Dênis, sobrenome Pênis, estava encurralado.
Ok, Dênis, saia com as mãos erguidas, porco leproso filho de uma cadela sarnenta, Alex disse. Por que vocês não vêm me pegar, come-bostas de uma figa, disse Dênis, agitando seu revólver. Vocês vão aguentar isso, vocês vão ficar quietos, ouvindo ele dizer venham me pegar, come-bostas de uma figa, para os quatro cantos da Terra, eu disse, saindo de trás do barranco. Quem for homem que me siga, eu disse. O último que chegar lá vai lamber o cu do padre, Franco disse.
Alex e Franco e Felipe e eu caímos sobre Dênis Pênis sujando nossas roupas na grama molhada, depois todos eles caíram sobre mim, depois sobre Franco e Felipe, depois uns sobre os outros.
Exaustos e um pouco machucados, paramos pra respirar.
Meio minuto depois, Alex e Franco e Felipe e Dênis e eu cavalgávamos contra o vento, contra as balas dos rifles inimigos, passando entre as bostas das vacas, sufocados pelo cheiro, pelo calor e pela distância, aos gritos, contando vantagens, exagerando mentiras, contentes com a companhia uns dos outros.
Éramos bandoleiros e o sol vermelho em poucas horas começaria a desaparecer às nossas costas. Por isso, entrávamos correndo pelo terreno baldio, alucinados, o vento batendo em nossa cara e o cheiro de mato, contínuo, espalhando-se por toda a parte. Corríamos quase sempre descalços, contra os maus presságios, pisando em pedras e aranhas e gafanhotos e escorpiõezinhos. Éramos bandoleiros e não tínhamos medo.
Aquela não é sua mãe, ela está nos observando, Alex disse.
Corríamos através da fenda nos muros, nas paredes de uma casa abandonada, desaparecíamos atrás de uma árvore ou de um barranco qualquer, ou atrás de um monte de areia, respirávamos com violência, fugindo de nossas próprias sombras, nascíamos e morríamos à procura de um esconderijo, elegíamos alguém inimigo, Alex ou Dênis ou Franco ou Felipe ou eu, atirávamos mamonas em suas costas, na cabeça e nos braços, com os nossos estilingues, subíamos nas laranjeiras e mangueiras, gritávamos, caíamos uns sobre os outros e começávamos a lutar, com palavras e palavrões, com os punhos doloridos, cada qual lutando pelo seu grupinho, procurando encurralar um ou outro no canto dos muros – quando encurralados, adversários, fugíamos feito gatos vadios –, fazíamos silêncio, quietinhos, quietinhos, saltávamos sobre os próprios pés perdidos no capim alto, nos arrastávamos pelo chão através do entulho deixado pelos vizinhos, nossas camisas e capangas, nessa hora, suadas, dispersas na areia, atrás de uma moita, ou em outro lugar. Éramos batedores, emissários do general Custer.
Novamente exaustos, parávamos pra respirar, deitados no jardim da casa abandonada, à sombra. Nenhum de nós dizia nada. Apenas respirávamos a primitiva configuração de nuvens, no céu ainda vermelho, assimilando sem muito interesse as gotas de suor que escorriam pela testa, pelos braços magrelos.
Meia hora depois, cem anos haviam se passado. Não éramos mais bandoleiros, não estávamos no Texas, longe, longe. Estávamos em casa, quietos e sem vida.
Olha só, uma teta do tamanho de uma torre, Alex disse. Parece mais uma buceta branquinha, eu disse. Uma bunda virada pra cima, Felipe disse. Uma passaralho boludo, Franco disse.
Éramos nuvens em transição.
Pouco depois, éramos caçadores numa selva sombria.
Me dá a faca. Eu envolvia cuidadosamente entre os dedos finos um pouco de capim, cortava-o rente ao chão e com um ou dois ramos mais resistentes enrolava todo ele, fazendo assim um pequeno maço. Meu irmão às vezes aparecia e me ajudava. Tínhamos que recolher de quinze a vinte maços por dia – o suficiente pra encher nossas capangas. Minha faca era bem afiada, mas quase não havia mais capim nesse terreno baldio. O trabalho era monótono e cansativo. Pra não ter que sair à procura de outro terreno, eu, aos poucos, ia me enfiando cada vez mais no mato, em busca de novos tufos de capim. Nessa investida, meu irmão raramente me seguia. Ele se preocupava muito com formigas e aranhas e gafanhotos e escorpiõezinhos.
