A PALAVRA ALÉM DA PEDRA
O tecido desbotado da noite cobre a tarde enrubescida. Num crescente bolero o vento inventa assonâncias reparte o vidro da janela pelo espasmo da pedra. Fratura do tempo sem limites existenciais. Corpos de superfície nos entremundos em êxtase. Antagonia do rosto espelhado numa imagem futura como epigrama de um sonho povoado de fantasmas. (Enquanto da tarde escorre lágrimas entre escombros a palavra dessa hora indesejada carrega silêncio de pétalas e a dor de pés iludidos pisando minúsculas pedras.)
CERIMONIAL
As velhas tábuas do soalho forram o chão da casa abandonada. Escondem o eco indiferente de Bach soletrado pelo tato nas teclas de um piano desacordado. Oco barulho dos pés: movimento imensurável do corpo disponível ao toque. A ingenuidade perdida nas mentiras obscenas - íngremes
expressões de um ato imaginário. Foi-se areia da ampulheta junto ao pó de um instante de ânsia e completa desventura. Na dormência plena dos seus olhos iridescentes resistem vestígios de candura: cintilar sorriso da Madona ilegítima presa na parede.
EDIFÍCIO DO ABANDONO
Além da mala, carregava vazia expressão de quem tramou a desistência.
Tempo de angústia indefinida, como se a realidade criasse uma história de ficção entre o horror e a metafísica.
Personagem disfarçado em dias repletos de perigo. Algo sempre inédito a eclodir em meio ao completo desconhecido.
Impossível medir o medo e deixar de sentir o mal: variáveis que escapam pelos dedos. Sombras que se movimentam no escuro.
Incerto da hora, entre soluços do inconsciente, saiu do mundo pela via das dúvidas.
EXPRESSÃO DA MATÉRIA
mãos na parede e olhos roubados
pretextos de afeto e recusa
dialética imagem
de um fenômeno sem conceito.
mãos na parede e olhos roubados
vínculo intimista do som
reflexo do assombro
que instaura silêncio.
mãos na parede e olhos roubados acervo de membros amorfos
crias de inútil relatividade
(como a etiqueta presa numa gaveta vazia.)
mãos na parede e olhos roubados
a lógica do silogismo hipotético
dá a chave do mistério: para o inaudito, um nome.
TRAJETÓRIAS
peixe que se asfixia fora d'água destrói conceitos evolutivos
1.
no trajeto em direção a falésia a noite entranhada no dia recria batalhas artificiais. constrói escadas ao paraíso para fugir das tragédias acumuladas. nas margens de um rio inavegável a assimetria do barco rompe o intento da proa. mundo que se desequilibra ao redor de tudo. língua enrolada nos dentes pela boca rasgada semente do grito ainda presa na garganta. 2.
leio na cidade
sinais além das setas.
semáforos perdidos
no intervalo das cores.
falo a língua do passado
ao referir sobre o futuro.
farejo brechas do relógio
maquinaria do tempo
que parou na hora histórica.
consequências além do fim
regressão e cataclismo
ambiente devastado
escombros e predação
adjetivos que o poema ignora
na perplexidade da escrita.
SIDNEI OLIVIO: biólogo e poeta. Autor dos livros de poesia “Zoopoesia”, Ed. Riopretense, 1999 (em coautoria); “Poesia Animal”, Ed. Sterna, 2000 (em coautoria); “Mutações”, Ed. Scortecci, 2002 (em coautoria); “Concretos & Abstratos”, Independente, 2003; “O limite da razão”, HN Editora, 2011; “Uni-verso: a natureza da poesia e a poesia da natureza”, HN Editora, 2012; “A transgressão da palavra”, HN Editora, 2013; “As sete faces da cidade”, Ed. Patuá, 2014; “O que desmanchamos em pedaços”, Bar Editora, 2017; “A visão poética do abismo”, Ed. Penalux, 2018; “Poesia Invertebral”, Julien Design, 2019 (e-book bilingue em coautoria); “Poesia é um lugar que não se revela”, Ed. Penalux, 2021.
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