar ao som de Caymmi, não sei quem nem quantos a empurraram, deslizou pela areia molhada até imbicar levemente ao bater em uma pequena onda que se encerrava, e seguiu. uma porta fechada, de madeira bem escura e com uma placa de metal cinza com letras pretas em relevo, dessas de automóvel, escrito mãe. não consegui abrir, sequer precisei meter a mão na maçaneta redonda de plástico que fingia bronze para saber se estava destrancada, estava, eu sabia, mas não consegui abrir, não consegui entrar. Choro. uma caixa térmica de concreto para esquentar água de chuveiro cor de cimento queimado presa no teto azul despencou e se estilhaçou no chão marrom do box; um menino pelado e molhado gritou assustado e encostado na parede de azulejos rosa do lado oposto, a cara do diabo dentro de um relógio de parede no meio de um centro espírita olhou para esse menino e disse: vá embora. a vela de tecido cru da jangada balançou ao vento em meio ao céu violáceo com um nublado mais roxo, tom irritado aceso por fios entrelaçados de raios azulados sem trovões, raiva assustadoramente silenciosa, fúria doce, paisagem épica e solene. o vento soprou forte, mas mexeu apenas de leve na vela e fora da arrebentação provocou ondinhas contínuas que não alteravam o curso das embarcações, ondas que nem puxavam, nem empurravam, o vento não comprometia a viagem e como tudo ao redor mostrou-se forte sem ferir, a jangada singrou mar adentro. o arroz com feijão endureceu com a farinha de mesa, a porta com placa de mãe enrolou bolinhos com a mão, é só o que tem para hoje, não dá para desperdiçar, disse. não consegui abri-la, não consegui entrar. as chagas de Cristo apareceram em uma igreja, sozinhas, sem Cristo, só as chagas. mais vermelhas. Choro. panelas podres em cima da pia da cozinha, um protesto silencioso, a água suja e escura dentro delas misturou restos de feijão com o café frio que sobrou da manhã. uma tia chegou para prestar socorro. a porta com placa de mãe não tinha rodo vedador na parte de baixo e por um pequeno vão de um dedo entre ela e o chão, fronteira por onde baratas passavam, deu para ver uma luz branca. não consegui abrir, não consegui entrar.
mar escuro como caldo ralo de feijão preto, mas escuro afável. a jangada parou em um ponto de onde não tive mais noção de qual direção partiu, só vi mar e céu quase roxo com relâmpagos azuis. sem tocá-la, senti a água quente, o sal acolhia e convidava, o cenário inóspito e distante abraçava, o que se encontrava lá embaixo simulava cheiro e calor de útero. as chagas de Cristo sangraram. a água suja das panelas em cima da pia coagulou em vermelho-escuro quase preto. o menino sobre os ombros do pai sentiu a fumaça do gás lacrimogêneo, os bolinhos de arroz com feijão e farinha bafejaram o fedor de cigarro do centro espírita e o perfume de alfazema se dissipou no banheiro, que passou a ter cheiro e gosto salgado de mar. outras jangadas deixaram a praia, todas comigo, não sei quantas, não vi mais a praia, apenas sei. Choro.
o mar convidou a entrar, voz suave e de afeto, da jangada percebi que a vela acesa do banheiro acenou lá de baixo. não deu para ver, enxerguei apenas um vulto de luz no fundo a me desenhar a memória, desconheço quão fundo, mas tratava-se da vela. o cheiro amargo do cigarro lacrimejou os olhos do menino aturdido em cima do ombro do pai. o pai tinha o rosto do diabo do relógio do centro espírita. finalmente, meti a mão na maçaneta da porta, estava realmente destrancada e não abri, não consegui abrir nem consegui entrar. a placa de mãe na porta virou de cabeça para baixo e surgiram um monte de outras portas de madeira escura em um corredor ad infinitum, estas sem placas, umas ao lado das outras, todas destrancadas, porém fechadas. da jangada, senti cheiro de bife à milanesa, mas não vinha da cozinha, os bolinhos de arroz com feijão e farinha boiaram no sangue coagulado formado na água suja dentro das panelas. a tia com perfume de alfazema tocou o interfone, e então decidi mergulhar. Choro, dessa vez sobre as chagas de Cristo em cima do relógio do diabo.
