Hélio Oiticica em foto de Marco Rodrigues, do Acervo de Pesquisa e Documentação do MAM Rio
Este trabalho é fruto da interlocução viva com a psicanalista e curadora de artes visuais Flávia Corpasa partir do projeto proposto pela sub-comissão “Intervenções” para o X Congresso Mundial de Psicanálise da AMP.
...as experiências e a invocação experimental envolvendo o corpo sempre hão de aparecer e reaparecer de novos modos: tantos quantos seriam aqueles a experimentá-las.
Hélio Oiticica[1]
A relação entre arte e a psicanálise tem gerado importantes reflexões no litoral constituído por esses dois campos. Meu interesse ao desenvolver este artigo é manter o eixo de reflexão sobre o corpo, pensando-o diretamente remetido ao fazer artístico, corpo vivo e imantado pela experiência. A investigação que ora proponho sobre a arte de Hélio Oiticica, um dos artistas mais destacados na arte contemporânea brasileira pelos aspectos constitutivos de seu trabalho desenvolvido desde o final dos anos 50, coloca o corpo em sua materialidade indissociável da linguagem que o constitui. Ponto importante a ser observado neste artigo é a presença do corpo como singularidade no mundo, que como disse Lacan[2] (1975-76) corpo que não se é, mas que se tem, uma vez que o ser de linguagem denota um afeto que não se reduz a um efeito de sentido. O artista, ao apresentar o corpo, menos do que reivindicar uma autoria sobre o que constrói, terá que inventar uma maneira de alojá-lo dentro do discurso, o que Oiticica ensina com sua obra.
Os termos cor, corpo e experiência são caros a Hélio Oiticica, sendo que cor e corpo mantém uma relação intrínseca em sua obra. A questão do corpo em sua obra se sustenta na transição do quadro para o espaço, com a depuração extrema da cor, na tomada do espaço como elemento ativo. Esse processo de subtração da cor no quadro, chegando ao branco, permitiu a ruptura total com o suporte quadro e fez com que a cor se transformasse em elemento vivo no espaço. A cor na concepção de Oiticica, como uma das dimensões da obra, é inseparável do fenômeno total da estrutura, do espaço e do tempo. E por ter desenvolvimento próprio, uma vez que não se encontra mais submetida a qualquer representação, ela tende a se corporificar, torna-se temporal, cria a sua própria estrutura, passando a ser “corpo da cor”[3]. Assim nascem os primeiros Núcleos (1960) inaugurando o fim do quadro, quando a pintura, corpo da cor, salta para o espaço, integrando-o ao tempo. Essa integração do espaço e do tempo na gênese da obra faz com que ela se introduza no espaço tridimensional. A cor escapa, neste aspecto, a seu caráter decorativo ou arquitetônico para ser vivenciada ou experimentada. Dessa concepção de estruturas-cor no espaço e no tempo nascem os Núcleos e Penetráveis.
O Núcleo consiste em uma variedade de placas de cor que se organizam no espaço tridimensional e no tempo, onde o espectador penetra em seu campo de ação, girando a sua volta. Isto permite que se perca a visão estática da obra, não a revelando em sua totalidade. O Núcleo improviso (1961) nasce da necessidade de improvisar, uma das características mais importantes da arte contemporânea, onde o contato com os elementos (cor, espaço, tempo e estrutura) é mais direto, surge como uma aspiração que se realiza, e que não comporta estudos prévios. Como indica Oiticica o Núcleo “antes de ser dinamização da cor é a sua duração no espaço e tempo”[4], e por realizar aspirações indeterminadas, não poderia ser expresso pela palavra escrita e oral ou por qualquer outro recurso plástico.
Nos Penetráveis (1960), diferentemente dos Núcleos, a relação entre o espectador e a estrutura-cor se dá em uma integração completa, uma vez que o primeiro é colocado, virtualmente, no centro da segunda. A cor, na obra Penetrável se desenvolve em planos verticais e horizontais, no chão e no teto, permitindo ao espectador, ao penetrá-la com o seu corpo, valorizar todos os recantos, e assim apreender o “vazio” que se insinua na obra, transformando-se em “descobridor da obra”. Para Oiticica a criação do Penetrável lhe permitiu a invenção de projetos, que são conjuntos de Penetráveis, entremeados de outras obras incluindo o aspecto verbal (poemas). Esses projetos realizados através de maquetes, construídos ao ar livre, em forma de jardins abrem um campo inexplorado na arte do corpo em relação ao espaço da cor, eliminando a relação até então por ele contida na arte.
