Claudio Rodrigues por Renata Andrade
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Marisa me rebocou para um curso sobre Epistemologia que seu irmão ministrou na Fumec, na Rua dos Aimorés, no bairro Santo Agostinho. As aulas faziam parte da semana de atividades culturais que o DA desta faculdade anualmente organiza, oferecendo oficinas, cursos, exposições, apresentações de teatro, shows, festas etc. Fui, é claro! Aonde mais se quer que eu vá quando a Marisa aponta aonde eu deva ir? Ela sabe das coisas! É esperta. Gracinha a Marisa em sua esperteza e graciosidade! Como é graciosa essa menina! Como eu a amaria se a amasse! Mas, nada é perfeito. É doido, porque nós nos gostamos muito. Nós já conversamos sobre isso, nos sondamos, nos beijamos e nos sarramos de leve. Mas sempre que ela beija outro cara, meu coração jamais bate diferente. Sou indiferente. Somos, sim, dois safados e afetuosos amigos. Seu irmão, recém-chegado de um pós-doutorado na França, é o seu oposto, conversa pouco e ri menos ainda, mas, em sala de aula é um sol generoso. Compreendi melhor a Marisa depois que o conheci. Ela é mais madura do que todos nós da turma do La Taberna, os filhos do Zé Maurício, e nos cobra, sobretudo a mim, focarmos em algo, estudo e trabalho, para melhor aproveitarmos a vida. A Epistemologia é fascinante. Árida experiência para quem não tem nenhuma leitura a respeito. Mas degustei cada palavra que o professor proferiu. É gratificante tirar o cabaço do entendimento! A Epistemologia é uma cobra que engole o próprio rabo. É o saber que tenta dar conta de si mesmo. O conhecimento que avança por se conhecer, tendo a si como objeto de estudo. O sujeito e o objeto agora são sujeito-objeto. Mas, talvez apenas se chegue à conclusão de que não se sabe nada, mas se conjectura, enquanto se lançam pontes, tentáculos e sondas a um espaço vazio à procura de algo que sempre recua. São construções de pensamento complicadas e extraordinárias. E um curso assim, cujo assunto é a relação do saber e a ciência com a sociedade, a cultura e a história, hoje nos traz, em plena ditadura que parece não ter mais fim, algum alento. Acenderam-se muitas luzes em minha mente. Gostei! Quero mais! Na última noite, para suavizar o conteúdo e dar um pouco de sabor àquele árduo e fascinante tema, ilustrá-lo e contextualizá-lo com os dias bicudos atuais, o professor propôs que lêssemos em voz alta durante a aula, a peça Galileu Galilei, de Bertolt Brecht, que ele distribuiu em cópias de Xerox. A peça tem como tema os últimos anos do cientista em Florença, depois que ele divulgou suas descobertas sobre os planetas e a inquisição tentou silenciá-lo condenando-o à prisão domiciliar até sua morte. Como introdução à sua leitura, o professor nos explicou sobre Bertolt Brecht, sua vida e seu método. Grosso modo, generalizando ao máximo e fazendo um resumão baseado em uma pesquisa que eu fiz depois, posso dizer que o teatro de Brecht é eminentemente político e seu método é revolucionário. Ferrenho defensor da forma, o autor alemão perfez em seu teatro a máxima defendida pelo poeta soviético Vladmir Maiakovski: “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”. Se a poesia moderna, se contrapondo à tradicional, rompeu com a ideia do verso como partícula básica do poema, propondo em seu lugar a palavra; se a pintura moderna, se contrapondo à pintura tradicional, rompeu com quatro séculos de primazia do uso da perspectiva euclidiana na representação pictórica introduzindo noções tiradas das geometrias não-euclidianas, como a de multidimensionalidade, por exemplo, formulando um conceito espacial que não havia ainda sido explorado definido como quarta dimensão, tendo afinidades com o princípio de indissociabilidade entre espaço e tempo elaborado na Teoria da Relatividade por Albert Einstein em 1905; se a música moderna, se contrapondo à tradicional, rompeu com o sistema tonal e propôs uma gama de possibilidades de se explorar esteticamente o som; o teatro moderno brechtiano, se contrapõe ao teatro tradicional ao romper com a noção de catarse, menina-dos-olhos da Estética do velho Aristóteles, e o uso desta para fins terapêutico-políticos ao tentar desmanchar através do paroxismo de emoções, os nós de tensão social entre os habitantes da polis, o poeta alemão propõe que esses nós fossem resolvidos pela revolução, se servindo de noções como distanciamento e estranhamento necessários para que o público, ao invés de se emocionar, pense, através de expedientes como a fala direta com o expectador, as canções, os cartazes, a iluminação não-realista, o exagero nas interpretações, o cenário etc. Terminada nossa leitura, ficamos todos tocados pela tensão do momento político pelo qual o país passa e a intensidade que o curso que acabávamos de concluir se assumiu diante de nossas mentes.
