"Tempo... Tempo... Tempo..." díptico de Jeannetti Priolli
DEZ PARA AS DUAS, OU: SOBRE A ESTETIZAÇÃO DO MUNDO
Dizem especialistas, dizem
que nunca Maria Callas cantou
como naquela semaninha de 1958
em Lisboa. Nunca.
Este é um poema prosaico.
Bela não era mas jovem então:
e magra e alguns de seus maravilhosos
diamantes brilhavam
na cadência do suave arfar de seu peito
enquanto transformava-se na Casta Diva
ideal de todos os cognoscenti. O
YouTube traz em preto e branco
essa apresentação lendária
que já conta com um milhão
de visualizações: Voz e diva
frescas como uma alface recém colhida
em alguma vegana horta da vida.
O São Carlos nunca foi tido
entre os grandes palcos da Europa:
pequeno – a Ópera do Tejo ruiu
em 1755 – coube-lhe a honra
de conhecer o pináculo da glória
da Prima Donna Assoluta. La Callas
foi recebida com dúzias de jornalistas
e de abundantes rosas no pequeno aeroporto
da capital de Salazar. Confira-se
a filmagem no YouTube.
Recomendo.
Ora, aquele era um mundo
outro, o de nossa infância, minha
e a do Zé Horácio. Em São Paulo,
meus pais foram ver e ouvir
Marlene Dietrich: Cantou em alemão
e francês no Teatro Paramount:
Osório queria conferir de perto o famoso
par de pernas assegurado na Lloyd’s
por um milhão de dólares.
Aficionados espanhóis
escaparam de Madri a Lisboa
para ouvir o Mito. Terá valido a pena:
uma voz perfeita! Revejo
o vídeo: perfeita.
Com o tempo, contudo
tanto ou mais do que a Callas
& seu colar
& Bellini
passou a fascinar-me não só
a esqualidez do décor mas o vetusto
da humanidade que o habita:
extraída do tempo, suspensa a imagem
como o rendez-vous vintage
que significa, alegórica e muito
do que se passou nesses 60
quase anos. O coro português
acompanha bem os trinados da musa:
afinal, além de belíssima, difícil
não é a melodia: honra
aos portugueses! Saem bem
na oitiva. Não assim na foto.
Este é um poema humorístico
que avança em adagio.
Justo atrás da Callas
uma cantora do coro feminino
tem os pés em forma bem dez
para as duas: As saias são discretas
e também os sapatos de todas, do
tipo Anabela com uma cruz de couro
cujo efeito é realçar joanetes.
Na filmagem evidenciam-se uma
de suas pernas e pés, inchados demais.
Teria àquela altura tal anônima
membro do coro problemas
de circulação, talvez
de nefrite, até elefantíase:
não o saberemos jamais.
Com seus volumoso pé direito
em notável posição dez pras duas
sobrevive singular e digna
nesse documento de época:
memorabilia de um tempo da arte
na qual defeitos, assimetrias,
aparências dos seres e seus pés
significavam bem menos: afinal,
o que para cantar importa é a voz
treinada e sublime se possível for;
não se os pés inclinados para fora
comprometem o visual
que a produção e seu gosto-sibila
dita como essencial. Como se daria
hoje o comportamento do ou da
profissional de imagem
frente a tais características? Apenas
em caráter de excepcionalidade assoluta
seriam permitidas. Seriam?
O mundo se estetizou. Foi uma indubitável
vitória da tal da beleza no capitalismo:
impor-se por completo da cabeça aos pés.
Por isto esta tristeza tão funda
quando está a sós a gente? e
tantos espelhos de selfies?
Saúdo la Callas no seu auge
que aconteceu quando aconteceu
em Lisboa num palco com menor pedigree
e assim saúdo a anônima cantora
do coro que a acompanhou:
com pés dez pras duas
como os de Carlitos.
PS. 1: Está factualmente equivocado
este poema. Como um relato de JLB,
transtroca e atraiçoa os fatos mais nímios:
sim em Lisboa esteve Maria Callas
e talvez seu pináculo vocal se tenha dado
no Teatro Nacional de São Carlos. FP
nasceu em um dos edifícios que dão
ao parvis fronteiro: Há uma placa de bronze
comemorativa. Dois cafés bem europeus
permitem-nos o desfrutar sentados
da correta fachada neoclássica da mole.
Na rua da direita há uma hamburgueria
bem boa. Também recomendo.
Este ensaio é o que é
e não se ilumina:
a ópera que responde pelo mito em seu auge
Norma não era mas a montagem da Traviata
na qual contracenaram Callas e
Alfredo Kraus (q.v). Única vez
em que tais celebridades líricas
cantaram juntas. Illo tempore!
Não está na Britannica e sim
no YouTube. Há mais de 6 horas
não o sabia: Quando escrevi este poema
verossímil mas não verdadeiro e que,
aristotelicamente, mente.
PS. 2: Para lá de monstros sagrados em seu entorno,
também se inspira este texto em L’esthétisation du monde
– vivre à l’âge du capitalisme artiste. De Lipovetsky e Serroy.
