Apresentação, seleção e tradução de Francis Kurkievicz*
Mili Das
“A Poesia leva ao que há de mais singular em cada língua
e desafia a experiência da tradução”.
Patrícia Levelle
Há muitos anos me interesso pela literatura asiática, sobretudo a indiana e a japonesa. Foi num desses passeios virtuais que conheci a poeta bengalesa Mili Das (que, no final de tudo, é quem inspirou a seleta: A Poesia Feminina da Índia). Na verdade ela me procurou depois de eu publicar um poema meu em PT/EM no perfil de uma rede social que congrega poetas do mundo todo. A partir deste primeiro contato fui conhecer a poesia dela: foi amor à primeira leitura. No ano passado ela me solicitou um comentário sobre um livro que publicaria na Romênia, em inglês. Envolvi-me tanto com o texto dela para escrever aquele comentário que algo mudou dentro de mim. Intensifiquei as minhas leituras e pesquisas sobre a poesia indiana, com foco mais em Bengala Ocidental, o estado onde Mili Das nasceu e vive. Aqui está uma pequena porcentagem de tudo que li e traduzi naquela época. odemos aqui no Brasil, agora, apreciar a sensibilidade das letras de Mili Das cantada na melodiosa língua bengalesa. Podemos daqui do Brasil, se sensibilizar com as tribulações da mulher indiana. Podemos ler nas entrelinhas dos poemas de Mili Das, um pedido de socorro, um anseio de liberdade, uma feroz vontade de viver a plenitude do amor e da poesia, um anelo por purificar a alma dos sonhos derrotados e frustrados. Podemos perceber ainda, uma raiva dirigida contra os preconceitos ancestrais, contra a mecânica hierárquica das relações, contra as exigências de um mundo corrompido. Poderíamos dizer de outras situações silenciadas nas pausas entre os versos, na dinâmica repetitiva das expressões, na fragmentação sutil das frases, que indicam perigos agindo em silêncio.
Aqui nesses poemas, na singeleza de sua linguagem, vamos encontrar emoções profundas e densas, sentimentos contrastantes, abismos na alma. Vamos encontrar também todas as fraquezas que fazem do humano, demasiado humano. Mas encontraremos, sem dúvida, a força de superação. Veremos em cada poema, uma quantidade de temas tecendo vestidos que jamais poderão ser usados novamente ou usados por outra pessoa. Cada poema exige uma ocasião especial, requer um leitor atento. Um leitor que saiba ler a linguagem das entrelinhas, dos silêncios e pausas de cada verso. Não há como fugir da emoção e do espanto de viver (e nem de seus sofrimentos). Cada pessoa é responsável pelo seu universo interior e o que faz deste universo é a chave para a vida inteira: há quem faça dessa experiência ressentimentos que intoxicam o mundo; mas há quem faça, como Mili Das, uma poesia que nos ensina a viver a vida com toda a intensidade; mas também nos mostra por dentro o coração silencioso e confrangido da mulher indiana. Seus versos nos envolvem nas sutilezas aparentemente simples, como um mudra desenhado no ar, no entanto, um gesto lançado com motivações complexas que somente os deuses saberão interpretar. Ao final da leitura dos poemas de Mili Das sentiremos como se tivéssemos nos banhados nas águas purificantes do Ganges, deixando lá, no fundo do seu leito, todas as ansiedades, medos, angústias, opressões que a alma carregava consigo.
MILI DAS é uma poeta bilíngue de Calcutá, Índia. Ela nasceu em nove de julho de 1983, foi criada em Bengala Ocidental. Cresceu na aldeia do distrito e lá desenvolveu um forte relacionamento com a natureza, vindo a escrever seu primeiro poema aos doze anos, observando os trabalhos das abelhas numa colmeia.
Mili Das, poeta vocacionada, é movida pela paixão. Além disso, aprecia escrever contos, peças de teatro, dramas, romances e pequenas reflexões para o público infantil. Ela também adora recitar sua própria poesia, atividade que lhe tem rendido muitas participações em eventos culturais e também elogios.
Mili Das possui um bacharelado pela Dinabandhu Mahavidyala (Bongaon) da Universidade de Calcutá. Por muito tempo ela tem publicado seus poemas em diferentes revistas bengalis, periódicos desde Calcutá em West Bengal, até Dhaka em Bangladesh, e também em Berlin, na Alemanha. Ela é colunista regular de poesia bengali em diferentes revistas literárias, como KRITTIBUS, BONGIYO SAHITYA DARPAN, KOLKATAR JISHU, SAHITYA ANGAN, BOICHITRAKOTHA, JUGOSAGNIK. Sua poesia foi calorosamente recebida pelos eminentes especialistas da literatura bengali em diferentes partes da Índia. Além de tudo, Mili Das é uma especialista em culinária de Bengala Ocidental, sendo destaque em programas de culinária na televisão local, jurada de concursos e colunista em revistas especializadas em culinária indiana.