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O poder emana do povo. O calor do corpo do povo. O corpo na rua. O corpo do povo espalhado pela cidade. Multibraços de polvo. Multiolhos de abelha. Mas não houve povo ainda. Houve cartazes e gritos. E gente disposta. Roupas coloridas, dentes a mostra. Braços e pernas. Punhos fechados para cima. Foram para a luta. Todos estudantes. Rapazes e moças da classe média, cansados, sem esperanças e oportunidades. O horizonte um funil. Um paredão no fim do túnel. Somos responsáveis por aquilo que amamos. O que isso tem a ver? Tudo. Estas palavras dizem o quê? Amamos a nós mesmos e à nossa juventude. Amamos o futuro. E o presente de merda é pernas na rua, na luta, fazendo às vezes do povo. Alguém tem que fazer alguma coisa. Então façamos! E fomos à rua. Todo o poder emana da rua. Não foi o povo ainda, mas uma força da história, como se o futuro, inexoravelmente, nos movesse. E provocou uma marola na cara lisa dessa ditadura burra que só tem um lado e uma só cabeça. Que só tem casca e é forte apenas porque não contém nada. A cabaça pequena. Foram os estudantes da classe média de uma, duas gerações, que tomaram a Faculdade de Medicina da UFMG, na Avenida Alfredo Balena, em Belo Horizonte, no dia 3 de julho de 1977. Estava marcado para o dia seguinte o III Encontro Nacional dos Estudantes, com o objetivo de se reorganizar a União Nacional dos Estudantes (UNE), extinta pelo regime militar em 1968. Gente de todo o Brasil veio para a capital mineira, mas muitas caravanas foram barradas pela polícia ao tentarem sair de seus estados. Por isso a Faculdade de Medicina havia sido ocupada pelos estudantes.
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Che Guevara na camiseta vermelha que eu visto. Dá medo, às vezes, mas não me importo. A camisa, na verdade, apenas diz quem eu sou, e exibe mais um cabeludo como eu. Um Jesus Cristo, um John Lennon, um Jimi Hendrix, um Jim Morrison, um Caetano Veloso. Não assusta mais ninguém a cara estampada em preto na camiseta vermelha. Mas ele resiste. Está nela porque resiste. Os olhos de sol e de sangue. Vi uma foto dele morto. Os olhos vidrados pareciam vivos. Como os do Cristo morto das velhas igrejas que saem nas procissões da Paixão. Os bolsos cheios de nada, caminho pela avenida entre soldados armados até os dentes, prontos para a guerra contra estudantes desarmados. Como era de se esperar, a Avenida Alfredo Balena está vazia de gente, e canas por todos os lados. Camburões. Cassetetes. Capacetes. Escudos. Revólveres. Metralhadoras. Todos prontos para a guerra. Devem sentir muito medo de nós, pobres mortais. Pela avenida vazia de gente, os canas civis nervosos andam de um lado para o outro como feras enjauladas que não se contêm de ódio, e mesmo calados parecem bufar. Pesa um silêncio sinistro, o único barulho que se ouve é o da multidão de estudantes do outro lado da cerca à frente da Faculdade de Medicina. Meu corpo e o de Marisa se esgueiram de mãos dadas pelo corredor polonês que forma uma curva do meio da avenida até o portão lateral da faculdade composto de meganhas militares que nos olham com suas caras arreganhadas de ódio. O coração na garganta. A camiseta reluz vermelha no meu peito. Ninguém olha a camiseta dentada. Ninguém olha a camiseta armada até ao âmago de quem a veste. Resiste. Que tipo de luta ainda é possível? Qual rumo? Tudo é ruína. O país armado. País careado, segundo Drummond. A camiseta vermelha, a estampa preta de seu rosto e a frase: Hay que endurecer etc. A camiseta arde sobre o corpo. Ninguém a vê. Ninguém nota. Ninguém parece a compreender no calor dos acontecimentos. Mas ele resiste. Entre os soldados poucos saberiam o que a camisa representa. Entramos. É como passar por um portal para outra dimensão. Uma passagem estreita guardada pelo inimigo, e dentro é um alívio. Dentro é o verdadeiro país. Os canas lá fora esperam por nós na avenida vazia de gente. Nosso futuro. Nosso futuro é qualquer coisa. Tudo o que quisermos poderá ser o contrário.
