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Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

O SONHO DO PRÍNCIPE, DE CLAUDIO RODRIGUES

Fragmentos de romance inédito


Egon Schiele

Nasci.

Egon Schiele, Recém-nascido, 1910.

 

 

Este sou eu no corpo de meu filho. O filho que não vai nascer. Meu filho sou eu e minha mulher. Meu filho é ele mesmo e este é o seu retrato. O meu trabalho é o meu espelho. Eu retrato uma alma na carne de um recém-nascido e o chamo de meu filho. Meu filho sou eu. Meu filho é dele mesmo e é ninguém. Meu filho já morreu sem mesmo ter nascido. Retrato o desamparo de um ser ao nascer e assume seu lugar no mundo na forma de revolta, birra e teimosia. Agora eu nasço.


Na estação ferroviária de Tulln an der Donau, na Baixa Áustria, no dia 12 de junho de 1890 fui coroado pelos grandes-lábios de minha mãe ao ser expelido de seu corpo por uma contração que me fez perder os sentidos por segundos, e quando foi cortado o cordão umbilical que me unia à placenta, um fole dentro de meu corpo imediatamente puxou todo ar que podia, causando uma dor profunda que me despertou para este mundo. O áspero mundo me esperava. Bicho novo sobre a terra urrei de dor, revolta e medo por ter sido violentamente expulso da única referência que eu tinha de um centro, que se confundia comigo mesmo. Solto no espaço, dependurado pelas pernas, meu próprio grito me despertou para este tempo.


Depois, mergulhado num torpor que protegeu minha mente do exterior como um caroço dentro de um chumaço de algodão, fui colocado sobre o corpo quente de minha mãe, onde tentei saciar a fome original, sugando com avidez nos seios da mulher o alimento que me deu sustento e conforto.


Coroou minha cabeça a vagina de Jocasta. Sou rei de mim mesmo. Meu reino sou eu. Ao dividir o leito com a mulher que me pariu. Desamparado corpo, à mercê dos acontecimentos, à mercê de ser aceito entre os humanos, à mercê da história, à mercê de seu tempo, um corpo vivo à mercê dos elementos, lançado ao espaço, ele não sabe de nada, é inocente de tudo, não sobreviveria sem o amparo de outros, por isso o grito para se impor entre os seus.


Solto no espaço, o corpo recém-nascido paira sobre o planeta. Azul, vermelho, amarelo, verde, branco, preto. O planeta-mar é palco para o espetáculo do corpo do meu filho.


Vejo-me através de uma lente de aumento que me deforma e me diminui. Eu atravesso galerias assombradas até a sala de espelhos de um parque-de-diversões. O príncipe das neves me observa espantado, eu, surpreendido dentro de um quadro na parede como um espelho envelhecido de um futuro que ele em breve vai se livrar de ter.


O pintor retrata a psiquê do seu modelo ou reflete a sua própria no retrato? O artista produz autos-retratos, seja quem for submetido às suas tintas: mulheres, homens, meninos, meninas, flores, paisagens, casas. Tudo se contorce sob o escrutínio de meu labor. O que escreverão os críticos sobre meu corpo que acaba de nascer?


Egon Leon Adolf Ludwig Schiele. São muitos nomes para quem não é um príncipe. Com ele foi registrado em cartório meu nascimento, fui batizado numa igreja, fui matriculado em uma escola, e com ele será lacrado meu falecimento.


Meu pai, Adolf Schiele, era chefe da estação de Tulln, em um cruzamento ferroviário. Dividido entre, o trabalho, a família e a taberna, em 1905, quando eu fazia 15 anos de idade, o perdi por causa da sífilis.


Meu gosto pelo desenho nasceu ao ver a movimentação dos trens-de-ferro na estação, que era o meu lar. Há uma foto com um menino sorrido olhando para a câmera com um trenzinho-de-ferro nas mãos. Quando meu interesse pelo mundo tomou a forma do desenho e da pintura, meu tio materno me chamou para viver com ele em Viena, para que estudasse artes.