Ela tem quatro livros de poesia em língua bengali. Em 2019 publicou seu primeiro livro de poemas, “Apeksha Korchhi Bandi Kafine”, pela Editora Dey, de Calcutá. Já seu segundo livro “Rajbhabaner Samne”, pela Feira Internacional do Livro de Calcutá, em 2020. Em 2021 publicou seu terceiro livro de poesia, sendo o primeiro em inglês "You Are Still There" publicado na Romênia. O seu segundo livro em inglês, "Never Broken", foi publicado na Flórida, nos Estados Unidos, em julho de 2021.
A poesia de Mili Das tem encontrado ressonância em diversos lugares do mundo, a universalidade do inglês facilitou a sua recepção na América do Norte, Colômbia, Rússia, Romênia, Nigéria, Berlim, Bangladesh, Alemanha, Polônia, Espanha e agora no Brasil. Mili Das se declara uma apaixonada pelo que faz. Na sua atribulada vida cotidiana – ela é casada e tem dois filhos - a poesia nunca encontra obstáculos para se expressar, pois a poesia é seu mais precioso oxigênio, sua motivação para viver, sua força de ser uma mulher destemida no frágil mundo de hoje.
Os poemas desta seleta constam do livro “You Are Still There".
O QUE MAIS VOCÊ QUER
Oh Deus!
Quantos cadáveres mais você quer?
Você está dormindo sobre o leito da morte.
Há vida para levar ainda?
Quantas almas desejam retornar para casa!
Eles deixaram muito trabalho.
As pessoas estão se sufocando nas trevas da depressão.
Quantas vidas foram sacrificadas em silêncio.
Dorme no mundo dos sonhos, a felicidade agora.
Na verdade, os sonhos já não são mais vistos.
No crepúsculo do oeste,
Um a um, um amontoado de cadáveres se juntou.
De manhã à noite
Da noite até a manhã
Apenas o fogo está ativo.
Para onde quer que eu olhe, só há fogo.
Este fogo não é o da guerra.
Este fogo não é a explosão do átomo.
Este fogo não é a lenha do forno.
Este é o fogo abrasante da morte humana.
Oh Deus!
Ainda não está satisfeito?
Quantos cadáveres você ainda quer?
WHAT MORE DO YOU WANT
Oh God!
How many more dead bodies do you want?
You are sleeping on death bed.
Is there still life left to take?
How many souls want to return home!
They have left much work.
People are drowning in the darkness of depression.
How many lives have been sacrificed in silence.
Now happiness is asleep in the world of dreams.
In reality they are no longer seen.
In the twilight of the west,
One by one, a crowd of corpses has gathered.
From morning to night
From night to morning
Only the fire is burning.
Where ever i look, there is only fire.
This fire is not a war.
This fire is not the explosion of atom.
This fire is not the fuel of the oven.
This is the burning fire of human death.
Oh God!
Are you still dissatisfied?
How many dead bodies do you want?
EU NÃO QUERO MORRER
Batendo está a morte
À porta da minha vida,
Mas eu não quero morrer.
Disse-me ele: "Depois de certo tempo
Você será convertido em ardentes cinzas
E não restará vestígio algum seu”.
Batendo está a morte
À porta da minha vida,
Não quero ir para o seu país.
Insiste ele: "A sua pira funerária está pronta
Não há como voltar atrás”.
Batendo está a morte
À porta da minha vida,
A ele não quero seguir.
Não sei como posso retornar
Para esta adorável terra.
A cada momento,
Mais e mais, ele me envolve.
Batendo está a morte
À porta da minha vida,
Não quero responder ao seu chamado.
Ele diz: "Ao seu lado estou sentado,
Na sua cama decorada com lindas flores,
Depois de algum tempo
Você nada saberá do que vai acontecer”.
Batendo está a morte
À porta da minha vida,
Morrer, eu não quero,
Mesmo que mal, quero viver.
Nunca deixaria esta linda terra
Que, para mim, é o próprio paraíso.
I DON'T WANT TO DIE
Death is knocking at the door of my life
But i don't want to die.
He says to me, "After some time
You will be turned into burning ashes
And then there will be no trace of you."
Death is knocking at the door of my life
But i don't want to go to his country.
He is saying again and again,
" The pyre for you is ready now
And there is no way to come back".
Death is knocking at the door of my life
But i don't want to go with him.
I don't know
How i may return to this lovely earth.
Every moment he is embracing with me.
Death is knocking at the door of my life
But i don't want to respond to him.
He says, "I am sitting beside you,
Beside your bed decorated with lovely flowers.
You don't know what will happen after some time".
Death is knocking at the door of my life
But i don't want to die;
I want to live badly.
I never want to leave this beautiful earth
Which is Heaven for me.
SOLTE
Se a pessoa te ama de verdade
Nunca te deixará partir.
Quando alguém precisa de espaço
Sem qualquer hesitação
Diga sempre, vamos.
Quando alguém quer apagar do coração e você deveria perceber.
Claramente você diz: deixe-me ir.