O nome do menino é Carino. O meu também, mas não somos um. Na verdade, preciso mergulhar para encontrar esse menino e saber quem realmente é, para resgatá-lo daquele box gelado, repleto de pedaços de uma caixa de concreto despencada de repente, enrolá-lo em uma toalha, aquecê-lo com a minha vela, lavar aquelas panelas e servir arroz, feijão e bife. Não, a vela do banheiro não é minha, herdei da porta com placa de mãe que ainda não abro, mas que consegue indicar onde estão as chagas de Cristo, que sangram e coagulam todos os dias, ora na igreja, ora no banheiro, ora nas panelas da pia da cozinha. Yolanda perguntou por que o Choro e não respondi. Insisti apenas que precisava mergulhar naquele mar escuro e quente para tirar o relógio da parede do centro espírita e, quem sabe, apagar a cara de diabo do pai que carregava o menino nos ombros e o sufocava com o cheiro de cigarro lacrimogêneo. O mar não te cobra essa viagem, nem a porta que seja aberta, disse ela.
no mar quente, 17 de novembro de 1978, sobre a jangada, 15 de dezembro de 2019. não muito fundo, o menino testemunhou o pai de pé com o peito estufado feito galo de rinha gritar enfurecidamente por quase dez minutos para a porta com placa de mãe, com os olhos de guerra e o nariz que expirava cólera embicado em posição de ataque, quase encostado nela. o garoto encolheu, quase sumiu sentado no sofá, contorcido pela impotência, acuado e sufocado com o cheiro do cigarro lacrimogêneo largado em um cinzeiro sobre a mesa de jantar e cuja fumaça tornou ainda mais turva a cena. o medo maior, pavor para ser preciso, era o pai passar por aquela porta, sabia como abri-la, sempre teve medo de que a porta com placa de mãe fosse espancada por aqueles gritos do outro lado desconhecido. a situação piorou quando a boca da fera, além dos grunhidos insuportáveis e assustadores passou a atirar cuspes empedrados. um deles, ao bater na madeira, estilhaçou-se como bomba de fragmentação, espalhou-se por todos os cantos da sala e vários desses pedaços o atingiram no tronco e nos braços, imprimiram em seus olhos dois traços de pavor e roxearam sua pele fina, feridas intumescidas quase da mesma cor do céu repleto de raios. sobre a porta com placa de mãe, não tinha como saber em que estado se encontrava do outro lado, mas foi possível ver os machucados igualmente roxos na madeira escura e na maçaneta que perdeu todo o resto do bronze, descascada pela tristeza. no vão por onde cruzavam as baratas, brotou o sangue coagulado das chagas de Cristo e do outro lado só vi vermelho.
Sobre a jangada, uma boca torta e dormente implorou por ajuda. A sensação súbita de descontrole do próprio corpo-templo, igreja adulta das chagas e das velas, proclamou de forma enganosa, porém incontrolável, a possibilidade de morte iminente. A um homem supostamente saudável de 40 anos, tresmalhado de seu rebanho, repleto de vazios e de transbordamentos, coube na repentina enxurrada de pensamentos negativos de origem desconhecida e sem barragem toda a dor existencial de uma finitude abrupta simulada, traduzida no prontuário do hospital após quatro horas em uma UTI e oito exames como pânico. Naquele mesmo dia, chegou Yolanda.