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Quatrocentos estudantes guardaram vigília à noite dentro dos portões da Faculdade de Medicina. Marisa e eu voltamos para nossas casas. Às cinco horas da manhã do dia seguinte o campus foi invadido pelas forças policiais e os estudantes levados presos ao Parque da Gameleira. Várias pessoas pela cidade foram presas também, com casas, igrejas e escolas invadidas e a estimativa de quase quatro mil encarcerados. Houve cenas de corre-corre e espancamento pelas ruas da cidade, culminando na porta de igreja da Boa Viagem com os padres impedindo que esta fosse invadida. Os baderneiros militares não deixaram por menos, os meganhas civis também não. Houve um bochicho geral na cidade, o telefone-sem-fio do disse que me disse espalhando a notícia truncada tipo, sabe quem dançou? geral. De assustar. No dia seguinte apareceram estampadas nos jornais da cidade as fotos das prisões. Em destaque a de um policial civil de meia-idade, enorme e careca, como o Brucutú dos quadrinhos, dando uma gravata em uma moça de cabelos compridos, e as fotos de jovens levados presos dois a dois, três a três, pelo longo corredor polonês que eu e Marisa havíamos passado no dia anterior. Entre eles, alguns colegas do curso de Epistemologia que o irmão da Marisa havia ministrado semanas antes, os mesmos que juntos lemos em voz alta a peça Galileu Galilei, de Bertolt Brecht.
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A prisão, por porte de drogas, dos atores norte-americanos Julian Beck e Judith Malina durante o Festival de Inverno de Ouro Preto em 1971 causo escândalo de repercussão internacional. Os dois são fundadores do Living Theatre, grupo de teatro de vanguarda iniciado no final dos anos quarenta cuja plataforma é conhecida por teatro da vida que tenta pôr fim às fronteiras entre a plateia e o palco e nos anos sessenta se tornaram personas non gratas nos EUA por estímulo à desobediência civil contra a guerra do Vietnã. Meu pai salivou de prazer ao comentar que leu no jornal que os atores foram pegos com tijolos de maconha em todos os cômodos da casa em que se hospedaram. Saco! Ele sabia que me picava com isso. Ele tem prazer em me provocar e fala mal do que eu gosto e elogia o que detesto só pra me espezinhar. Sobretudo, a respeito dos militares contra subversivos, palavra que o fazem espumar ao falar, assim como comunistas, viados e maconheiros, que ele associa ao que me desperta interesse, e não se cansa de dizer que se arrepia ao ouvir a palavra cultura e tudo o que ela significa e representa. Eu amava Julian Beck e Judite Malina pelo que eles representam. A presença do casal no Festival de Inverno daquele ano representava a luta contra a tirania, o obscurantismo e o fascismo nos momentos mais duros dos anos mais burros da ditadura militar. Eu havia lido uma entrevista do casal no Pasquim que me fez sentir como um pobre país cujo povo ainda precisa de ídolos. Ainda preciso. Ainda é preciso. E eles foram presos. Quase tudo de bom que acontece neste país é vetado à nossa geração. Nossos intelectuais são obrigados a se calar ou fugir do país, professores expulsos das universidades, cientistas exilados, Caetano Veloso e Gilberto Gil no exílio na Inglaterra, Chico Buarque na Itália, livros, filmes, peças de teatro e músicas aos magotes censuradas. O casal representava o que mais me interessava naquela época que se parece agora tão distante. Eu não aceitava que o sonho tivesse