Quando é difícil seguir em frente juntos,
Quando você falha em suportar todas as
Dificuldades,
Quando você não tem limites de capacidade,
Quando você não consegue explorar alguma nova possibilidade para o futuro,
Quando você não consegue perdoar nada,
Quando você consegue pensar apenas em si mesmo,
Quando você precisa de uma nova dimensão de vida,
Quando você se encanta com o novo destino,
Quando você acumula uma experiência amarga
Todos os dias na vida ordinária,
Quando você não consegue manter firmemente a fé,
Quando você vai se desembaraçar de todas as emoções, sentimentos e fardos,
Quando a união afunda você na escuridão,
Quando você não tem controle sobre si mesmo,
Quando você descobrir uma nova porta,
Um coração alquebrado não pode construir um novo futuro.
Não há porque avançarmos juntos.
Você fala claramente, desesperadamente:
Solte.
Let go
If the person truly loves you
Never let you go.
When someones need space -
Without any hesitation
Always tell, you let's go.
When someone wants to erase from heart and you should realize it.
You clearly tell let me go.
When it is difficult to move on together,
When you fail to tolerate all the
difficulties.
When you have no limits of capability.
When you can't explore any new possibilities for future.
When you are unable to forgive anything.
When you can think only about yourself.
When you need new dimension of life.
When you charmed by new destination.
When you gather bitter experience
everyday in daily life
When you can't hold tightly the faith.
When you will release all the emotions, feelings and burdens.
When togetherness sinks you into the darkness.
When you have no control to yourself.
When you have discover a new door.
A broken suspensive heart can't built a new future.
No need to move forward together.
You tell clearly and desperately
Let go.
EU SOU UM SER HUMANO
Lembre-se que sou um ser humano
Não quero matar ninguém
Não quero odiar ninguém.
Sem inveja sem ódio aos outros.
No entanto, uma maldita faca me atormenta todas as noites.
Não sei como é esse sonho horrível que me afeta todos os dias.
Quando pego em minhas mãos um revólver
E aponto para aqueles que não me aceitam, não aceitam a minha palavra,
Naquele momento, um sorriso inocente no rosto de uma criança ri para mim.
Súbito, esqueço tudo.
Posso ver o fogo arder furiosamente.
Naquele momento, uma linda criança veio até mim,
E como uma dama, ela me ama.
Ela me fez entender -
Qualquer coisa pior você não faz.
Afinal, você é um ser humano.
I AM A HUMAN BEING
Remember i am a human being
Don't wanna murder anyone
Don't wanna hate anyone.
No envy no hate to others.
Yet a bleeding knife haunted me every night.
Don't know how this horrible dream i have dream everyday.
When i take a revolver in my hand
And point to them who don't accept me, don't accept my word.
At that moment an innocent smiling faces child laugh at me.
Instantly i forget everything.
I can see the blazing fire furiously.
At that moment a beautiful child come to me and love me like a lady.
She make me understand -
you don't do any worse thing
After all you are a human being.
HORA DE PARTIDA
Um dia eu vim a este mundo
Alegremente,
Iniciei minha jornada de um belo ponto.
Minha cidade estava muito lotada,
No entanto, era um porto verde para mim,
Eu sinto isso com poesia.
No final da minha jornada
Estou relembrando aquelas vitórias da minha vida,
Que me encantaram na maior parte do tempo.
No final da minha jornada
Relembrando aquelas estrelas que,
Eu conheci de perto, mas eles estavam no meu sonho.
Eu posso sentir o amor universal.
Eu posso sentir meu marido e
Meu lindo filho.
Eu posso sentir meus amigos.
Estou voltando para minha própria casa
De onde eu vim.
Ainda posso sentir que minha alma está ligada à minha família.
Todos os pássaros cantam.
Animais estão chorando,
A grama não está crescendo hoje.
Eu posso sentir que minha hora chegou.
Todo o meu trabalho foi feito,
Foi uma longa a jornada,
A hora da partida chegou.
DEPARTURE TIME
One day i came in this world
happily,
I set out my journey from a beautiful point.
My city was too much crowded,
Yet it was a green harbour to me,
I feel it with poetry.
At the end of my journey
I reminiscing those victories of my life, that charmed me most of the time.
At the end of my journey
i reminiscing those stars whom
I met closely yet they were in my dream.
I can feel the universal love.
I can feel my hubby and
my beautiful child.
I can feel my friends.
I am returning my own home
from where I have came.
I can feel still my soul is bound with my family.
All the birds sing.
Animals are crying
Grass is not growing today.
I can feel my time has-been come.
All of my work has-been done
It was a long journey,
Departure time has been come.
*Francis Kurkievicz é poeta, publicou pela Editora Patuá, em 2020, seu primeiro livro de poemas B869.1 k96. Devido à pandemia e com muitas horas de ócio, começou a se aventurar pela tradução, primeiro como uma forma de se comunicar com outros poetas, depois por necessidade de compreender melhor o trabalho de seus colegas que não possuíam versões em português.
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