a tia entrou, aproximou-se da pia de mármore preto, tirou um bife à milanesa de uma sacola de papel azul-royal com girassóis amarelos e o pôs dentro da panela inox e enferrujada com a água suja misturada ao sangue coagulado das chagas de Cristo, e o sangue deixou de ser de Cristo e passou a ser de Ephialtes. voltou à sala do pequeno conjugado, sentou-se no sofá onde o menino coalhado de marcas roxas se encolheu e se anulou, e da sacola começou a retirar pedras parecidas com as do pai, ao mesmo tempo em que outras foram cuspidas ali mesmo de sua boca enrugada e desvirtuosa, formaram-se a partir de salivas fedorentas misturadas a verbos sujos que caíram endurecidos no estofado. as que retirou da sacola foram ruminadas e cuspidas previamente. arrumou-as em fila sobre o estampado florido em tons de verde-musgo, turvo de sujeira e manchado com cinzas do cigarro lacrimogêneo, e em seguida, convulsionada pelo ódio, atirou-as uma a uma com força crescente contra a porta com placa de mãe. atirou e uivou a cada ataque, e soltou fogo e fumaça pela boca, e gozou, gozo maléfico que manchou seu vestido de mesma estampa da sacola, azul-royal com girassóis amarelos, com pus amarelado e manchas catarrentas verde-escuro. parte da madeira austera abriu-se em lascas ainda mais escuras a expor nervos pulsantes de dor. o pai também se sentou saciado, exausto pela fúria e alimentado pela cena.
no céu violáceo sobre a jangada surgiram aviões coloridos, teco-tecos em tons cítricos, cinco ao todo - laranja, limão, piscina, mostarda e melancia, juntos em um sobrevoo em V. amigos e amigas da vida, ex-amores e colegas do trabalho, não pilotavam, eram os próprios teco-tecos. não deveriam aparecer, não tinham permissão de voo nem o mapa com as coordenadas. aproximaram-se em rasantes sincronizados, indiferentes aos raios reluzentes e entrelaçados e arremessaram pedras, as mesmas da bolsa da tia e dos cuspes que nasceram de sua boca enrugada, só que maiores, enormes. muitas. o mar se agitou com elas, a jangada balançou, o útero contraiu e a porta com a placa de mãe apareceu na superfície, boiou em meio ao sal diluído do mar feito feijão ralo, toda arranhada, repleta de lascas abertas como destroço de um naufrágio, sem que eu conseguisse alcançá-la. não era mais possível mergulhar ali, o chamado doce cessou ao mesmo tempo em que da água subiu como incenso um ar amargo de desconvite, um conselho para seguir imediatamente.
Não consigo me lembrar das palavras tíbias de ontem, nem das de hoje, das polvilhadas em açúcar para disfarçar o sabor aos palavrões mais ferinos e de amargos indisfarçáveis, todas bloqueadas, só posso estar doente. Recordo-me apenas das bocas e das feridas, de vagidos primitivos, de hálitos podres e de línguas espinhosas de tempos tão diferentes, que se misturam e se repetem como uma coisa só, de um passado que se renova como presente em outras pessoas nas mesmas perversidades, na mesma violência que ainda reverbera em meu rosto seco. Não me lembro das palavras, mas não consigo esquecê-las, sinto cada uma delas entre a pele e os músculos, doem a cada movimento, fisgam para me recordar que existem, dificultam meu caminhar, pressionam o peito, despertam imagens torpes, esquartejam afetos, mudam meu humor, interferem nos meus hábitos e nos meus relacionamentos, mas não me lembro delas. Você não as apagou, nem está doente, respondeu Yolanda, devem ter sido guardadas em algum canto, até mesmo do outro lado da porta com a placa de mãe que você diz que não consegue abrir. Menino, eu vou navegar até encontrar você-comigo-você, desviei.
luz bonita de se ver, o reflexo dos fios de raios entrelaçados e azulados no feijão ralo das ondas. virei a vela inúmeras vezes a pedido do vento e segui por léguas com a convicção de um jangadeiro sem rumo, porém não perdido, pois aquele mar também era eu. mar que carregava o mistério do tempo e de seus cálculos, vidas e palavras cifradas em seu sal, canções de terror para ninar e canções de ninar aterrorizantes em seu interior. disseram as águas que me conduziriam a lugares acolhedores ao mergulho, mas que também reservavam armadilhas e miragens em regiões onde o Sol fora esquecido. não muito tempo após o alerta, avistei amontoados rochosos sobre o espelho d´água, dezenas deles como ilhas sem vida espalhadas por todas as direções até onde a vista alcançava. sombriamente cinzentas com manchas negras disformes espalhadas por todos os lados, amontoados como mosaicos de pedras desordenadas, repletos de pontas finas que não escondiam suas intenções escrotas sobre a minha carne. exalavam fumaça com um odor forte, repulsivo e ao mesmo tempo atraente de cigarro barato, simulavam vulcões prestes a desabarem e a desabafarem em magmas furiosos e incontornáveis. pelas frinchas entre as rochas, via-se um vermelho aceso e em alerta, brasa incandescente e provisoriamente contida. ao fixar os olhos naquelas erupções congestionadas, algo disse em mim não se tratar de ilhas, mas de enormes pontas como as dos icebergs, pontas de gigantescas montanhas de cuspes endurecidos e submersos que desciam não sei até quão fundo, mas que flutuavam sem a base de um chão seguro. falsos portos de relevos não desbravados e em desassossego, de sinuosidades hostis e com superfícies dedicadas à queda de quem se atrevesse a pisá-las.