*

O poeta se encontra ao espelho. É um pintor. Retrata a si mesmo em uma tela do tamanho de seu torso. Sua alma sobre-humana, supra-humana, a máquina de pesadelos. O poeta se espanta com o que vê. O poema arma sua teia. O pintor espelha o seu ego. Sabe que sofre o sonho de um príncipe.


Egon Schiele, Nu masculino em pé, de costas, 1910.

 

 

Primeiro eu me apresento de costas. Minha bunda-maçã. Morda, você vai gostar! Apalpe, você vai querer! A língua eu deixo entrar, um dedo, um dado, meu corpo é todo teu. Ou será o tédio, a fruta anódina, a maçã mordida?


Um cacho de uvas são meus bagos. Os finos e secos ramos da vindima são as pernas que sustentam a fuga para o fundo do espaço virtual cuja existência é apenas tinta diluída em água sobre o papel. O corpo magro se contorce e corre como ave depenada para o fundo do espaço criado pelo próprio movimento. É um bicho assustado. O vento açula o fogo da floresta, o corpo se movimenta como quem se incendeia. E deixa o rastro de tinta para trás.


Um jogo de espelhos e eu me vejo pelas costas. Num jogo de ancas eu caminho para frente e adentro o papel. Eu desejo este corpo como se pudesse ser meu, enquanto o crio indo assim adiante. Crio o que vejo ou o meu desejo?


O poeta ao espelho sonha o príncipe que o entrevê com surpresa em uma extensa galeria. Ambos se tocam, mas não como os cegos que tateiam um elefante, mas com a certeza de que a sensação do toque das mãos que apalpam o animal não basta para que este compreenda o que é um cego.


Tento ver a minha nuca, porém vejo apenas o reflexo ao espelho e a aquarela no papel sobre o cavalete à minha frente. Não pinto o que vejo, mas como esteticamente almejo. Não sou eu nem o que eu sinto, é um desejo que realizo dentro de um projeto. A pintura não é o resultado, mas um processo, já disse alguém em algum lugar.


Dei para pintar a mim mesmo. A paisagem mais tórrida. Cenário e personagem, um estado de espírito, uma forma de ver, retrato de um auto tormento, masturbação, maceração, cilício, martírio de santo ou gozo de anjo encarnado em um corpo ao se arrojar no espaço ao cria-lo?

A ovelha desgarrada. Quando criança, uma pintura que representava a ovelha tresmalhada ao ser resgatada pelo Mestre me fez compreender o destino que minha cabeça me reservou. Foi quando escolhi me perder.

  


.

Para o menino, o rei se revela. O pintor cria a si mesmo aos pedaços. O príncipe do sonho tem a face de meu filho futuro. O fruto, no ventre, morrerá.

 

*


Egon Schiele, Autorretrato com braço retorcido para cima, 1910.



Assim me apresento diante do príncipe, sublime em minha hediondez. O sovaco parece um moscardo, as costelas quase perfuram o couro duro, o mamilo marrom sugere uma mordida, a androginia de Medusa, os cabelos são negras labaredas em forma de serpentes, os lábios afetados prometem uma fellatio, a mão provoca a torção da cabeça deslocando a face para a frente, enquanto o cotovelo se esfrega na cara do observador. Concentro todos os pecados do mundo neste olhar. Nu como se é diante de um menino, assim eu surjo dentro de seu sonho. Vivemos em um mesmo tempo e nada sabemos um do outro, mas sonhamos um com outro e ocultamente desejamos este encontro.

*


 Egon Schiele, Autorretrato, 1908.

 


O melhor modelo é o próprio corpo, se tiver coragem de o desnudar. Para se desnudar um modelo é preciso perícia. Não se quer apenas retratá-lo. A si mesmo é o modelo mais barato, é o que tiver à mão, e se paga com a própria vida.