Osasco 17 VI 23
SIM, RAVENALAS EM FRENTE
Sim, ravenalas em frente
do outro lado da rua. Em forma
de diário distingo-as e viajo.
Escrevo no café do HCor,
no térreo da torre redonda
de cristal fumê na esquina
das avenidas Cidade Jardim
e Brigadeiro Faria Lima.
Há 48 anos
nesta zona de São Paulo
caracterizada por painéis de néon,
no prédio do outro lado da esquina
às minhas costas, passávamos
as noites fumando erva de um
narguilé que o Cláudio artista gráfico,
há muito finado, colocava no meio
da sala do ap que sua rica família
lhe emprestava. Lá, varávamos
noites brancas, iluminados
pela fria luz que inundava as vidraças
e instalava uma atmosfera supressora
do tempo, dedicados a projetos
do currículo da FAU-USP.
Recordo-me que em um deles,
de uma estação do metropolitano
que crescia naqueles anos de chumbo,
houve eu por bem, em um corte
arquitetônico, cortar também os usuários
apinhados na plataforma que desenhava.
Era um protesto que não escapou
aos professores da matéria:
chamaram-me a que me explicasse.
De Urbanismo a tarefa seguinte:
desenhei uma máquina de moer
carne humana a ser edificada
na parte alta do Anhangabaú:
Ao pé da estátua do Patriarca
fariam filas os populares: entrariam
pelo saguão e sairiam já enlatados
como rosbife lá embaixo no Vale.
A professora Monzeglio chorou
ao comentar o meu trabalho:
reconheceu meu ativismo
mas assinalou minha crueldade:
envergonhei-me desta.
Lição dada e recebida.
Recupero esta vinheta estudantil
enquanto observo as ravenalas em frente,
no jardim da Fundação Crespi-Prado.
Abriga o acervo do prefeito de São Paulo
que expandiu o loteamento dos Jardins.
O Museu da Casa Brasileira, que não
é como nenhuma delas, ocupa
algumas das salas do térreo.
Por detrás das palmeiras, recortam-se
as cornijas da elegante villa palladiana
a desoras aditada às charnecas do Pinheiros.
O jardim aí em frente é grande e basto
e a paisagem original perdeu-se.
Não podia ser diferente: está aqui.
Neste lugar onde se perdem paisagens.
Repito: escrevo no café
do Hospital do Coração, mantido
pela Associação Beneficente Síria
de São Paulo. Tudo nele ressuma
design: o balcão de 6 metros é
revestido por 3 lousas de Carrara
inclinadas em ângulo de dez graus.
De porcelanato areia placas
1,20 x 1,20 no piso e o janelão
sobre o parque em frente
neste espaço de pé direito triplo
nomeiam o ambiente.
Há uma inundação de luz e
algo como arquitetura:
presencio da burguesa
o triunfo em cada detalhe.
Não ruim de todo é sentir
didaticamente assim
a mudança do mores da urbe.
Somos apenas quatro senhores
que não nos conhecemos:
sessentões ou setentões a gozar
do privilégio deste instante no café.
Todos viemos em jejum para
exames solicitados por médicos
que atendem a sessentões e setentões
em prováveis consultórios de design.
Como funciona São Paulo?
Será tão rico este sertão?
Fiz ressonância no ombro direito,
preparando-me para – mais uma – cirurgia
de titânio. Há 48 anos circa, imigrou
de Buenos Aires Patricio Bisso.
Era colega do Cláudio em alguma
editoria de arte. Voltava tarde
de redação e nos encontrava imersos
em um mar de folhas de papel manteiga
ou congregados ao redor do narguilé.
Os militares estavam lá e cá; nós no meio.
Veio da Argentina com várias malas
de couro cheias de roupas de mulher
portenha: tailleurs apertados na cintura
como os que usava D. Jupira
e sapatos tamanho 40, bons
para todas as ocasiões e cores mel,
marrom, cinza, preta e saltos
um quarto, Luís XV ou saltinhos
informais ou de festa e até dourados:
os alinhara pelos rodapés em fila
e compunham o décor único
do ambiente: Luz cinza-azulada,
onipresente narguilé levantino
paredes brancas e um colar
de sapatos femininos da excelente
marroquinaria dos hermanos.
Calçava-os já avançada a madrugada
quando a noite já se fazia absoluta e
sempre de surpresa aparecia montadíssima
na sala travestida de Olga del Volga,
seu alter ego sexóloga argentina
e evidente avatar de Evita Perón:
Brindava-nos um show engraçadíssimo
em portunhol sublime. Gargalhadas
muitas pelos tatames na pré-manhã.
Depois cada quem regressava à sua casa
passadas as cinco, quando se levantavam
os periódicos toques de recolher.
Com os rolos de papel manteiga
pendurados nos ombros
dentro de canudos de plástico.
Tudo isto desperta-me esta esquina.
São Paulo 5 IV 23
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