Quanto eles comem por dia, Alex nos olhava de perto, um pouco incomodado por ter que ficar ao sol, sentado no topo do monte de areia.
Comem tudo o que você deixar pra eles comerem. Quinze, vinte, trinta maços. Comem até a barriga estourar, se você deixar. Depois, cagam por toda parte. Isso, o dia todo: comer, cagar, comer, cagar.
E a gente tem que limpar a merda toda, meu irmão disse.
A gente uma ova, você nunca me ajuda.
Eu tinha uma família de porquinhos-da-índia vivendo numa gaiola improvisada pelo meu pai – um caixote grande com uma tela de aço tapando a lateral –, presa na forquilha de um cajueiro, no quintal de casa. Às vezes, os meninos da minha rua pediam pra ir até lá, olhar os bichos comer, cagar, comer, cagar. Sentia-me plenamente realizado, era bom poder lhes proporcionar esse momento animal. Eu era o único, num raio de muitos quarteirões, dono de porquinhos-da-índia.
Alex, sua irmã está acenando pra você.
Éramos, nesse instante, índios.
Ela está sozinha, Alex Touro Sentado perguntou. Não, está com as amigas do colégio, Dênis Cavalo Louco disse, ela quer falar com você.
É uma cilada, Alex disse. Vambora!
Índios, voltávamos sobre nossas pegadas para dentro do mato, cruzando a frente da casa sem sermos vistos, disfarçados de árvore, entre as árvores, de pé de mamona, entre os pés de mamona, de areia, entre os montes de areia. Quando passávamos na frente de um muro, éramos concreto, e transparentes no descampado seguinte. No ar, éramos ar, e flutuávamos ao redor das casas, deixando pra trás pouco menos do que o sopro dos pulmões, dos próprios ossos reduzidos a pó, passando pela minha casa, pela rua quase vazia, pelo supermercado, pela estação ferroviária. Corríamos contra o vento e também a favor, redemoinhos. Se algum obstáculo aparecia à nossa frente – uma cerca, um muro –, imediatamente passávamos sobre ele, com a naturalidade dos raios do sol.
Às vezes a velha Angelina se irritava por estarmos no seu quintal, à procura de um atalho ou de um objeto qualquer, uma pipa, uma bola. A varanda da casa era estreita e, saindo da cozinha, com uma vassoura na mão, a velha aparecia, xingando alto, gesticulando, fazendo o possível pra nos assustar. Nós, em resposta, imediatamente subíamos em sua jabuticabeira, ágeis peles-vermelhas, e dali pulávamos para o alto do muro. Éramos gigantes e não tínhamos medo de nada. Passeávamos sobre o muro, equilibristas, ou engatinhando, sentindo sua superfície áspera, percebendo e ocupando, com os olhos, toda a extensão de nossa cidade, dos campos, do céu de cinema. Fazíamos isso entre muitas provocações, porque, sendo a velha Angelina analfabeta e manca, quando ela andava e falava, sua língua e suas pernas mal conseguiam pronunciar palavras e gestos que não confirmassem sua total incapacidade pra compreender o mundo, não do jeito que nós, flechas suaves, o compreendíamos. Do alto do muro, gritávamos, Angelina barata, bunda de anjo, perna de lata, bunda de anjo, perna de lata.
Não devíamos falar com ela assim, a velha Angelina é mãe-de-santo, Alex disse. O moleque às vezes se assustava com feitiços, encantamentos e truques de magia negra, histórias que ouvíamos por aí. Dizem que alguns meninos que viviam provocando a velha na rua estão agora com ameixas no lugar dos bagos, Alex disse pela enésima vez, imaginem isso, ameixas no lugar das bolas… brrr.