desaconselhado e despreparado para ancorar perto delas, a explorar suas trilhas fantasmagóricas, tomou-me um medo avassalador de entrar e prender-me em uma de suas órbitas e de não conseguir escapar por efeito de uma gravidade desconhecida, de inebriar-me com aquele odor repulsivo e de tê-las como única referência, ainda que ilusória, de terra à vista; de bater ou encalhar em uma daquelas pontas duras e venenosas e tornar-me um náufrago de mim, asfixiado pela fumaça tóxica em uma viagem interrompida ainda em sua gênese. medo que nem os largos espaços de mar entre elas para seguir adiante sem sustos foram capazes de me tranquilizar. ao tentar acertar o rumo da jangada e escapar daquela paisagem de escarros, lembrei-me dos jogos de boliche na adolescência. toda vez que fixava na cabeça a ideia de que ao lançar uma bola não acertaria sequer um pino, mesmo com todos os sete perfilados ocupando quase todo o espaço da pista, contrariava a probabilística e a física de uma só vez e conseguia o feito impressionante de fazê-la escapar por qualquer pequena fresta e desaparecer ao fundo sem derrubar nem mesmo um. por isso, apesar daqueles espaços tão largos para seguir, tomou-me a certeza desesperada de um strike reverso, do fracasso autoprofetizado e cumprido na tentativa de escape. aqueles amontoados me perdiam o comando, dissipavam minha força de repulsa e abaixavam minhas pálpebras como se indicassem quem manda e quem obedece. um cheiro que fazia mal, corroía as narinas, mas que dizia vem. a vela da jangada insistia em mirar sempre na direção de um deles, nos relampejos de autonomia eu virava para uma passagem livre, mas sua rebeldia desviava e apontava para outro amontoado, uma luta de poucos minutos com o amargo de horas, um hiato de tempo esgaçado o suficiente para me derrotar em algum momento.
o mar, contudo, interveio. no meio de uma agonia infinita comprimida entre os limites do meu interior e a vastidão daquela região, emergiram no espelho d´água enormes favos de baunilha cor de abóbora, cada um com pelo menos meio metro de comprimento. apareceram, não sei de quão fundo chegaram, e ao boiarem exalaram por todo canto um cheiro forte e doce de bolo no forno, massa quase pronta com as casquinhas laterais bem crocantes, cheiro de cozinha com algo bom para comer, aroma de afeto e proteção, e que abraçou e acolheu, aqueceu e apascentou o espírito que navegava em agonia. quebrou o acalanto maldito e dissipou completamente o fedor de cigarro das rochas que inebriava a mim e a jangada e me errava o caminho. a vela voltou a me obedecer sem resistência, e, para facilitar ainda aquela fuga premente e necessária, os favos formaram uma trilha sobre o mar, indicaram com seus contornos um caminho seguro para que pudesse deixar as pontas para trás, pelo menos naquele momento, caminho que segui. pouco tempo depois, voltei a ver apenas mar e céu para onde quer que olhasse, e a sentir o vento leve que voltou a soprar a direção.
A fúria do pai sobre a porta com placa de mãe e sobre o menino quase sempre se fiava em sua aposentadoria magra e compulsória por invalidez como pretexto. A aposentadoria o proibiu de lançar, como por anos fez, gás lacrimogêneo contra as multidões a mando do governador biônico e do presidente militar, e foi a partir de então que a fumaça do cigarro começou a irritar os olhos do menino e a fazê-lo chorar com mais frequência, fumaça lacrimogênea para compensar o gás aposentado. Três maços e meio de cigarros por dia, esbaforidos em um conjugado em que a única janela permanecia quase todo o tempo fechada por causa do barulho insuportável da rua e da poluição. E você lembra que doença o pai tinha? perguntou Yolanda.
