“Tudo dentro de tudo, escreve Anski. Como se Arcimboldo houvesse aprendido uma só lição, mas esta houvesse sido da maior importância” (p. 699).
O espírito europeu não se deixa localizar nem no Leste, nem no Oeste, nem no Norte, nem no Sul. Ele jamais foi dialético, no sentido de uma relação entre somente dois pontos cardeais. Nos tempos de maior “criatividade”, ele não podia ser considerado como “monólogo” ou como “diálogo”, mas com a expressão de um pluralismo de valores, com liberdade de escolha e de decisão. Se até agora não se notou um verdadeiro espírito europeu no campo intelectual e político, exceção feita a breves períodos da História, deve-se dizer que isto se deu sempre quando todos os centros europeus, quer se chamassem Florença, Roma, Madri, Londres, Paris, Munique, Nuremberg, Viena, Bruxelas, Antuérpia, Haarlem, Praga, Varsóvia ou Moscou, uniam os seus “esplendores” em um cristal com “cem graus de calor”.
Aproveito-me dessa colocação de Gustav Hocke, em Maneirismo: o mundo como labirinto, para dizer que também a América Latina, já agora, em nossos tempos, não tem nem nunca teve esse espírito de unidade, mas é composta de tipos contrastantes, destoantes, díspares, com alguns vasos comunicantes e algumas correspondências que a une em cem graus de calor. Os livros de Bolaño e, sobretudo 2666, são uma enciclopédia aberta, compósita, labiríntica, dentro de um campo semântico da diferença, discrepância, transformação espontânea que se realiza num espaço concêntrico, num Aleph impossível, como todos os alephs, e num texto longo, incontornável e, ao mesmo tempo, é impossível fechar o círculo.
Senso de humor + gosto pelas mistificações: há um princípio maneirista presente em Bolaño: a necessidade de unir os extremos numa verdadeira “miscelânea”, fusão entre o racional e o irracional, característica totalmente presente em Arcimboldo. O princípio diretivo seria colecionar tudo o que for possível e expor tudo o que possa traduzir o dualismo dos fenômenos naturais a fim de, no sentido do Doutor Fausto, reencontrar, de maneira totalmente original, a unidade primitiva, isto é, o paraíso perdido. De uma maneira niilista, enlouquecidamente trágica, Bolaño constrói, em 2666, no ambiente da fronteira do México, no cotidiano de sub trabalho nas maquiladoras, a impossibilidade dessa unidade, seja de sentido ou de harmonia, e assim constrói um fausto barrocodélico, pensando na expressão de Haroldo de Campos sobre o Catatau de Paulo Leminski: uma leminskíada barrocodélica.
A escolha de Arcimboldo para ser a personagem central, tanto da parte dos críticos, a primeira, como a da parte de Arcimboldo, a última, que é o escritor, a personificação do escritor na obra, nos faz pensar no pintor e na necessidade de trazê-lo à tona (pensando sobretudo que a personagem, antes de se tornar Arcimboldo, Hans Heiter, gostava de viver na água, num outro elemento, e não na terra).
Giuseppe Arcimboldi nasceu em Milão em 1527. Pintor da corte de Rodolfo II e conde do Império, pertence aos precursores da arte “moderna” de hoje. Foi redescoberto há pouco tempo, sendo considerado uma das figuras mais importantes da arte “pré-moderna”, nas galerias de pintura da Europa contemporânea. Pertence à linhagem dos pintores mais “exagerados” do fim do Renascimento. São telas exemplares, ainda que relativamente simples, e encerram um simbolismo transparente. Arcimboldi não pinta “emblemas” maneiristas, e sim “alegorias” maneiristas, bem simples. Era assim que o escritor Arcimboldo de 2666 atuava como escritor, escrevia aquilo que via, que vivia. Ambos comprazem-se com a pintura e ambos gostam de “desfigurar o conteúdo” de seus temas. Tanto o escritor como o pintor são “ilusionistas” e não “hieróglifos”.