Ela não sabe meu nome, nunca conseguirá me pegar, eu disse, pra fazer funcionar um boneco vodu ela precisa saber o nome da pessoa. Alex, pensando melhor na questão, concordou pela enésima vez, com um leve aceno de ombros. Concordou sem concordar. Baixou o pânico. Um minuto depois, separados do restante do grupo, corríamos pelos trilhos do trem, Alex à minha frente, correndo na direção de sua casa, meu irmão atrás de mim, bufando feito um leitão exausto, nós três mortos de medo, convencidos de que todas as histórias sobre os poderes da velha Angelina estavam realmente em nosso encalço, de que mais cedo ou mais tarde também seríamos diabolicamente transformados em meninos-com-saco-de-ameixas, ou coisa pior. Corríamos e desviávamos e saltávamos e, cansados, paramos pra respirar – ar, ar –, caminhamos e deitamos na grama do quintal, à sombra de uma árvore, de olho no céu, nas casas antigas, no movimento da locomotiva que fazia manobras, mais adiante, a uns dez metros do quintal, separada de nós apenas por uma cerca de arame farpado e um declive ocupado por arbustos. O barulho-estrondo, do outro lado da cerca, era ensurdecedor.
O que vocês estão fazendo aí, Giba perguntou, entrando no quintal, com algumas revistas de histórias em quadrinhos, umas seis ou sete, e um embrulho pequeno, mal embrulhado, embaixo do braço. O que estão fazendo, ele disse. Nada, nós dissemos.
Éramos vento. Não fazíamos nada. Apenas soprávamos, sobre a grama, sobre o mundo.
Giba havia ganhado dos pais uma bicicleta muito bonita, de doze marchas. Eu também era dono de uma bicicleta, mas não tão bonita quanto a dele. Naquele vaivém todo, eu a havia deixado em casa.
Vocês não querem vir comigo até minha casa, minha mãe está esperando este embrulho a tarde toda, ele disse.
Giba era preto-pretinho, franzino-bonitinho e usava óculos. Não era um cara muito inteligente e também não era nosso amigo. Tinha problemas com alguns garotos que moravam perto de sua casa, tudo porque tivera a péssima ideia de dedurá-los para o diretor do colégio e para os próprios pais dos moleques. Sobre o que, eu não sabia. Nós, ali, meio mortos e quietos, não estávamos nem um pouco interessados nele ou no seu medo de levar uma surra na rua.
Não, sem chance, tenho que levar esse capim pra minha casa, já está começando a escurecer, eu disse, erguendo minha capanga, sem muita vontade. Também não posso, Alex disse, tenho que entrar, eu ainda não tomei banho, minha mãe vira uma onça, quando volta do trabalho e me encontra neste estado.
Mesmo assim, meu irmão e eu o acompanhamos durante algum tempo, porque aquela rua, na verdade, também era o nosso caminho. Minha vontade, enquanto andávamos, era atirar-lhe uma pedra nas costas, empurrá-lo, derrubá-lo de sua linda bicicleta de doze marchas, acertar-lhe dois tabefes na orelha, no nariz, rolar com ele na poeira, espalhar as revistas e a encomenda, gritar, dedo-duro do caralho. Sua conversa era chata, sem interesse. Em sua presença, deixávamos de ser qualquer outra coisa que não fosse nós mesmos. Nem índios, nem caubóis. Andando ao seu lado, não voávamos, não corríamos, não subíamos em árvore. As nuvens eram nuvens, as pedras, pedras, as casas, casas, e nós, simples mortais, ficávamos condenados à irrealidade cinzenta do dia-a-dia.
Próximos dos trilhos, achei que já era hora de nos separarmos, até logo, Gilberto, eu disse. Até logo, ele disse, então desacelerou.
O maldito cretino estava aflito porque até a sua casa faltavam ainda muitos quarteirões.
Um velho, numa bicicleta, estava parado na calçada, ao lado dos trilhos. Media com atenção as manobras da locomotiva, os vagões soltos, estacionados, a poeira e o movimento frenético das pessoas, lá longe, dentro da estação. Em seguida, ainda na calçada, começou a empurrar lentamente a bicicleta pra cima de um dos trilhos, tomando todo o cuidado pra que as rodas ficassem equilibradas. O velho queria passar pela cerca de arame farpado e pela grade com pontas afiadas, deitada no chão, cuja finalidade era justamente impedir a passagem de pedestres, separando a calçada do resto da trilha.
