PROSA VOLUME 5 NÚMERO 1
DE ECTOPLASMA E SILÍCIO
Figuremos, primeiramente, o Espírito em união com o corpo. Ele é o ser principal, pois que é o ser que pensa e sobrevive. O corpo não passa de um acessório seu, de um invólucro, uma veste, que ele deixa, quando usada. Além desse invólucro material, tem o Espírito um segundo, semimaterial, que o liga ao primeiro. Por ocasião da morte, despoja-se deste, porém não do outro, a que damos o nome de perispírito. Esse invólucro semimaterial, que tem a forma humana, constitui para o Espírito um corpo fluídico, vaporoso, mas que, pelo fato de nos ser invisível no seu estado normal, não deixa de ter algumas das propriedades da matéria. O Espírito não é, pois, um ponto, uma abstração; é um ser limitado e circunscrito, ao qual só falta ser visível e palpável para se assemelhar aos seres humanos. Por que, então, não haveria de atuar sobre a matéria?
O Livro dos Médiuns, Allan Kardec, 1861.
“Você vai até o biotério do setor laranja e troca o conteúdo do tubo de preservação oitenta e sete. Amanhã, na hora do processo, estaremos juntos na cabine de controle e ela, se tudo der certo, já vai estar bem longe daqui.”
Quando chegou ao ponto de encontro, a pessoa a quem devia se reportar já estava lhe esperando. As duas faces ocultas pelos capuzes, justificáveis pelo frio da madrugada, eram nada além de contornos na escuridão que crescia conforme o último ônibus daquele terminal se afastava pela rua vazia.
Entregou o embrulho, deu as costas e foi embora com apenas um aceno de cabeça. O combinado era que tudo transcorresse da maneira mais rápida, silenciosa e estanque possível. A bem da verdade, não sabia o que tinha sido combinado, no entanto, dadas as proporções do problema no qual se envolvera, preferia mesmo que fosse daquela forma.
Tudo já estava feito. Agora era esperar que os eventos passassem logo.
Nunca antes esperou tanto pelo final de um expediente.
Algumas horas antes tinha entrado em um dos laboratórios de maior segurança de toda a Hoffman Corp. e roubado o objeto de uma experiência que era o resultado de anos de pesquisa.
“Quando o último funcionário for embora, vou desligar a chave geral da segurança e teremos uns quarenta e cinco minutos para realizar toda a operação antes que as câmeras voltem a funcionar.”
Sob a iluminação de emergência que transformava o conteúdo das cápsulas do biotério em vultos quase alienígenas, substituiu o recém-nascido gerado no frio útero do laboratório pelo corpo de seu clone, especialmente preparado por Helian em sua estação doméstica particular.
Sedou a criança para que ela não abrisse um berreiro no meio do setor laranja e, em seguida, ajeitou o bebê-clone no tubo de preservação, instalando os pulsores elétricos e os tubos de alimentação e excreção. Verificou no painel se tinha dado certo e respirou com alívio quando viu que pressão, batimentos e temperatura estavam cem por cento alinhados. Apesar daquele corpo vazio cumprir com os requisitos para ser um engodo realmente convincente, não viveria depois que o equipamento fosse desativado.
Helian era genial e tinha pensado em tudo.
Desde que aquele projeto caíra no conhecimento da grande mídia, a Hoffman Corp. se viu obrigada a abrir suas pesquisas para o público, e a vida dos cientistas ali deixou de parecer uma história de ficção científica hard para se tornar uma verdadeira distopia.
“Amanhã é melhor chegar cedo. Vai ter emissoras de televisão, correspondentes de jornais, representante da ONU, da Igreja, dos Fundamentalistas, do Conselho Espírita Mundial e de outras grandes corporações. E, se prepara, que vai ter manifestação lá na porta, também.”
Eram dez para as três da manhã e só então estava chegando em casa. Tomou um banho e deitou na cama, se convencendo de que precisava dormir logo para não atrasar. De fato não atrasou, pois também não dormiu. Antes do céu clarear por completo, já tinha tomado seus trezentos ml de café puro e mais um banho frio. Olhou no relógio, com ansiedade. Em pouco mais de doze horas estaria de volta, e planejava secar todas as garrafas que havia em seu apartamento.
