POESIA VOLUME 5 NÚMERO 2
NÃO HÁ
não, não há vida após a morte:
só há paisagens mudas do mar,
talvez um feixe de magnólias atirado às ondas,
talvez a palavra “zarpa” – forçada a fugir –
para inverter a boca de quem fala.
não, não há vida após a morte:
o sol não mais ilumina,
porque o antúrio passa a ser
o silêncio natural de todas as plantas,
porque não se pode sair das plantas
por meio das plantas.
não se pode sair debaixo de um céu antigo
por meio do céu.
não, não há vida após a morte,
porque não se pode sair da vida
1 minuto antes da morte.
NEGRA
o que acontece quando temos que tomar o incenso
de anis e respirar com as pupilas aguadas?
aquilo que tu olhas não te vê, só o pulmão pressente
a luz que respiras. afogada, so what?, no quarto,
pelo jazz de miles davis escuto,
com uma flor no fundo da cabeça,
a matéria radiosa de sua agonia.
uma flor no fundo da cabeça a celebrar
a altura do sax.
uma flor no fundo da cabeça a engolir
a água profunda.
tanta sombra a recalcitrar cool
a
brisa deitada pela noite
ininterrupta
negra
negra
negra
CAFÉ E CEREJA
na primeira hora da manhã,
acompanho a névoa do café sair pela janela.
ela se move e, distraída,
sinto seu fulgor repentino
colar na minha retina.
o sumo do café lambuza minha boca,
borrada pela névoa que flutua ao acaso.
ela nem sabe que a poesia, em fogo e cinzas,
se esconde no gole que o sentido não alcança:
puro ensaio sobre o absurdo que tateio.
CORPO ABERTO
fechei os olhos e deixei meus braços soltos:
minhas mãos eram azuis ao meio-dia.
me senti um peixe-voador,
sim, só as palavras podem imitar peixes-voadores.
no meio da piscina
– ali na profundeza onde as palavras não alcançam –
fui fundo e precisei, como náufrago,
agarrar o silêncio pelos cabelos.
JANIS JOPLIN, O PRAZER É MEU
na piscina do hotel belvedere, janis joplin:
grãos de água, objetos ilusórios, uma porta aberta.
em seus cabelos quase loucos um favo de mel.
com as mãos em concha no ouvido,
ela avança no hall de olhos fechados,
passa alguém com chapéu de chuva:
um equilibrista azul nada na piscina.
no silêncio bizarro da boca de janis,
irrompe a manhã inteira
UM POEMA
este poema não quer ser escrito:
a ordem é destruir regras óbvias.
a percussão das vogais aprofunda
os dias que inauguram a escuta:
a coisa regressa de si mesma,
arranha a breve nesga de vazio.
a chama, na sombra das horas,
não sabe como reacender sua fome.
Fátima Pinheiro: psicanalista, poeta, ensaísta e artista visual. É gaúcha e vive no Rio de Janeiro. Possui doutorado em Psicanálise (UERJ) e coordena o “Seminário Sinthoma e Corpo: variações e invenções”, na Escola Brasileira de Psicanálise/ RJ. Publicou ensaios, artigos, entrevistas em revistas e livros nacionais e internacionais no âmbito da psicanálise e da arte. Seu livro "sim, é", (no prelo), será lançado pela editora Blanche em março de 2020.
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