Os trilhos cruzavam quase toda a cidade e, dessa maneira, todos nós, donos de bicicletas, sabíamos que se você quisesse ir de um bairro a outro sem gastar fôlego e pneus, bastava sair da rua e seguir pelo acostamento dos trilhos, de terra batida, diminuindo assim a distância e evitando o trânsito. Porém, para se manter vivo, era muito importante perceber a aproximação do trem e sair da trilha estreita o mais rápido possível.
Depois de nos despedirmos, Giba ainda ficou parado ao nosso lado, sem dizer nada. Perguntei-lhe se conhecia as histórias sobre a velha Angelina, seus poderes sobrenaturais, se era verdade tudo o que diziam sobre os encantamentos, as ameixas. Ele gesticulou com a cabeça, severo e afirmativo. Mas, pelo brilho dos seus olhos, cheguei à conclusão de que ele nem ao menos sabia do que eu estava falando.
Acho que ele está com problemas, Giba disse.
O pneu dianteiro havia escorregado do trilho, caramba, e agora estava preso entre duas pontas de aço. O velho tentava puxar a bicicleta pra trás, tentava muito, mas quanto mais suas mãos forçavam mais o pneu se entranhava na grade.
Para nós, que apenas observávamos, tudo não passava de um pequeno mau jeito. Bastaria um ou dois movimentos na direção certa, com cuidado, pra que tudo se resolvesse e o velho pudesse seguir em paz. Mas ele estava ficando impaciente. Seus gestos eram agressivos e firmes. Ele bufava e praguejava e todo o seu nervosismo servia apenas pra prender ainda mais a roda nas pontas.
A locomotiva fazia manobras, longe dali, próxima à estação. Parados a poucos metros do velho, nós três a observávamos ir e voltar, sem muita pressa, duas, três, quatro vezes, sem se decidir a permanecer em nenhum lugar, as luzes da cabine acesas, era uma criatura ruidosa, longe das pessoas, dos vagões e da Terra. Nós três, parados a poucos metros do velho, olhávamos a noite, o espaço sideral, talvez esperando os discos voadores.
Estava escuro o suficiente pra que, dentre os milhares de milagres presentes ao nosso redor durante o dia, não pudéssemos distinguir muito mais do que os próprios rostos e um pedaço dos trilhos e da trilha estreita que se perdia numa curva fechada, entre quintais de casas pouco iluminadas, muros, árvores, arbustos sinistros.
Está ficando tarde, Giba disse. Olhem só aquelas luzes entre as árvores, será que as pessoas já estão jantando, ele disse. Provavelmente, eu disse. Minha mãe esperou este embrulho a tarde toda, ele disse.
Giba então sugeriu que nós três fôssemos até sua casa, que usássemos seu telefone, que chamássemos nossa mãe pra lhe pedir que viesse nos buscar de carro, e enquanto ele ia dizendo isso, um monótono blablablá, eu pensava nos porquinhos-da-índia, os coitados estavam sem comer desde a tarde do dia anterior, eu pensava nos filhotes recém-nascidos, na pasta escura e malcheirosa que, àquela hora, devia estar cobrindo todo o chão da gaiola, formando várias camadas, as primeiras mais claras e úmidas do que as últimas, eu pensava nisso e no fato de que nossa família não tinha telefone em casa. Éramos todos porquinhos-da-índia e não tínhamos telefone em casa.
Enquanto eu pensava, seu rosto ia ganhando uma luminosidade delicada, alienígena.