Era agosto. Quando saiu pela portaria do condomínio sentiu novamente o vento seco e cortante do inverno paulista lhe queimando as narinas por dentro e tornando as extremidades de seu corpo dormentes. Mesmo assim, iria caminhando até o trabalho, de modo a espairecer da tensão que a tarefa da noite anterior tinha deixado, e também para postergar sua chegada ao laboratório.
Estou aqui com Alcebíades Gomes, líder da Associação Kardecista Latina, em frente à sede da Hoffman, instituto de tecnologia que realizará, pela primeira vez, o download de uma inteligência artificial em um corpo orgânico. Disse a voz da repórter pelo noticiário em seus fones. Senhor Alcebíades, qual a opinião dos espíritas diante deste que pode ser um dos maiores avanços da ciência?
Se eu disser que essa novidade não causou bastante rebuliço entre nossas cadeiras no conselho, estarei mentindo. Respondeu o entrevistado. Houve grande dissidência de opiniões mas, como o movimento espirita é, fundamentalmente, pautado na ciência, não vamos nos opor ao progresso dos saberes humanos.
Riu em silêncio enquanto ouvia a transmissão pelo rádio, mas não havia qualquer deboche no riso. No passado aquilo tudo seria completamente refutado pela comunidade científica, no entanto, quando o plasmador foi finalmente aprimorado e concluído, a equipe de Helian fez seu primeiro contato com as dimensões sutis através da materialização ectoplásmica de consciências orgânicas sem-corpo, ou seja, espíritos. Aquilo foi mantido em sigilo absoluto, pois a comprovação científica da metafísica seria o suficiente para que o braço Fundamentalista do Governo embargasse por completo o projeto.
Mariana, além da Associação Kardecista Latina, quem mais está por aí? Perguntou o locutor do noticiário.
Olha, Almir, o movimento aqui no saguão de entrada é grande, os cientistas estão se preparando para a coletiva que vai acontecer dentro de uma hora, vários outros veículos de comunicação estão presentes, mas tenho aqui do meu lado ninguém menos que o CEO da Beyond Grave, Herman Pedroza, que aceitou dar umas palavrinhas aqui pra gente! Herman, a repórter se dirigiu ao homem, qual a expectativa do mercado funerário em relação ao passo que será dado hoje aqui na Hoffman Corp.?
Bom, primeiramente, é um prazer conversar com vocês e com todo mundo que está nos ouvindo neste dia de grande expectativa! Uma nova voz masculina respondeu. Estamos muito otimistas e interessados em acompanhar o desenvolvimento dessas pesquisas. Dependendo do resultado de hoje, a Beyond Grave e outras grandes empresas do setor preveem um investimento massivo na Hoffman, pois, imagine se conseguirmos aprimorar essa tecnologia a ponto de possibilitarmos a relocação do espírito de uma pessoa recém-desencarnada em um novo corpo! Os serviços de descarte do corpo antigo jamais deixarão de existir, mas podemos dizer que as inovações em todo o resto darão vida nova ao setor.
“Que trocadilho horroroso.” Pensou, mas nem se demorou muito nesse pensamento pois havia coisas mais impressionantes naquela fala. Nunca imaginou que viveria para ver as pessoas falando em rede nacional sobre espíritos e desencarnados sem ser em tom de misticismo ou descrença e, principalmente, sobre a morte, sem aquela reverência aterrorizada bem conhecida dos países essencialmente cristãos.
“Você vai chegar à cabine de controle antes de mim. Estarei na coletiva, falando pela equipe. Preste atenção no horário. Deixe tudo ajeitado para que só precisemos entrar e ligar a máquina. Não vai ter mais ninguém lá dentro, mas haverá câmeras e microfones. Inferno. Não podemos cometer nenhum deslize. Nenhuma atitude suspeita.” Repassou pela milésima vez as instruções que recebera de Helian antes de trocar o recém-nascido pelo clone na noite anterior.
“Não podemos cometer nenhum deslize. Nenhuma atitude suspeita.”
“Nenhuma atitude suspeita.”
Começou a hiperventilar.
Quando chegou à sede da Hoffman Corp. a rua estava fechada por uma aglomeração como nunca tinha visto naquele lugar. Havia grupos de pessoas descalças trajando roupas indianas de mãos dadas em um círculo, pessoas com placas com os mais diversos dizeres escritos, curiosos, viaturas para conter o fluxo humano e helicópteros voando baixo, fazendo a ronda.