Doença estranha e mal contada a que resultou no afastamento do trabalho. Lá do outro lado da porta com a placa de mãe, a voz que veio dela disse algumas vezes para o menino que o pai sofria de disritmia cerebral. Rótulo genérico para uma infinidade de desordens psiquiátricas, mas para a maldade também. Você não sabe que seu pai é nervoso, que tem problema?, ouviu o menino um sem-fim de vezes da porta, quase sempre após um ato de fúria. Frase que tinha o objetivo de acalmar, mas, especialmente de interromper seu choro o quanto antes, chorar sempre parecia perigoso. Mesmo toda lascada e arranhada, a porta insistia em justificar o injustificável. E você lembra o que o pai dizia para fazer a porta com placa de mãe querer interromper o choro do menino? Não me lembro de nada do que o pai dizia.
Depois que o menino nasceu, com frequência o pai sumia e passava dias fora de casa, paradeiro desconhecido, não se apresentava para o plantão no trabalho e a porta se desesperava, dizia que ele caíra na esbórnia e gastara o salário todo, que faltaria comida e a luz seria cortada, que o aluguel atrasaria e viria uma ordem de despejo, e então chamava a tia. Você não sabe que seu marido é nervoso, que tem problema? ouviu a porta com placa de mãe infinitas vezes da tia, e o objetivo também era conter o choro, só que por maldade. O menino gostava quando o pai sumia e lamentava por dentro quando ele voltava, geralmente sem banho, com sujeira de rua e de hipocrisia, pois as voltas com trejeitos calmos, voz arrependida e olhar vitimizado e simulado, geralmente fixo para o nada, em pouco tempo se convertiam em mais fúria. Você lembra se o pai batia no menino, se batia na porta? Bater com a mão, com cinto ou coisa assim? Nunca, não precisava, mas mesmo assim espancava.
A tia usou de influência na Polícia Militar para converter a demissão quase certa do pai em aposentadoria por invalidez, mas o salário cortado em um terço pelo governo deixou de ser o suficiente para a comida, e em pouco tempo, além do bife, começou a faltar até arroz, feijão e farinha. A porta com placa de mãe, cada vez mais arranhada, precisou num sábado de dispensa vazia apelar para o fiado na quitanda perto de casa, escondida do pai, porque ele adorava contar vantagem e posar de bem-sucedido para os amigos e vizinhos, e família com dinheiro não precisa de fiado. Mas a porta precisava pelo menos de um quilo de cada para fazer bolinho de arroz, feijão e farinha para o menino, único jeito de convencê-lo a comer sem carne. O pai descobriu a compra porque era amigo do dono da quitanda, que não entendeu o motivo de uma porta com um marido tão respeitado e bem-sucedido comprar três quilinhos no fiado. Humilhado por só conseguir lançar cigarros contra a multidão e fumaça contra o menino, e por se passar como mentiroso com o dono da quitanda, concluiu em suas verdades enviesadas que a porta desperdiçava demais e que o menino exigia demais, mais do que um homem de bem podia suportar, e brotou a fúria, mais uma vez. Yolanda nada comentou.
Foto: rede social do autor.
Leonardo Valente é escritor, jornalista e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor de quatro romances e uma antologia, entre eles “Apoteose” (2018), antologia finalista do Prêmio Sesc de Literatura; “O beijo da Pombagira” (2019), romance finalista do Prêmio Rio de Literatura; “Calote” (2020), romance vencedor do Prêmio Júlia Lopes de Almeida, da União Brasileira de Escritores (UBE-RJ), e “criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos” (2021), traduzido para o espanhol e publicado em Argentina, Uruguai e Chile, adaptado para o teatro e a ser publicado em Portugal em maio de 2023. “Relicário de cuspes” tem previsão de publicação no segundo semestre de 2023.
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