Primeiro, um clarão amarelo-ouro, depois, o ruído de alguma coisa fria se partindo. Entre um e outro, um risco uniforme, noturno-diurno, o som de mil tratores rasgando o chão, o grito de um homem, louco, louco, o que você pensa que está fazendo, um pulo no escuro, a barra da calça do velho presa no arame farpado, a bunda comprimida contra a cerca, um guinche-guinche surdo, feito de ossos, ar e poeira, os olhos do velho incrivelmente abertos, imobilizados entre a cerca de arame farpado e a parede de aço homicida, perfeita, poderosa, uma parede a cem quilômetros por hora, um som de trombetas cortando a rua, saindo de uma direção inesperada, um som ausente, avassalador, o movimento rápido da grama ao redor dos trilhos. Meio segundo depois, a mesma quietude de antes.
Então, aconteceu uma coisa maravilhosa.
Uma vertigem súbita. Um milhão de vespas voando dentro de nossa cabeça, sem que estivéssemos preparados pra isso, pelo menos não pra toda essa intensidade, pipocando fogos de artifício dentro de nossos ouvidos, diante de nossos olhos, como se essa fosse a noite mais radiante do ano, e nós, simples meninos parados ao lado dos trilhos, fôssemos, associados ao velho da bicicleta, os quatro cavaleiros do Apocalipse. Num minuto, era como se toda aquela vertigem do meio-dia selvagem estivesse de volta, como se fôssemos novamente o vento, as árvores e as nuvens, somados à movimentação audaciosa e fosforescente na estação ferroviária. Éramos o céu e a própria noite, a escuridão interestelar, éramos assassinos e super-heróis, viajantes do futuro, todas as coisas e nenhuma, ao mesmo tempo. Mais uma vez, aventureiros, tudo porque havia um velho sentado na grama, segurando pedaços de ferro e borracha, distante cinco mil anos de todos nós, e um homem desconhecido que o ajudava a ficar em pé, falando-lhe coisas disparatadas, chamando-o de louco, louco, onde é que você estava com a cabeça, um homem-alien dando-lhe bronca e tentando, ao mesmo tempo, reanimá-lo, enquanto mais e mais curiosos iam pulando a cerca, se aproximando.
Isso me encheu de uma alegria nova. Rejuvenescido, era como se eu, não de uma maneira estranha, mas de uma maneira muito mais intensa, estivesse recoberto de benevolência, de compaixão e de boas intenções, tanto que, passado o susto, quando Giba se aproximou, mais uma vez, pra se despedir, eu imediatamente me ofereci para acompanhá-lo até sua casa. Avise a mamãe que eu vou chegar logo, eu disse ao meu irmão. Leve minha capanga com você, eu disse.
A eletricidade dos acontecimentos ainda parecia dançar nos óculos de Giba.
Partimos, a bicicleta entre nós dois. Éramos piratas fugitivos, em terra firme, filhos do famigerado Barba Negra. Porém, poucos quarteirões depois, ainda absorvido por uma atmosfera sensual e delicada, compreendi que, apesar de tudo, nada mais em minha vida jamais seria tão arrebatador quanto essa sensação de alegria sublime e infinita que me envolvia. Sentia-me totalmente pleno, íntegro. O coração palpitava de calor. Minhas mãos tremiam e a respiração estava quase irreconhecível.
Giba virou-se pra me dizer qualquer bobagem agradecida. Nesse gesto percebi, entre outras coisas, que seus olhos eram lindos e suas orelhas também. Comovido, dei-lhe um tapa na cara, empurrei-o contra um muro. Ele tirou os óculos, guardou-os no bolso da camisa, pendurou-a com o maior cuidado no guidão da bicicleta e se atirou sobre mim. Nos engalfinhamos na rua, aos tropeções, longe da atenção de todos. Terminamos cansados e abraçados, sentindo o cheiro um do outro. Mais tarde, quando voltei a observá-lo, ele estava sentado na sarjeta, com o nariz sujo de sangue, e seu cabelo quase tocava as estrelas.