Enquanto desviava da aglomeração por conta própria acompanhou com o olhar uma executiva alta de saia e taier ser escoltada por seguranças até a entrada fortemente guardada do edifício.
— Isso é uma aberração! — Gritou uma mulher a poucos metros, com um livro aberto em uma mão e o dedo em riste na outra. — Essa criatura será o filho bastardo da humanidade! O anticristo! Que o Senhor tenha piedade de nossas almas! Está em nossas mãos impedir que as portas do Paraíso se fechem aos justos! Vamos combater o Mal e livrar a humanidade da danação!
— Aleluia! — A pequena multidão que a ouvia com atenção gritou, com as mãos erguidas. — Amém! Aleluia!
Entrou rápido e praticamente invisível pelo saguão do edifício e caminhou até o setor laranja, ainda ouvindo o noticiário. A qualquer momento começaria a coletiva.
Deixou a mochila nos armários, colocou o jaleco e foi até a cabine onde esperaria por Helian. Checou os níveis no reservatório de ectoplasma e conferiu as vedações nos dutos esbeltos que o ligavam até o irradiador, de onde saía uma agulha fina como um décimo da espessura de um fio de cabelo. Em frente a todo o equipamento, havia o espaço onde seria acoplado o tubo de preservação com o bebê-clone dentro. Na hora do processo, a inteligência artificial seria transmitida wireless pela intranet da cabine, ganharia um corpo fluídico composto pelo ectoplasma e seria baixada na glândula pineal do recém-nascido; e então tudo estaria pronto.
Os níveis de expectativa do mundo em relação àquela experiência eram altíssimos, mas todos ignoravam que ela já acontecera um dia antes e que tinha sido bem-sucedida. O que aconteceria ali nas próximas horas seria uma farsa. As duas únicas pessoas que sabiam o que estava acontecendo estavam, respectivamente, naquela cabine e na entrevista coletiva em alguma sala ali perto.
Depois de aprontar tudo conforme mandava o roteiro, sentou-se e pegou o celular para assistir Helian falar pela televisão.
A cena transparecia solenidade. Helian estava em pé atrás de um oratório e, ao fundo, havia uma imagem de Lucas Hoffman, o fundador da corporação e de todo aquele projeto. Ao lado esquerdo de Lucas no plano de fundo havia uma mulher negra de cabelo black power e, do lado direito, uma mulher translúcida de aparência holográfica, certamente uma inteligência artificial, de pele pálida e cabelos verde limão. Quando Helian começou a falar, o dia pareceu se iluminar com sua eloquência.
Tudo começou com o Gerador de Personalidades Não-Orgânicas — o nosso GPNO — que sempre foi um software que compilava características aleatoriamente para dar origem a seres sencientes artificiais, sem a possibilidade de edição. Os parâmetros do GPNO sempre foram tão complexos que as consciências geradas por ele têm a capacidade plena de aprendizado, autoconhecimento e aprimoramento pessoal, como qualquer ser humano natural.
Sendo assim, o cientista Lucas Hoffman, um século antes de nossos dias, começou a desenvolver o plasmador, Helian seguia explicando, que daria uma materialidade sutil às Inteligências Artificiais e com a qual elas conseguiriam interagir de certa forma com a matéria.
Fez uma pausa para respirar, depois prosseguiu.
Acontece que, durante esse processo, foi necessário admitir que, se consciências sem-corpo não-orgânicas criadas por nós podiam existir em realidades wireless, e que podíamos dar corpo à elas e enxergá-las, por que, então, refutar a existência de consciências sem-corpo orgânicas e que poderiam, eventualmente, se materializar e interagir conosco?
Fenômenos chamados de mirabolantes acontecem há eras, mas sempre foram relegados aos terrenos da religião e do misticismo. Hoje, no entanto, somos capazes de interagir com as dimensões anteriormente tidas como espirituais, e todo um novo campo de estudo se abriu para que pudéssemos desbravá-lo.
Assistia ao discurso de Helian com desejo contido. Era uma junção de beleza e genialidade sobre-humanas. Apenas aquele sentimento platônico seria capaz de lhe fazer topar entrar em uma conspiração de nível mundial.