Para ler a prosa ficcional contemporânea, por exemplo, podemos partir de um fio condutor inicial: de qual realismo se trata nessas obras que se situam no urbano, no caos, numa espécie de violência que envolve o assunto narrado e a linguagem com que é narrado? O que equivale a indagar como essa literatura aqui discutida expõe a realidade, como a “retrata”, “espelha”, “ilumina”, “apresenta”, “representa”; qual a relação que se pode estabelecer entre “realidade” e “obra literária”. Se há um realismo, ele é sempre adjetivado: real-visceralista, por exemplo. De algum modo, podem existir tantos realismos quantos possam construir nossa imaginação. Num outro caminho convergente, temos outro fio condutor que seria: de qual barroco se trata nessas obras que reciclam, reelaboram, fragmentam, barbarizam uma estética barroca e transforma essa realidade, esse realismo através de uma adiposidade de linguagem e de metáforas, símiles e congêneres para mostrar o que é tornado invisível ou imprevisível de tão perto que está de nós, que estamos lendo nesse momento?
Bolaño trabalha em 2666 com uma tecnologia do drapeado, expressão de Clérambault, psiquiatra francês renomado que emprestou seu nome à síndrome de Clérambault, a paixão erótica dos tecidos na mulher, um tipo de histeria descrita pelo médico. Ele pormenoriza um esquema que parte de “um ponto de apoio inicial” do tecido, no caso do meu estudo, o livro 2666, (ombros e quadris) e de um “movimento gerador” (gestos que formam as dobras), que seriam as cinco partes do livro, as volutas do texto de Bolaño. No caso da figura de Arquimboldo/Arcimboldo vemos algumas “dobras” do tecido, as “dobras” da escrita. A busca insana de todos pela figura física, de verdade, do grande escritor, sempre em fuga ou exílio,também nos costura nesses drapeados.
Os contemporâneos de Arcimboldi qualificam a sua obra, em geral, de ingegnose bizzarrie, meraviglia, invenzioni di stupore. Segundo Lomazzo, em Idea del tempio dela pittura, o pintor tornou-se célebre graças aos seus “retratos” feitos de frutas e hortaliças, de panelas, pratos e outros utensílios culinários. Lomazzo diz que se trata de um merveilleux, no sentido de Breton (que propõe, como nos diz Maurice Blanchot, a exploração do não-manifesto, do maravilhoso num mergulho entre “l avie éveillée e “la vie de rêve”). “Le merveilleux est toujours beau, il n´y a même le merveilleux qui soit beau” (Breton, 1960, p. 80, Primeiro Manifesto). Na engenharia do romance, temos esse paralelismo entre autor e pintor como uma curiosidade divertida, um trabalho de fantasia e invenção lúdica, como uma alegoria do Império dos Absburgos e da ciência do século XVI, quanto ao pintor, e como um anacronismo na narrativa, que serve a qualquer tempo, talvez também como uma asserção metafísica, como uma “nova visão do Homem”, o todo montado com pedaços, destroços, fios desencapados, contos inacabados ou contaminados numa proporção mais ampla do romance. Teríamos, assim, sobretudo o aspecto de “invenção fantástica”, “invenções bizarras” ou “caprichos”.
A novidade da linguagem de Arcimboldo, num período tão crítico como o do Concílio de Trento, mostra que o homem não está separado da Natureza, mas é parte dela, parte dos quatro elementos e do tempo, assim como a natureza à sua volta é parte dele. E o Archimboldi de Bolaño pertence acima de tudo ao mundo natural, inclusive Hans Reiter, o nome “próprio” do escritor vivia bem no mundo das águas, sempre preferiu ficar nas profundezas da água, como uma alga. É assim que ele aparece a primeira vez em 2666:
Em 1920 nasceu Hans Reiter. Não parecia um meninomas uma alga. Canetti e creio que também Borges, dois homens tão diferentes, disseram que assim como o mar era o símbolo ou o espelho dos ingleses, o bosque era a metáfora onde viviam os alemães. Dessa regra Hans Reiter ficou de fora (como de todas as outras) desde o momento que nasceu. Não gostava da terra e ainda menos vales que dos bosques. Também não gostava do mar ou o que o comum dos mortais chama de mar e que na realidade é só a superfície do mar, as ondas eriçadas pelo vento que pouco a pouco foram se convertendo na metáfora da derrota e da loucura. O que ele gostava era do fundo do mar, essa outra terra, cheia de planícies que não eram planíciese vales que não eram vales e precipícios que não eram precipícios (p. 609).