O poeta se autorretrata. Eu caminho sobre as águas de um rio de luz para criar em uma aquarela o efeito conhecido entre os pintores como visão de minhoca que dá a sensação de que a figura na tela é um gigante. A mão se crispa voltada para traz em uma pose afetada. As nádegas formam um sulco. O púbis desnudo. A máscara no lugar do rosto tingida de vermelho. Bastos cabelos se revoltam. O conjunto forma uma figura desejável.


Tenho dezoito anos e gosto do que vejo, e me compraz me exibir. O príncipe tem seus quatro anos de vida invisível em seu palácio, escondido de seu próprio reino. Sonha, príncipe, a vida de um poeta! Sinta o espírito de seu tempo nas telas que não pode ver e preenchem as paredes de meu atelier! Exponho em tintas a minha nudez às crianças que o frequentam, motivo pelo qual, em breve conhecerei a prisão. Mas isso ainda não ocorreu. Por enquanto estou aqui diante da tela ao lado de um espelho colocado no chão. Sonha comigo o príncipe da neve. Se desnuda e posa para o meu deleite. Com os pés na água do mar levanta um de seus braços e aponta o esplendor do Sol nascente. Agora eu posso morrer.


*

O vício solitário.


 

Egon Schiele, Autorretrato se masturbando, 1911.

 


O pintor se masturba. Consigo mesmo transa o pintor. O homem com o que é seu. Desde o nascimento o pau é a marca distintiva do seu papel na preservação da espécie e seu lugar na sociedade. O pintor se diverte. À frente do espelho e da folha de papel sobre o cavalete, na aquarela expõe seu melancólico gozar.


A arte já não é a mesma. (Como era antes a arte? Antes de quê, exatamente?) Isso aplasta o menino apontando para o fim. O príncipe art-nouveau, último fruto da belle époque, segundo os termos da moda em seu tempo, é contemporâneo de uma revolução que ele ainda não percebe. Aponta para a sua cabeça o pincel lambuzado de tinta vermelha, elimina sua vida uma espátula, a ponta de um lápis, a pena de um escritor, a língua de um fagote. É preciso matar o príncipe.


*


É preciso começar a minha história. Ela começa com o amor. E o amor começa com minha irmã, Gerti.



Egon Schiele, Nu sentado (Gertrude Schiele), 1910.





Emile Zola tentaria me explicar através de uma patologia se eu fosse personagem de um de seus romances e estaria justificada minha tara na sífilis que levou meu pai à sepultura. Mas, Egon Schiele é um personagem meu. As mulheres passam pelo meu pau. Meninas e meninos se despem à minha presença ao meu pedido com a desfaçatez com que furtam carteiras dos bolsos dos burgueses no centro de Viena. Eu vejo o brilho de seus olhos enquanto posam para mim seus parcos corpos como espelhos da minha angústia. Há um príncipe indiano e um czarevich que são focos de meu interesse e formam o corpo de meu filho. O meu espelho. Minha mulher me ama como homem seu. Se despe para mim e expõe a xota vermelha como um rubi.

 


 

 

Cláudio Rodrigues da Silva nasceu na cidade de Belo Horizonte, no ano de 1956. Formado em Filosofia pela FAFICH da UFMG, fez o mestrado na FALE, da mesma universidade. Acumula alguns títulos ainda inéditos, como Lira Rude (reunião de poemas), Um Lugar na Solidão e O Jardim das Delícias (memórias), os romances, As Tentações de Antônio no Deserto e A Máquina de Escrever, e o livro de contos Vidas de Santos, uma versão moderna das Vidas medievais. Trabalha agora no romance O Sonho do Príncipe, em torno da trágica vida do czarevich Alexei (1904-1918), último herdeiro do Império Russo, e sua época, de onde foi retirado o capítulo aqui publicado.

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