BICHO GEOGRÁFICO
Sobre a pele, suas escamas
no tabuleiro de damas
risca o risco de ser bicho
leva o rastro no tablado
lança um traço nos braços
uma lâmina migrans
Parasita?
O que a terra trouxe
deslizando no sangue de terra
desenhando suas linhas
ou mapa do corpo no solo.
Bicho que a jornada inicia
adentrando cava e aorta
a epiderme explosiva em larvas.
Germens, migrando
sempre à espreita.
a larva fêmea
imperceptível
larva de barro e túneis
ser feminino nas mãos que escrevem
BICHO
FAUNA
Mulheres que correm com os lobos
mulheres que nadam com os botos
mulheres que dançam com serpentes
mulheres que alçam voo de repente
mulheres que caçam suas presas
mulheres que criam as crias de outras
mulheres que procriam
mulheres que ferem com aguilhão
da arraia ou do escorpião
mulheres que queimam com as lagartas
mulheres que enfeitam como matriarcas
e beijam com os colibris.
mulheres mansas em manadas
mulheres vacas sagradas
mulheres búfalas,
mulheres bisontes
atravessam os montes,
os belos horizontes
mulheres submersas com os crocodilos
olhos às avessas a refletirem o próprio [rio
mulheres feras
mulheres amigas
a carregarem suas casas
caracóis ou formigas
mulheres abelhas vespas marimbondos
mulheres que polinizam que fazem florir
mulheres melífluas em fluxo em devir
mulheres orcas, belugas, jubarte
as que livres, nos oceanos,
dão um show à parte.
mulheres com olhos de égua,
pelos de ursa
e galope de antílopes
mulheres a trotar a esmo,
a resfolegar no ermo,
livres do medo
da proscrição,
do degredo.
SATÉLITE
Desliza inteira a sereia
Selene de prata e carne,
a deusa
seus cabelos algas filamentos
plânctons
ondulam a seda d’água
a Lua repousa em peixes
ao penetrar sua casa líquida.
Desliza, esmeralda latente
pulsar de olhos verdes
anfíbia de pele e pálpebra
cauda e seios e cílios
divina Selene,
astro em flor
beija a face da Terra
onde se encerra.
.
Guelras-diamantes
reflexo de mil prismas
noite de luz
imersa no azul
agora escurece
tece o dia
e destece
em eclipse.
OVERDOSE
Como se quebrasse o silêncio, o grito,
grito sem nunca ser ouvido
nas veias arroxeadas
no boi abatido
nas feridas estancadas
nas seringas
nas overdoses
dos hospitais
fico enquanto respiro
alerta ao primeiro estampido
do carro bomba inimigo
por entre as bocas banguelas
das bocas de fumo
dos cheiros viadutos
desapareço
sob meus nervos
nos remédios diários
quando engasgo
com a morfina
quando tudo termina
num corpo frágil.
CÂNTICOS
Na luz,
pela janela aberta
poucos rostos
olho no olho
dos passantes.
Mira as suas mãos
gastas, magras, atadas
nas cenas diárias
excruciante diálogo
com o não.
Na luz, uma cidade
abre sua arena
no céu, a lua plena
e os semáforos
colorem minhas telas.
Pela luz, vejo sombras
amordaçadas
um corpo quebrado
perfurado e vazado
de um a outro lado.
Hiato
Demônios vigiam o lúmen
seus cânticos se erguem
às esferas das estrelas
com fúria
tirania
vileza
demônios vagam nos templos
portam a luz
por onde os vejo.
EPIDAURO
O amado trouxe-me rosas
encobriu minhas vestes
fez tecidos de pétalas
sobre minha pele.
Meu amado e seu cálice de odores e bálsamos,
a banhar-me com seu amor,
a tocar meu corpo ferido de morte.
Meu amado e suas serpes
ouro de outras eras,
escamas reluzindo
metamorfose:
bebo o elixir e existo.
Seus animais deslizam
divinizam seus matizes.
Sou a serpente adormecida
Kundalini de mim mesma
pessoa e peçonha
antídoto e destino.
Quietude
Lançou no ar
punhados de granizo
toque de brisa
caiu o dente de leão.
Há relvas que cantam
(pios e grilos)
passos que vêm e vão.
Ao som dos sinos,
grandes orelhas
suas mãos em mudra
sua voz emudecida.
Seus olhos se refletiram
no chá vespertino
entregues à própria ausência
Os chinelos de bambu
os sons do riacho
as folhas fumegavam.
Tudo mínimo
ventos nos campos de arroz
tigela e bastão.
Ângela Vieira Campos é geminiana com ascendente em Sagitário, ar e fogo. Terapeuta holística, Mestre em Reiki, professora e pesquisadora da área de Literatura do Departamento de Linguagem e Tecnologia (DELTEC), no CEFETMG. Publicou os livros “Sendas no silêncio” (MUNAP), “Teatro das sombras” (Scriptum), “Lonlyness” e “Canção dos corpos” (online). Sempre busca, vislumbrar, com a arte poética, a dimensão daquilo que O. Paz denomina de Otredad.
Comentarios