Nota do autor
Certa vez, conversei com o Rubem Fonseca. Por telefone. Certa vez não… Foi na manhã de 28 de setembro de 1995, uma quinta-feira. Sei a data exata porque, uma semana depois de nossa conversa, recebi pelo correio um exemplar autografado da coletânea O buraco na parede (minha narrativa predileta é Idiotas que falam outra língua, que releio de tempos em tempos). Quem me passou o número do escritor foi outro escritor que eu conhecia somente dos livros, Deonísio da Silva. Na verdade, eu telefonei para o Deonísio pra saber um pouco mais sobre o Prêmio Internacional Casa de las Américas. Eu encontrara num jornal uma nota dizendo que minha coletânea Fábulas havia ganhado o prêmio, edição de 95. E sabia que o Deonísio havia ganhado recentemente, com o romance Avante, soldados, para trás. No final da conversa, ele me sugeriu: “Telefona para o Rubem” (um dos jurados, ao lado de Patricia Melo, Zuenir Ventura e Marlyse Meyer), e me passou o número. Mas avisou: “Ele nunca atende o telefone, cai sempre na secretária eletrônica, então comece a deixar um recado, que ele vai atender”. Dito e feito. O que eu queria com a celebridade Rubem Fonseca, autor de livros que eu e meus amigos apreciávamos muitíssimo? Saber se ele toparia recomendar meu original premiado pra Companhia das Letras, sua editora, na época. Pra isso usei o incerto método de jogar verde (tipo “inception”)… E colhi maduro! Em resposta ao meu choramingo de gato vadio, ele mesmo se ofereceu pra indicar o original, que virou livro e foi lançado em 1998 (título: Naquela época tínhamos um gato, em vez de Fábulas). Conto tudo isso pra me gabar um pouco. Sou quieto, puxando mais para o tímido, então dar esse telefonema exigiu-me um esforço enorme. Mas ainda não cheguei aonde queria: por telefone, ele, o inigualável autor de Feliz ano novo, O cobrador e A grande arte, elogiou na minha cara (virtualmente) o primeiro conto de minha coletânea, Éramos todos bandoleiros. Disse que o achou muito ágil e divertido. Esses fiapos são tudo o que eu me lembro de nossa conversa interurbana, que não foi muito longa, pois meu time estava ganhando e eu não queria sofrer nenhum revés. Os jovens vão até dizer: “Por que não pediu a ele também um prefácio ou um texto para as orelhas?!” Simples. Todos nós acreditávamos no que o folclore literário espalhava: RF não dava entrevistas, não fazia sessões de autógrafos, não participava de feiras e bienais, e não escrevia endossos de espécie alguma. Voltando ao conto dos bandoleiros, saibam que acabei de reler e revisar-reescrever o danado (minha primeira e única autoficção). E decidi que nos próximos meses, de um jeito ou de outro, finalmente será lançada a segunda edição do livro Naquela época tínhamos um gato. Em meu conto “muito ágil e divertido” (RF) eu enfiei um pouco da minha vidinha em São Joaquim da Barra (SP), em meados dos anos 70. Os fatos infantis aconteceram quando eu tinha sete ou oito anos. E um detalhe: o quase atropelamento por uma locomotiva aconteceu comigo. Escapei com vida por um triz. (Que mais? Antes dos fatos relatados, a primeira versão de Éramos todos bandoleiros figurou entre os vencedores do concurso de contos da Casa da Palavra de Santo André. Em que ano? Não sei. Tenho a coletânea com os textos vencedores, sei que tenho, mas vou precisar revirar gavetas, armários e baús… De que mais me lembro? De pegar uma kombi com João Silvério Trevisan e os amigos da oficina de criação literária das Oficinas Culturais Três Rios e seguir para a cerimônia de premiação, no município vizinho. Lembro que a viagem foi caótica, desconfortável, mas muito festiva. Como diz o Macaco Simão: “Nóis sofre mas nóis goza”.)
Foto de Tereza Yamashita
Olyveira Daemon é escritor, ensaísta, antologista e coordenador de oficinas de criação literária. Publicou os romances Gigante pela própria natureza e Bamboleio que faz gingar e as coletâneas de contos Vinte & um e Às moscas armas!. Das antologias que organizou destacam-se Fractais tropicais, de ficção científica brasileira, Mundo-vertigem, de ficção fantástica brasileira, e as antologias da geração 90 e da geração zero zero. Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, intitulada Simetrias dissonantes. Venceu duas vezes o Prêmio Casa de las Américas, em 1995 e 2011.
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