EM GUARDA
Impressão de ter vivido este mesmo dia de vento em suspenso O suspense pousado em folhas brancas Ausente negado: o papel vivido Cores espantadas na desolação dos acontecimentos. Há um silêncio violáceo entre casas e bananeiras. Bem-te-vis estão calados sem ver gente nos passos da tarde. Deus nosso! O cemitério é agora o coração da cidade. Já vi esse filme nalgum país de idêntico passado. Imóvel a tela do firmamento em seu cinema dizendo: a noite vem chagando os chãos com seus chinelos de chumbo e não se ouvem as estrelas gemendo ao fundo. Logo, Aurora cobre
Alvorada de sangue. A hora nos aguarda mas
também o que tomou de assalto
um Palácio por morada.
ECOS DE UM RÉQUIEM
Elas não desciam, as lágrimas; ficavam na moldura os rasos d'água, riachinhos pedindo socorro a rio. Chorar um oceano se preciso livre como prece de ave. Esse vácuo que entorna a retorta é desamparo? É estado de sítio em corpo alheio? A dor do mundo nos dardos lançados A onda de mármore em maré cheia e todos os beijos censurados/ Lábios do silêncio translúcido, o choro se esconde no campo gravitacional do riso. Ouve-se o coro dos mortos/ eu ouço/ num mantra no escuro.
IDA
Chamava de Deus a Meca a Meta a América que nem sempre convêm Deixou sobre a mesa três pesos : coração cérebro e pulmão a meio A mais-valia do verbo não valia o mundo que a miragem prometera Oásis ases asas são palavras A vida é o livro-corpo inteiro.
HÁ ALGO (NO) RITMO
A evidência anda a serviço
da indigência na inteligência.
O barco navegante segue
oculto sobre as águas :
nem o céu parece vê-lo
adernante ultimamente
tantos são os crassos
sabotando mentes.
II
Falasse eu em russo
inglês alemão chinês
como soaria a piada
a ira o hino o grito
Kayowá Guarany
Kamayurá Tupy?
Quem se protege
por ironia o que projeta
à súmula da cidadania?
DEIDADE
O sol esse suposto
deus de luz
que cega
não se espia:
forno a plena
combustão
que assola.
Mas sair da treva
que trava a trova
prova: poder olhar
do sol à frente
e não cegar-se
ao ver a reta luz
em todo plano e forma.
BEATITUDE
Muito além de Allen
estrelas ardem, gélidas,
mas ele não se cala.
Denuncia prega chora
as malas tantas de Pandora
o continente desolado
na Terra pelada
sem amores
Já alado no além-cosmo
Allen rega suas folhas
legadas à América decaída.
Colho-as e replanto
em meu jardim interno
de inverno junto a mantras
dos monges de uma cidade
alienígena.
Angélica Torres Lima, jornalista e editora, publicou oito livros, seis de poemas, entre eles, O Nome Nômade (semifinalista do Prêmio Oceanos 2016); O Poema Quer Ser Útil; Paleolírica; e Sindicato de Estudantes (Prêmio Mário Quintana de Poesia, do Sindicato de Escritores do DF 1987). Tem no prelo Diminutos, haicais à brasileira. Sua poesia foi analisada no mestrado em Literaturas da UnB, em 2011, sob o título A voz do feminino na poesia contemporânea de Adélia Prado, Adriana Calcanhoto e Angélica Torres (disponível na web). Nasceu em Goiás e vive em Brasília, desde a adolescência.
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