acabado. Eu precisava dele vivo por sobrevivência, como se isso fosse o cerne do meu adolescer. Eu estava me ligando àquele tipo coisas, o movimento, e os dois atores eram tudo o que eu esperava que fossem, arautos daquilo que eu não era capaz de conceber direito ainda, o sonho que eu não tive tempo de sonhar no mundo pós-utópico dos liberais empreendedores espertalhões de hoje em dia. Eu estudava no Colégio Arnaldo, já ensaiando os primeiros tapas nos baseados e já usava os cabelos compridos sobre os ombros, quando, em um grupo de trabalho de sala de aula do qual eu participava, resolveram convidar alguém para nos dar uma palestra sobre drogas. Havia canas da civil treinados para isso. Levavam maconha e cocaína pra moçada conhecer e incentivá-los a não experimentar. Curioso, eu me prontifiquei logo a solicitá-los junto ao famigerado Dops, onde acontecem horrores, pois todo preso político detido em Minas Gerais passa por lá. Com o coração na mão, como dizem, depois da aula eu e um colega subimos as escadarias do sinistro e modernoso (bonito até) prédio onde funciona, na Avenida Afonso Pena. Em um guichê que ficava no hall fizemos o pedido, e nos mandaram esperar em pé num corredor onde ficamos por mais de uma hora. Dentro do prédio, entre os escritórios, o lugar não nos pareceu assustador, vimos apenas escritórios e gente trabalhando num vai e vem passando por nós. Não ouvimos grito ou tapa ou choro. Tudo acontecia no porão. Passava um delegado e outro e de vez em quando algum nos abordava com cara de bunda perguntando o que procurávamos, mas sempre ficava por isso mesmo. Até que de repente, conversando com o que parecia ser seu advogado, surgiram Julian Beck e Judite Malina e imediatamente os reconheci. Ele comprido, o arco dos longos cabelos coroando a calva de uma pontuda cabeça, ela uma mulher exótica, baixinha e simpática, com os olhos vivos, inteligentes e muita presença nos gestos expressivos e os cabelos negros desgrenhados. Energia. Cravei os olhos no casal, fascinado. Estavam relaxados. Sua extradição já estava garantida, apenas combinavam detalhes e sairiam da cadeia àqueles dias. Eu já sabia disso pelos jornais. Foi tudo amplamente divulgado. As listas de assinaturas de intelectuais e políticos do mundo inteiro pedindo pela libertação do casal. Bufando na frente da televisão meu pai expulsava-os de vez do país. Que eles fossem pra Cuba, que é lugar de comunista maconheiro! Observando-os naquele corredor, me passaram mil coisas pela cabeça, admirado com a maneira deles serem, da coragem que eles tinham e pela atitude de vida nova que eu almejava e apenas havia conquistado os cabelos grandes e os tapas nos baseados. Mas e daí? Como ser aquilo e se igualar àqueles arautos de um tempo que viria, o futuro de um mundo muito doido que seria em que todos fumariam muita maconha e faríamos peças de teatro malucas nas ruas envolvendo multidões frenéticas em uma orgia universal? Seria bom! De repente ela se virou para mim atraída pela força da atenção de meu olhar impertinente e me devolveu um olhar profundo e intenso, abrindo um sorriso de reconhecimento. Eu havia entrado em seu entendimento. Ela me sabe agora e vai me levar para sempre dentro dela. Sua expressão era de carinho. Ela deve ter pensado que eu e meu amigo estávamos presos também. Eu quase morri quando me dei conta disso. Preferia mil vezes que naquele momento diante dela isto fosse verdade.
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