Enquanto os seguidores da concordia discours (unidade de coisas discordantes) buscam a unidade dos extremos, como Marino, por exemplo, Arcimboldo põe-se à procura da discordia concors, isto é, a desunião das coisas unidas. Para ele, as diferentes artes, a Poesia, a Música e a Pintura, possuem uma unidade desde a sua origem, como um “perspectivismo harmônico”, em vez de “perspectiva harmônica”. A “harmonia” é uma “ciência de fronteira”. Max Planck disse que somente a harmonia pode revelar características inteiramente novas. No seio do Maneirismo, a arte de Arcimboldo é uma “arte de fronteira”. Também ele está à procura do “paraíso perdido”, assim como Bolaño em sua literatura, mas o paraíso de Bolaño, além de perdido, é inóspito. Pode-se definir a arte de Arcimboldo, sob o ponto de vista técnico, como um metaforismo alegórico no sentido de uma “para-retórica” (valorização artística de tudo quanto Aristóteles, no Livro V da Retórica, chama de “defeito”). Acontece também de o “inanimado” transformar-se em “animado”, o que seria o inverso simétrico em Bolaño, pois as pessoas são assassinadas, transformadas em “inanimados” que, na maioria das vezes nem são reclamadas por seus familiares, simplesmente deixam de existir. Se o mundo maneirista pode tornar-se reversível, em 2666, o mundo se faz irreversível, os crimes, os mistérios, o desenrolar de uma vida sem sentido é irreversível.
Seguindo nesse paraíso “estragado”, chegamos a uma ideia de literatura que não nos redime de nada, que é bela e categoricamente invasiva, pois somos tomados pelo verbo de Bolaño, entramos num pântano em que a literatura se configura assim, como está dito no que se poderia chamar “Manifesto Bárbaro”, no livro Estrela Distante, por um dos participantes da Revista dos Vigias Noturnos de Arras:
Seu texto pregava “em um estilo entrecortado e selvagem, uma literatura escrita por gente alheia à literatura (assim como a política, tal como vinha acontecendo e o autor se regozijava com isso, devia ser feita por gente alheia à política). A revolução ainda pendente da literatura, afirmava Defoe, significará, de alguma forma, sua própria abolição. Quando a Poesia for feita não por poetas e lida não por leitores” (p. 129).
O Arcimboldo personagem/escritor em 2666 é a incorporação desse ideal, ou dessa revolução ainda pendente da literatura.
O que o texto de Bolaño tem em comum com as pinturas de Arcimboldo, em particular, é o processo de acumulação de elementos díspares, mas todos pertencentes a uma mesma família, pois são escolhidos de acordo com um campo semântico bem delimitado, no caso do pintor, os habitantes da água (sobretudo do mar), com o objetivo de “pintar” um todo específico. A diferença está no fato de que, nas pinturas de Arcimboldo o peso determinante seria a intenção didática séria, enquanto que no texto literário em questão, o conteúdo didático foi substituído pelo jogo verbal, pleno de agudeza barroca sim, mas parodiando-a e parodiando o sentido escondido, labiríntico que os seus modelos haviam tido enquanto alegorias, imprimindo-lhe outros e tão variados sentidos que nos sentimos em uma situação de vertigem.
Em alguns casos, estas paródias, em que o sentido oculto, esotérico das correspondências originais parece ter sido substituído pelo culto do jogo cáustico, ancorado numa crítica digamos que saudável aos excessos imitativos do barroco, ilustra simultaneamente a importância do exacerbado culto do feio e do monstruoso tão característico de muita arte desse tempo de longa duração, século XVI a XVIII ou, estendendo mais, até o século XX, e o gosto pela subversão através do riso, o que não é o caso de 2666, pois até a paródia no texto é amarga e ao mesmo tempo afirmativa da era das desilusões. Nada se resolve neste romance, muito menos pelo riso. Permanece a situação humana de desamparo, desconsolo e de que as condições podem até mudar, mas não há a revelação de que seremos, afinal, transcendentes.
Na parte final de seu caudaloso 2666 – A parte de Archimboldi – Reiter lê no caderno de Ansky, outra personificação do escritor, algo sobre Arcimboldo pela primeira vez:
Giuseppe ou Joseph ou Josepho ou Josephus Arcimboldi ou Arcimboldus, nascido em 1527 e falecido em 1593. Quando estou triste ou entediado, diz Ansky no caderno, mas é difícil imaginar Anski entediado, ocupado em fugir vinte e quatro horas por dia, penso em Giuseppe Arcimboldo e a tristeza e o tédio se evaporam como numa manhã de primavera, junto a um pântano, a passagem imperceptível da manhã que vai dissipando as emanações que sobem da ribeira, dos caniços (p. 694).