Os Bólides (1963), obras que foram desenvolvidas logo a seguir, chamados também de Transobjetos, levaram o artista às mais inesperadas consequências na busca de dar a cor uma nova estrutura, ou seja, dar-lhe corpo. A cor, nesses trabalhos, aparece em seu estado pigmentar contida na própria estrutura do Bólide, e não se resume, meramente em situar o objeto fora do cotidiano, mas incorporá-lo a uma ideia, fazendo-o parte da gênese da obra. Dessa forma o objeto, que já existia como tal, ao mesmo tempo em que visa uma ideia universal, não perde o seu caráter singular, de estrutura. Diferentemente das obras anteriores, onde a relação do sujeito-objeto se dá de forma mais serena, como afirma Oiticica, onde há “a vontade de objetivar uma concepção estrutural subjetiva”[5], nos Transobjetos observa-se, nitidamente, uma oposição entre sujeito-objeto. Entretanto, segundo Oiticica, neles há a identificação do sujeito com o objeto, identificação necessária à estrutura da obra, uma vez que o objeto não foi achado ao acaso, mas sim fez parte de uma procura obstinada do artista.
Alguns bólides permitem ao espectador entrar em contato com diversos materiais, tais como água, areia, cola, etc, e não se apresentam amarrados à própria estrutura de objeto, mas realizam a transposição de sua condição de “coisa” para a de “elemento da obra”[6].
Nascida da criação dos Penetráveis, Núcleos e Bólides, a experiência chamada por Oiticica de Parangolé (1964) marca um ponto crucial e definitivo no desenvolvimento de sua obra. Parangolé, expressão inominável, um achado encontrado na rua por Oiticica, traz em si, como palavra-resíduo, efeitos de lalangue[7], ou seja, de afetos ligados ao corpo e que restam enigmáticos. Antes de sua morte, em 1980, Oiticica em uma entrevista a Jorge Guinle Filho relata:
“Um dia eu estava indo de ônibus e na praça da Bandeira havia um mendigo que fez assim uma espécie de coisa mais linda do mundo: uma espécie de construção. No dia seguinte já havia desaparecido. Eram quatro postes, estacas de madeira de uns 2 metros de altura, que ele fez como se fossem vértices de retângulo no chão. Era um terreno baldio, com um matinho e tinha essa clareira que o cara estacou e botou as paredes feitas de barbante de cima a baixo. Bem feitíssimo. E havia um pedaço de aniagem pregado num desses barbantes, que dizia: “aqui é...”, e a única coisa que eu entendi, que estava escrito era a palavra parangolé. Aí eu disse:” É essa a palavra”[8].
O Parangolé, obra nascida fora de uma formulação conceitual é a anti-arte, por excelência, como a nomeia Oiticica, na medida em que implica a “apropriação” das coisas do mundo, dos detritos com que se depara nas ruas, nos terrenos baldios. Esses detritos-coisas que não seriam transportáveis, “coisas que se veem todos os dias, mas as quais jamais pensamos procurar”[9] fazem uma brutal ruptura com o conceito de museu, com a galeria de arte, etc. Oiticica leva assim às últimas consequências a ideia de que o museu é o mundo, como experiência cotidiana da arte. Essa concepção da obra de arte inclui o que Oiticica considera como seu sonho secreto - a ideia de “obra como perdida, solta displicentemente, para ser achada pelos passantes, ficantes, e descuidistas...- Essa é a concepção ideal de uma obra para Oiticica, que exclama: - como fazem falta aos parques! – e acrescenta: - são uma espécie de alívio: servem para passar o tempo, para malandrear, para amar, para cagar, etc”[10]
Essa experiência residual da arte de Oiticica nos aproxima da concepção lacaniana de acontecimento. É por essa via que tomamos a relação do corpo como acontecimento. Trata-se do corpo marcado por acontecimentos discursivos que o afetam, o perturbam e que se caracterizam por uma ruptura ou transição no curso do que o sucede por seu caráter efêmero. Em um sentido amplo, acontecimento é tudo o que possui caráter pouco comum, singular. A concepção de acontecimento destacada por Lacan implica o entrelaçamento do corpo com a linguagem, o que coloca o acontecimento como signo do real[11]. É pelo fato de que o corpo fala que há, por excelência, acontecimento humano. O fato dos seres humanos serem seres falantes, o que implica que a linguagem seja um substrato material, faz com que o corpo não seja somente manifestação orgânica, mas sim o lugar dos ditos, das ficções, dos relatos, das imagens, da experiência, dos gozos, dos sentidos. Quando situo o enlace do corpo com a linguagem é para assinalar que aí reside uma corporeidade enodada pelo simbólico, mas também pelo imaginário e o real. É nessa perspectiva que tomo a arte de Oiticica como uma experiência do real em que o corpo comparece na dimensão do vivo, afetado pela linguagem.