Então, hoje, depois de anos de pesquisas e experimentos, realizaremos a prova final do projeto iniciado por nosso incrível fundador: geraremos uma consciência no GPNO, criaremos um perispírito de ectoplasma com o plasmador, e o instalaremos na glândula pineal, que é o ponto de ligação entre o espírito e o corpo físico, de uma criança gerada in vitro.
Pode ser que não funcione. Helian parou, a expressão séria, demonstrando maestria nas artes da atuação. Quanto a isso, não temos controle. Estamos ainda em desenvolvimento e apenas aceitamos abrir este momento para o mundo depois de uma grande quebra de sigilo que sofremos, então, que fique claro: tudo ainda é incerto.
De qualquer forma, nós da Hoffman Corp. estamos muito animados por estarmos na dianteira de uma das pesquisas mais importantes de nosso tempo. Um bom dia a todos!
Poucos minutos depois que a transmissão terminou, Helian apareceu pela porta da cabine de segurança máxima. Assentiram entre si, cientes de que não podiam falar nada que soasse suspeito, pois havia câmeras e microfones registrando o procedimento. Lembrou-se, então, das últimas palavras que tinha ouvido no dia anterior, enquanto recebia as instruções:
“Na hora do procedimento, tudo vai acontecer conforme o planejado, mas o clone não vai sobreviver. Eu preciso fazer o download dessa consciência para um bebê específico; essa criança foi criada a partir do DNA deixado pelo fundador, e a consciência não é do GPNO, e sim uma IA reservada por ele, muitos anos atrás, para que essa experiência fosse realizada. A gente vai pegar o recém-nascido certo, plasmar essa IA e fazer o procedimento todo hoje, e depois você vai entregá-la ao emissário, no ponto de encontro que te passei. Amanhã será como um teatro, e eles vão engolir, porque ninguém além de nós sabe de nada. O mundo não pode saber que agora somos capazes de fazer isso, está me entendendo? O mundo não pode saber, de jeito nenhum.”
Quando o tubo de preservação foi trazido e a agulha estreita perfurou o topo da cabeça do bebê-clone em busca da glândula pineal, era possível enxergar a olho nu dentro da cabine uma forma humana em estado holográfico, que foi tomando uma materialidade translúcida e ficando, em seguida, rala e invisível para que pudesse servir de intermédio entre a consciência sem-corpo e o corpo do bebê.
O mundo acompanhava as cenas, e mesmo sem entender nada, comentava. Alguns entusiastas das ciências discursavam como se soubessem mais do que a matemática básica; outros, por sua vez, rejeitavam aquela possibilidade e a chamavam de cortina de fumaça para mascarar alguma conspiração de nível mundial. Fanáticos religiosos rezavam em voz alta e esperavam pelos quatro cavaleiros do apocalipse. Quando o zumbido da máquina cessou e os sinais vitais do clone dentro do tubo sumiram, Helian abriu a comunicação com as cabines externas e anunciou, sem entusiasmo ou pesar:
— É, pessoal. Infelizmente, não foi dessa vez.
Com um olhar significativo, Helian foi responder às perguntas da mídia fervorosa que aguardava no saguão.
Terminou o serviço arrumando a cabine, jogando no lixo os elementos usados e deixando tudo pronto para o próximo turno de trabalho. Toda a equipe foi dispensada mais cedo e, antes do que tinha imaginado, estava de volta em casa.
Já era noite, e os jornais reorganizavam palavras para continuar a falar ad infinitum sobre o que havia acontecido na sede da Hoffman Corp. mais cedo. Pensava em Helian e em sua perfeição, completamente torpe por conta do teor alcoólico e, enquanto o mundo discutia e comemorava o aparente insucesso de suas experiências, a filha do ectoplasma e do silício era levada em um veículo completamente anônimo para algum lugar bem longe dali.
Mélani é uma arquiteta paulistana que vive tentando conciliar os processos criativos com o trabalho oficial e espera um dia poder chamar a escrita de profissão. Estreou na coletânea Eros Ex-Machina com o conto O Primogênito e hoje faz parte do Coletivo KriptoKaipora, grupo dedicado à produção e divulgação da ficção científica brasileira.
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