Vê-se que na multiplicidade dos nomes, mesmo que com pequenas variações, temos a contundência das ideias não feitas, das possibilidades infinitas ou do anonimato secreto de pessoas e coisas. E em meio a tantos deslocados, temos Ivánov, o escritor russo de ficção científica que se coloca assim diante do real: “Às vezes, quando estava a sós, ainda mais quando estava a sós e na frente de um espelho, o pobre Ivánov se beliscava para se convencer de que não sonhava, de que tudo era real. E, de fato, tudo era real, pelo menos na aparência (p. 687).
E um pouco à frente comenta:
“a técnica do milanês lhe parecia a alegria personificada (e aqui a alegria é, realmente, a prova dos nove, já que tão rara). O fim das aparências. Arcádia antes do homem. Não todas, certamente, pois por exemplo O assado ou O cozinheiro, um quadro invertido que pendurado de uma maneira é, efetivamente, um grande pratometálico de carnes assadas, entre as quais se distinguem um leitão e um coelho, e umas mãos, provavelmente de mulher ou de adolescente, que tentam tapar acarne para que não esfrie, e que pendurado ao contrário nos mostra o busto de um soldado, com capacete e armadura, e um sorriso satisfeito e temerário a que faltam alguns dentes,o sorriso atroz de um velho mercenário que olha para você, e seu olhar é mais atroz ainda do que seu sorriso, como se soubesse coisas de você, escreve Anski, de que você nem sequer desconfia, lhe parecia um quadro de terror. O jurista (um juiz ou um alto funcionário com a cabeça feita de peças de caça miúda e o corpo de livros) também lhe parecia um quadro de terror. Mas os quadros das quatro estações eram alegria pura. Tudo dentro de tudo, escreve Anski, como se Arcimboldo houvesse aprendido uma só lição, mas esta houvesse sido da maior importância (p. 698-699).
Os paralelos entre a poesia e a pintura – ou poesia e música, poesia e arquitetura, etc. –, vêm de muito longe, mas, desde Simônides de Keos (“a pintura é poesia muda, a poesia imagem que fala”) e Horácio (Ut pictura poesis), o paralelo entre a poesia e a pintura fixou-se no pensamento estético ocidental.
Quando Bolaño se utiliza da figura de Arcimboldo como personagem de seu livro 2666, como um escritor estudado, procurado e jamais encontrado pelos críticos contemporâneos, a primeira parte do livro, e como um escritor que se escondeu por trás desse nome para existir como escritor, me faz tentar uma aproximação, mesmo que de forma pontual, entre o Barroco e seus rastros que não deixam de nos “perturbar”, “friccionar” desde sempre, confirmando em que medida o Barroco é um ponto de confluência e de transformação de toda uma tradição milenar, que algumas vezes se agudiza a ponto de explodir em excessos, um excesso de formas e imagens insuperável, principalmente na literatura praticada na América Latina, que tem o Barroco como a arte da contra-conquista, como caracterizou Lezama Lima em A expressão americana. Esse excesso pode levar até à sua própria aniquilação ou em sua apresentação tão metamorfoseada que talvez deixe esquecido seu traço fundador. “Quando estou triste ou abatido, escreve Ansky, fecho os olhos e revivo os quadros de Arcimboldo e a tristeza e o abatimento se desfazem, como se um vento superior a eles, um vento mentolado, soprasse de repente pelas ruas da Moscou” (p. 699).
Em 2666, o que se esconde atrás dos milhares de assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez, ou atrás dos episódios sangrentos que viveu o escritor Hans Reiter na Segunda Guerra Mundial? A escrita de Bolaño se interna por esses labirintos cheios de sangue e medo e não pode sair imune, pois se deforma, enche-se de leves rupturas na percepção do real, como nos quadros de Arcimboldo. Amplifica os silêncios, os sonhos e imagens delirantes, multiplica-se em histórias e digressões, em uma tentativa heroica das palavras por apreender o inapreensível. Por isso também a literatura é um perigo, porque se aproxima demasiado ou tenta aproximar-se aos limites do horror, ainda que não possa efetivamente alcançá-los.
Tida Carvalho, ensaísta que gosta muito de escrever poemas, é professora de Literatura e afins no curso de Letras da Unimontes, MG. Mora em Belo Horizonte e Montes Claros, as Minas e os Gerais. Doutora em Literatura Comparada com a tese "A tradição luciânica e os diálogos de mortos na Literatura Ocidental", Pós-docs sobre a poesia de Haroldo de Campos nas Galáxias e A máquina do mundo repensada e sobre o romance 2666, de Bolaño em literatura latino-americana contemporânea, todos pela Fale - UFMG.
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