O Parangolé, ao introduzir a ideia de capa, posterior à do estandarte, consolida a relação do espectador com a obra. Ao vestir a capa, que se constitui de camadas de cores que se revelam à medida que o corpo se movimenta, dançando ou correndo, o espectador mantém com a obra uma participação direta com o seu corpo. A obra além de revestir o corpo solicita que o corpo se movimente. Essa participação requer um ciclo, assistir e vestir a obra, o que significa que ela não só está situada em relação ao espaço e tempo, como é vivida como um acontecimento. Isto levou Oiticica a localizar o espectador como participador, uma vez que ele está implicado em um saber incorporado à obra a partir desses elementos. O participador na medida em que incorpora a obra, sufixo que significa inclusão, faz com que o saber passe pelo corpo e o afete. Isto supõe o afeto como acontecimento de corpo. Essa operação J. A. Miller chamou de corporização[12], função diferente da significantização, uma vez que o saber no corpo, seu efeito próprio é afeto, como definiu Lacan[13] no seminário 20, o que implica em não ser marcado pelos efeitos de verdade do significante, mas por seus efeitos de gozo.
O Parangolé revela, de acordo com Oiticica, o caráter importante de “estrutura ambiental” possuindo um núcleo principal: o participador-obra que se desdobra em “participador” quando assiste, e “obra” quando assistida de fora neste espaço-tempo- ambiental. O participador-obra ao se relacionar em um determinado espaço cria um “sistema ambiental”- parangolé, que poderá ser assistido por outros participadores de fora. Em uma entrevista para Ivan Cardoso, em 1979, Oiticica diferencia o parangolé de um mero suporte para o corpo na obra, ao situá-lo como sendo a “incorporação do corpo na obra e da obra no corpo”[14]. Esta particularidade inerente à obra foi nomeada por Oiticica como “vivência - total parangolé”. Nesse ponto, para finalizar, interrogo se o que o artista chamou de “vivência-total parangolé” acionada pela incorporação do corpo na obra e da obra no corpo, não seria efeito da “corporização”, que possibilita que o gozo circule a partir da dialética do sujeito e do Outro, fazendo com que o sujeito receba sua própria mensagem de forma invertida - isto é, seu próprio gozo sob a forma do gozo do Outro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Guinle Filho, Jorge. A última entrevista. Hélio Oiticica (Encontros). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
Lacan, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
Lacan, J. O Seminário, livro 21: Le non-dupes errent, inédito.
Lacan, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-6). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
Miller, J. A. Biología Lacaniana y acontecimento del cuerpo. Buenos Aires: Colección Diva, 2002.
Oiticica, H – Hélio Oiticica - museu é o mundo. Organização: Hélio Oiticica Filho. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.
Projeto Hélio Oiticica. Hélio Oiticica: A Pintura depois do quadro – projeto editorial, Silvia Roesler; organização por Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: Silvia Roesler Edições de Arte, 2008.
Rivera, T. Hélio Oiticica e a arquitetura do sujeito. Niterói; Editora da UFF, 2012.
Fátima Pinheiro é gaúcha e vive no Rio de Janeiro. É autora do livro sim, é (Blanche/PR- 2020). Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, coordena na EBP – Seção/Rio o Seminário “Sinthoma e Corpo: variações e invenções”. De 2012 a 2019, foi responsável pela coluna In Situ, de ensaios e entrevistas, no blog da Subversos Editora/RJ. Tem poemas publicados na Zunái (2020), Mallarmagens – revista de poesia & arte contemporânea (2019) Macabéa Edições (2020), Ermira Cultura ( 2021) e Ruído Manifesto (2021). Seu texto “Flor d’água” está na coletânea do livro Feminino Manifesto, da Nau editora - RJ (2021). Atualmente é coordenadora da Rede de Psicanálise e Literatura - EBP/ Fapol ( Federação Americana de Psicanálise da Orientação Lacaniana).
Notas:
[1] Hélio Oiticica - museu é o mundo. Organização: Hélio Oiticica Filho. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. Pág. 183. [2] Lacan, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-76). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 150. [3] Hélio Oiticica - museu é o mundo. Organização: Hélio Oiticica Filho. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. Pág. 43 [4] Ibidem, pág 62. [5] Ibidem, pág. 73. [6] Ibidem, p. 73. [7] Lacan, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, pág.190. [8] Guinle Filho, Jorge. A última entrevista. Hélio Oiticica (Encontros). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p.269. [9] Hélio Oiticica - museu é o mundo. Organização: Hélio Oiticica Filho. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, pág. 91. [10] Ibidem, pág. 90 [11] Lacan, J. O Seminário, livro 21: Le non-dupes errent, inédito. [12] Miller, J. A. Biología Lacaniana y acontecimento del cuerpo. Buenos Aires: Colección Diva, 2002, pág. 99. [13] Lacan, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, pág.35. [14] Projeto Hélio Oiticica. Hélio Oiticica: A Pintura depois do quadro – projeto editorial, Silvia Roesler; organização por Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: Silvia Roesler Edições de Arte, 2008, p.32.
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